Mundurucu: um revolucionário negro redescoberto

HQ conta a história de pernambucano que participou da Confederação do Equador e combateu a escravidão

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  • Luiza Gonçalves

Publicado em 17 de junho de 2024 às 11:11

Paulo Santos autor do romance gráfico Mundurucu na Confederação do Equador
Paulo Santos autor do romance gráfico Mundurucu na Confederação do Equador Crédito: Divulgação/Leopoldo Conrado Nunes

A Revolução do Haiti, uma das mais famosas revoltas feitas por negros nas Américas, inspirou uma revolta abolicionista no Brasil durante o império de Dom Pedro Primeiro. Seu líder foi o pernambucano Emiliano Felipe Benício, autodenominado Emiliano Mundurucu, que, embora não muito conhecido, foi uma figura importante na Confederação do Equador, na luta contra a escravidão em Recife e chegou até a realizar um feito histórico nos Estados Unidos: foi o primeiro negro a desafiar a segregação racial nos tribunais após um episódio de discriminação.

Negro, ativista e revolucionário, Emiliano e sua história protagonizam as páginas do romance gráfico Mundurucu na Confederação do Equador, novo livro do escritor pernambucano Paulo Oliveira, que tem layout do ilustrador e quadrinista Libório Melo, falecido em janeiro de 2020, e arte-final de Luciano Félix. A obra integra o Selo Cepe HQ, disponível em versão física e ebook, e possui ferramenta de audiodescrição, sendo acessível para pessoas cegas.

Jornalista e escritor, Paulo Oliveira revela sempre ter flertado com a história durante sua carreira, mas foi somente após completar 50 anos que se dedicou à escrita, unindo paixão com ficção, que resultou no seu primeiro romance em 2017, A Noiva da Revolução, sobre a Revolução Pernambucana de 1817. Entretanto, ele explica que Munducuru foi seu primeiro escrito há cerca de 20 anos e que só teve a oportunidade de ser finalizado neste ano. “Um personagem interessantíssimo na história de Pernambuco e que é praticamente desconhecido. Sendo pobre e preto, a história costuma não registrar. Finalmente conseguimos publicá-lo, e coincidiu exatamente com o Centenário da Confederação do Equador”, conta.

O movimento revolucionário aconteceu em 1824 em Pernambuco, contra as ações de Dom Pedro I após a Independência, dentre elas dissolver a Assembleia Nacional Constituinte e outorgar uma constituição para o Brasil. “Nesse processo surge Mundurucu. Ele foi um comandante do Regimento Montabrechas, formado por homens pardos, e que tinha como maior preocupação a abolição da escravatura. Ele achava que se em 1817 não havia sido decretada, então as próprias pessoas negras tinham que tomar a frente, como no Haiti. Ele tentou fazer uma virada de mesa em 1824, uma frente do processo e radicalizar, só que não conseguiu e é isso que vamos ver na HQ”, descreve Paulo.

A HQ tem Layout do ilustrador Libório Melo e arte-final de Luciano Félix
A HQ tem Layout do ilustrador Libório Melo e arte-final de Luciano Félix Crédito: Divulgação

Fabulação narrativa

Mas não só de fatos históricos é composto o romance Munducuru. Um dos pontos fortes da HQ está exatamente na parte que não é verídica. No livro, temos o drama familiar de Emiliano e suas reviravoltas que o acompanham da infância até o clímax da história, a missão de ajudar um comerciante inglês que rende momentos cômicos, sua relação de mentorado com Frei Caneca e até mesmo o romance entre o herói e a mocinha Clarisse, que são criações de Paulo. Registros de uma vida que Munducuru poderia ter tido e que dão um plano muito interessante à obra.

“Eu não encontrei uma biografia do Emiliano, apenas ele citado em textos, com três atuações pontuais: essa na Confederação, uma passagem dele na Venezuela e nos Estados Unidos, onde ele se tornou um dos pioneiros na luta contra a segregação racial. Então eu decidi criar uma biografia para ele na parte pessoal, respeitando o contexto da época e seguindo os fatos históricos que temos dele”, diz o autor.

Tudo ganha ainda mais materialidade no texto, sintético e marcado pelo regionalismo nas palavras e pelas referências ao modo de falar do séc. XIX, e na visualidade dos personagens e paisagens pernambucanas que ilustram a HQ.

“A história não é fixa, ela existe à medida que ela é contada. Vai se recordando, reescrevendo, se fazendo de novo. Não que os fatos mudem, mas a interpretação deles, a maneira de vê-los. A história brasileira até recentemente foi dos homens, brancos e ricos, mas você pode ver essa história de um outro ângulo, se você tomar outros personagens. E é isso que eu tenho tentado fazer. Trazer esses personagens que estão submersos, revisitá-los, recontando a história e passando-a adiante”, defende o escritor.