Livro 'Exu-mulher' relata a demonização do orixá e o apagamento de sua representação feminina

Obra de Claudia Alexandre terá lançamento nesta quarta-feira no Muncab em Salvador

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  • Luiza Gonçalves

Publicado em 31 de janeiro de 2024 às 05:00

Livro da jornalista e pesquisadora Claudia Alexandre discute a demonização do orixá Exu e o apagamento de sua representação feminina
Livro da jornalista e pesquisadora Claudia Alexandre discute a demonização do orixá Exu e o apagamento de sua representação feminina Crédito: Divulgação

Comunicação, mensagem e força motriz. Exu é senhor de todas as línguas, fluxo do corpo e do espiritual e tríade dos homens e dos orixás. “Quem ousaria apagá-lo da travessia, das lutas, das resistências e excluí-lo da própria vida, sendo ele a única possibilidade de continuidade e ressignificação? Sem a relação com Exu tudo morreria”, pensa a jornalista e cientista da religião, Claudia Alexandre. Porém uma parte essencial dessa entidade parece ter sido apagada das representações e do cultos dos candomblés originários do oeste africano no Brasil: a representação feminina de Exu.

A partir deste questionamento, Claudia Alexandre levantou registros dos princípios femininos em Exu nos candomblés nagôs, para entender a ausência ou silenciamento de cultos ao feminino do orixá mensageiro no Brasil e as negociações que se estabeleceram entre as mulheres de terreiros em resistência a dominação masculina e a conservação das tradições. O resultado é a obra “Exu-Mulher e o Matriarcado Nagô: sobre masculinização, demonização e tensões de gênero na formação dos candomblés”, que apresenta um debate inédito no campo dos estudos sobre as tradições e religiosidades afro-brasileiras. O livro terá lançamento em Salvador nesta quarta-feira (31), às 18h, no Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira (Muncab) e recebe a autora para uma roda de conversa com a participação da prefaciadora, Núbia Regina Moreira.

Claudia explica que seu pontapé inicial foi analisar o processo de demonização do orixá Exu que trouxe como um dos elementos a associação majoritária a uma figura masculina e uma construção ocidental. “Acabei me deparando com o fato de que o processo dos registros que estruturam a demonização do orixá, é marcado por falsas narrativas e pelo rompimento da concepção de um orixá que contém dois princípios inseparáveis: masculino e feminino. Existem em várias localidades yoruba na região de Nigéria, Benin, Gana cultos e famílias inteiras que cultuam Exu sem definir um gênero, por isso o representam com figuras, em pares, inseparáveis, assim como é a concepção iorubana, que veem o mundo como um todo, diferente da ideia cartesiana judaíco-cristã”, conta.

Livro 'Exu-Mulher e o matriarcado nago
Livro 'Exu-Mulher e o matriarcado nago" Crédito: Divulgação

“Num primeiro momento era difícil assumir a presença do Exu ‘homem’ quanto mais tornar público a Exu ‘mulher’, afirmou a jornalista. A demonização do orixá fez com que o povo do candomblé vivessem em constante negociação para manter na religião um elemento tão visado pelos discursos de ódio. “Muitos sacerdotes evitavam tornar público qualquer tipo de cerimônia em devoção a Exu; não se iniciava filhos e filhas para esse orixá; havia inclusive a troca de orixá. Caso Exu respondesse no jogo de alguém; muitos filhos e filhas de Exu eram confirmados para outro orixá, quase sempre Ogum; diziam que uma pessoa iniciada para Exu poderia enlouquecer e o iniciador ficaria desacreditado. E ainda, mulheres eram proibidas de participar ou cuidar de rituais e recintos do orixá”, destaca.

Em sua pesquisa, Cláudia ressalta como as primeiras mulheres que ajudaram a organizar as casas de culto no século XIX lidavam com essa perseguição, chegando a duas constatações: ao assumirem o cargo máximo das crenças nagô, elas precisaram ressignificar tradições ancestrais, causando alterações na função primordial do orixá Exu. E que, com o processo de demonização de Exu e sua dominação masculina, foram alteradas as características mitológicas do orixá no Brasil, ocultando sua soberania sobre os princípios feminino e masculino.

Ida aos terreiros

Durante o desenvolvimento da investigação, três dos mais tradicionais terreiros de Salvador foram visitados pela jornalista: Casa Branca, Ilê Axé Opô Afonjá e Gantois. “Meu objetivo em visitar os terreiros fundantes foi confirmar a permanência de um Matriarcado e o quanto ele ainda estava relacionado com a origem de cada terreiro, sabidamente fundado e comandado por mulheres. Além disso, três questões: como Exu foi introduzido na tradição da casa; se haviam iniciados para Exu na história do terreiro e se havia indícios de algum culto à Exu-Mulher, além de saber o que pensam hoje sobre o tema”, explicou

Após as visitas a jornalista constatou que as casas não possuíam culto para Exu-Mulher e nenhum dos entrevistados afirmou ter conhecimento das representações e dos objetos rituais usados nas cerimônias de Exu na África Ocidental, bem como das estatuetas de Exu Feminino e os bastões sacerdotais usados 347 por iniciados do orixá. As relações com a divindade encontrada nos três terreiros foram: na Casa Branca há uma casinha antiga de Exu no interior do barracão, porém nunca se iniciou ou se fez festa pública para ele; no Opô Afonjá nunca houve iniciação para o orixá Exu e no Gantois é realiza uma festa anual para Exu, mas também negam ter filhos ou filhas iniciadas para o orixá, partilhou Claudia.

Figuras em pares são do livro Eshu (George Chimeche  2015)
Figuras em pares são do livro Eshu (George Chimeche 2015) Crédito: Reprodução/ Eshu (George Chimeche - 2015)

Nascida em São Paulo, no dia 16 de agosto,uma segunda-feira, que era um dia de Exu e Obaluaê, a pesquisadora afirma: “Minha casa sempre teve samba e ‘macumba’". Seu pai Luiz Alexandre era um iniciado no candomblé, do Ilê Ogodô Dey em Cachoeira, recôncavo baiano, onde foi também iniciada em 2012. A referência paterna e o contato com a religiosidade a fizeram seguir em 2014 a Ciência da Religião, resultado hoje no livro 'Exu-Mulher e o Matriarcado Nagô' que vem de sua tese de doutorado.  Ao trazer Exu em sua representação triádica - homem, mulher e ambos ao mesmo tempo- Claudia Alexandre espera contribuir no combate ao racismo religioso e ampliar os estudos das tradições yorubá-nagô com um olhar atento às questões de gênero.

“Estamos vivendo tempos muito difíceis e ameaçadores por conta da intolerância religiosa e do racismo religioso. Estudos, debates e políticas públicas são meios importantes para encontrarmos formas de conscientizar e sensibilizar as pessoas sobre os discursos de ódio e narrativas falsas. Acredito que Exu, como elemento dinâmico (masculino e feminino) tem mostrando novos caminhos, não à toa está cada vez mais presente nas artes, na música, no cinema, no carnaval e na pedagogia. Não posso deixar de celebrar essas vivências porque também me sinto herdeira dessas lutas e resistências como uma mulher preta e do axé”, resume.