"Minha relação familiar estava destroçada, muita dor, sofrimento", diz Nando Reis, distante das drogas há oito anos

Cantor se apresenta neste domingo (20), com desconto para assinante Clube CORREIO

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Publicado em 20 de outubro de 2024 às 09:44

Nando Reis
Nando Reis Crédito: Felipe Campos/divulgação

Nando Reis está de volta a Salvador neste domingo (20), para apresentar aos fãs a nova turnê, baseada em seu novo álbum, Uma Estrela Misteriosa, lançado em quatro volumes. “Uma Estrela Misteriosa é como um autorretrato, uma antologia, um passeio pelo zoológico-cósmico que vai da memória ao sonho, da realidade à utopia. Eu vezes eu, somado a todos que estão ao meu redor”, explica Nando.

O guitarrista Peter Buck (co-fundador da banda R.E.M) e o produtor dos álbuns e baterista Barrett Martin (da Screaming Trees) participarão da apresentação em Salvador, como têm feito em alguns espetáculos da turnê. Os músicos Walter Villaça (guitarra), Alex Veley (teclado) e Felipe Cambraia (baixo), que colaboram com Nando há mais de 20 anos, também farão parte da tour, assim como Sebastião Reis (violão), filho do músico.

Nesta conversa aberta com o CORREIO, Nando fala de seus problemas com drogas e como sua vida mudou após o tratamento no Alcoólicos Anônimos (AA). O compositor também lembra da muito bem-sucedida parceria com Cássia Eller, que rendeu ótimos discos como Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo. A saída - e o reencontro - dos Titãs também foram assunto do papo.

Você tem falado muito sobre o seu afastamento de álcool e drogas e já disse que o novo álbum é o primeiro que você grava sóbrio, depois de muitos anos. Como a sua vida mudou depois de ter o organismo “limpo”?

Estou sóbrio há oito anos, suficientemente estabilizado e com propriedade para tratar do assunto, o que faço questão, porque há um misto no enfoque sobre alcoolismo e drogas, que é uma questão complexa, vista do ponto de vista moral e policial e mesmo do ponto de vista legal de forma muito equivocada. O alcoolismo é uma doença que afeta milhões de pessoas e é visto de maneira… tudo isso tem uma raiz que entra pro campo da negação, da invisibilidade, prefere-se não tratar desse assunto. Tem moralismo, hipocrisia, ignorância, conservadorismo. E me coloco nisso, cabe a mim abrir meu anonimato, eu que sou membro do AA [Alcoólicos Anônimos], falar desse assunto publicamente. Ano passado, fiz uma matéria para a revista Piaui, que teve repercussão enorme.

"Tem uma quantidade de pessoas que se manifestam dizendo que tem o problema na família, ou que está sóbrio… isso desperta uma coisa positiva, que não é só da solidariedade, como da humanidade, de ajudar as pessoas no sentido de aliviar, porque é um sofrimento atroz e fiz sofrer muito"

Nando Reis
cantor e compositor

E que mudanças a distância do álcool e das drogas trouxe para sua vida?

Mudou muito: a minha relação familiar estava destroçada, muito prejudicada, muita dor, sofrimento… isso gera um afastamento completamente natural, porque ninguém quer ver nem sentir o impacto que uma pessoa no grau da doença que eu estava, isso afeta completamente suas atitudes e seu comportamento, e obviamente o reflexo disso na minha vida profissional também.

"Inúmeras vezes, subi no palco sem condições, me apresentei de forma precária e até desrespeitosa com o público, coisas que infelizmente não tenho como consertar"

Nando Reis
Cantor e compositor

Agora, tenho que cuidar do que posso e do presente. Quem sofre de alcoolismo ou dependência química, ou tem familiares que sofrem, sabe: é um sofrimento, uma dor, um desastre porque você quer uma coisa e, ao mesmo tempo, não consegue. É uma coisa muito séria. Então, são oito anos já [de recuperação], que é uma reabilitação, mas é uma coisa constante. Alcoolismo não é uma coisa de onde você ‘sai’. Eu não posso beber! E eu não quero beber porque, se voltar a beber, vou cair no mesmo lugar. Tentei várias vezes e não foi fácil. A gente se engana e, por outro lado, não se engana, porque a gente sabe e, uma vez que você sabe, você tenta se enganar ou tenta enganar os outros. Mas no seu íntimo, você sabe que aquilo é um problema. E é muito difícil, não estou dizendo que seja fácil, levei anos, contei com ajuda do AA [Alcoólicos Anônimos], que eu recomendo. Vou a reuniões de forma menos frequente em relação ao começo. A pandemia atrapalhou muito, mas, toda vez que vou, é muito bom, muito gostoso, e ali tem um ambiente para quem sofre que é propício e favorável a você conseguir entender e lidar com o problema. Quando você ingressa, são 90 dias e 90 reuniões. Como a minha vida é de muita viagem, às vezes não é possível. Mas eu ia muito. E quando você entra lá, ninguém olha para você [com ar de julgamento]. Não interessa sua profissão, somos todos iguais, todos lutando na mesma condição e isso é benéfico, ajuda demais a olhar o semelhante. As coisas se dão pelo exemplo, tem veteranos que estão sem beber há 30 anos.

Por que decidiu lançar um álbum tão volumoso, quádruplo e com 30 canções?

O disco anterior, Jardim-Pomar, havia sido lançado em 2016. Depois, teve a pandemia e lancei apenas dois singles inéditos. Em 2022, Barrett [Martin], produtor do disco, baterista e amigo meu desde o ano 2000, veio ao Brasil para dirigir e produzir um documentário sobre músicos da América e ele me convidou para gravar duas canções para o documentário. Junto com ele, estava o Peter Buck [ex-guitarrista do REM]. Eu tinha umas oito canções compostas na pandemia. Gravei essas e peguei coisas esparsas minhas que não havia gravado. A primeira sessão de gravações foi em agosto e a segunda, em outubro de 2022. Nesse ínterim, compus coisas entusiasmado pelo disco. Na segunda etapa, concluí músicas dentro de estúdio, que é algo incomum, mas que fizemos porque estávamos satisfeitos com o resultado musical. Eram 24 músicas, então só haveria possibilidade de lançar em três LPs, o que me agradou, porque sou um compositor e não lançava um álbum fazia seis anos. Então, pensei em álbum triplo reunidos numa caixa, mas gostaria de desmembrá-los para tornar mais viável economicamente.

E como será o show da nova turnê, que vem para Salvador?

Não é um show tão longo, mas robusto, toco acho que onze músicas das novas, mas elas costuradas com os clássicos. Atende a pessoas que vão com desejo de cantar as mais conhecidas, mas também elas associadas e relacionadas a músicas novas e com uma banda que é muito boa, uma oportunidade única, porque, além dos Infernais [banda que o acompanha há 20 anos], conto com a presença de Barrett e Peter Buck.

Você tem se engajado na questão da acessibilidade e montou uma estrutura especial para atender a pessoas com necessidades especiais na turnê. Qual a importância disso?

Acessibilidade é algo que nem devia ser mencionado, mas que deveria estar introjetado em todos nós, uma prática. Temos cuidado nesta turnê, tem uma coisa quase pedagógica para mim, pessoalmente, embora eu mesmo tenha dois irmãos PCD, é uma realidade da minha história, mas, por outro lado, há questões da acessibilidade, porque a inclusão é decorrência. No caso dos shows, significa permitir a todo mundo que quer ir ao show condições dignas de ir. Espero que a partir dessa turnê, isso seja um estímulo às casas de shows entendam melhor o que precisam fazer e outros artistas também.

Sua saída dos Titãs, em 2002, foi conturbada. E como foi o clima do reencontro para a turnê que percorreu o país em 2023?

Sim, a saída foi cheia de asperezas, mas essas coisas foram superadas totalmente, O encontro com todos, a turnê, a convivência, tocar as músicas… e também o fato de eu estar numa condição muito diferente [distante das drogas], porque quando saí da banda estava num péssimo momento da relação com drogas e álcool. Uma coisa que afeta mesmo, então poder conviver com eles, eles me verem em condição muito mais saudável, um músico muito melhor e podermos tocar juntos… tudo aquilo que criamos juntos foi tão bom, que estendemos a turnê. A princípio, seriam dez shows e fizemos quarenta, uma coisa ótima! Confesso que, se havia alguma coisa ainda ‘presa’, constatamos que nossa relação é muito forte, nosso vínculo amoroso, fraterno, se sobrepõe a qualquer coisa. Tudo fica ínfimo perto do que fizemos juntos e do quanto somos importantes uns para os outros em nossas respectivas vidas.

Cássia Eller foi sua intérprete mais frequente e, por um tempo, foi uma espécie de porta-voz sua. Qual a importância dela para sua carreira?

Boa! Ninguém havia se referido a ele com essa expressão. Ela tem importância enorme em minha vida profissional, de dar voz a canções minhas, que na voz dela magnífica, magistral, alcançara tamanho e um grau de beleza único, lamento e sofro até hoje com a tragédia da morte precoce dela. No entanto, o legado de um artista e a obra que ele deixa é eterno. Eu mesmo, como compus uma música contando a nossa história, que é All Star, canto todas as vezes que subo no palco. E é uma forma não só de rememorar o que vivemos juntos como de relembrar ela ao público. Por coincidência, hoje à noite [16/10/24], vou fazer uma participação no show de dois amigos, Fernando Nunes e Walter Villaça, que foram membros da banda dela e grandes amigos da Cássia. E vou cantar com Chico [filho de Cássia], pela primeira vez. E que é assombrosa a semelhança do timbre dele com ela.

Diz-se que, quando criança, Chico disse à mãe que ela gritava muito quando cantava. É verdade que isso a fez mudar o jeito de cantar?

Ele falou isso para ela. Acho que alcançamos a vontade dela, ela é uma artista completa, tinha gosto abrangente, cantava coisas diferentes. No entanto, era vista como uma espécie da cantora sapatona que grita e canta blues, o que era uma bobagem! E naquele disco [Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo], como produtor, fiz questão, pegando esse ‘gancho’ do Chicão e disse a ela: ‘você tem que mostrar tudo que você é, ser tudo o que você gosta’. Mas ela, muito tímida, acabou gravando [em discos anteriores] coisas por indução de produtores e da gravadora. Ela me confessou isso. Mas eu disse ‘o disco é seu, como você quer cantar? Com quem você quer gravar?’. Tivemos uma identificação enorme, ela gostava muito das coisas que eu compunha. Nos discos que fizemos, ela rompeu uma bolha e pôde ser vista por muito mais gente e alcançou enquanto esteve aqui, porque tenho certeza que alcançaria muito mais, um lugar que a mantém no panteão das grandes cantoras brasileiras como de fato foi, é e será.

SERVIÇO. Nando Reis, no show Uma Estrela Misteriosa. Concha Acústica (Campo Grande). Domingo (20), às 19h. Ingresso: R$ 200 | R$ 100. Clube CORREIO 40%