Força feminina: escritora baiana lança romance épico

Luciany Aparecida, que participará da Flica, estreia no gênero em Mata Doce, pela Alfaguara

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  • Tharsila Prates

Publicado em 24 de outubro de 2023 às 06:00

A escritora Luciany Aparecida
A escritora Luciany Aparecida Crédito: Divulgação Ana Reis

Sentada, um dia, debaixo de um pé de fruta-do-conde com o tio, desenganado pelos médicos 10 anos antes, a escritora baiana Luciany Aparecida resolveu perguntar o que ele tinha visto ali quando menino. Já com a saúde frágil e beirando os 75 anos, tio Carlos contou sobre Mané da Gaita, um vendedor de quebra-queixo, de uma perna só e tocador de gaita, e sobre Venâncio, um ferreiro que entrava no mato e, diziam, se transformava. Isso foi entre 2018 e 2019, no Charco, que fica no Vale do Rio Jiquiriçá, próximo à pequena Santa Inês, na Bahia.

Luciany conta da empolgação em saber dessas histórias passadas há muito tempo. “Pensei: quando terá sido? Fim do século 19, início do 20? Fui anotando e já estava desesperada, isso rende personagem!”, relembra ela, rindo, debaixo de uma árvore de bem menos porte no Instituto Goethe, em Salvador, cidade onde vive hoje. Numa caderneta, a escritora registou os nomes: Mané da Gaita e Venâncio. Vão viver onde? Num lugar chamado Mata Doce. E vai ter quem nesse povoado? Uma professora, casada com outra mulher, que vai adotar uma filha.

Assim nasce Mata Doce (ed. Alfaguara), que será lançado na Flica na próxima sexta-feira (27) e que é o primeiro romance da escritora, dona de outros livros de contos, poema, novela e dramaturgia. Uma vida em torno de um casarão antigo, ladeado com uma roseira branca, cheia de significados. Uma família exclusivamente feminina e que é a referência desse povoado. Nela, cresce uma protagonista forte, decidida e de muita sensibilidade. Mas todos acabam marcados por uma tragédia.

Mata Doce é um povoado fictício, inspirado em um lugar entre a caatinga e a mata Atlântica, perto de Santa Stella, em referência a Mãe Stella de Oxóssi. Maria Teresa, a Filinha Mata-Boi, é a protagonista, filha da professora Mariinha e de Tuninha. O acontecimento trágico, na véspera de uma festa que deveria ser a mais especial de todas, a transforma.

Capa do livro: mulheres negras, personagens fortes
Capa do livro: mulheres negras, personagens fortes Crédito: Reprodução

A narrativa é construída de tal maneira que a leitora ou o leitor se apega fácil aos personagens, todos negros, exceto o coronel Gerônimo Amâncio, o antagonista. Mulheres valentes, homens mais generosos – e outros, os perversos de sempre –, vivendo em uma comunidade rural, com suas disputas, dores, traumas, esperanças, fragilidades e também contradições. Os fatos ocorrem em um vaivém intrincado, não cronológico e que busca apresentar os personagens e esclarecer os acontecimentos aos poucos e com detalhes.

Luciany, que escreve desde a pré-adolescência influenciada pelos avós maternos, afirma que os grandes temas do livro são o feminismo e o antirracismo, além da religiosidade.

"É uma história que merece ser lida. Um trabalho coletivo, em diálogo com a sociedade e com outras autoras [Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis]. Quero que as pessoas reflitam que a vida não deveria ser assim se elas se encontrarem diante de algumas injustiças."

Luciany Aparecida
Escritora

Ao ler o romance, o escritor moçambicano Mia Couto, que esteve na Flipelô este ano em conversa mediada por Luciany, disse que ficou fascinado e poucas vezes viu um livro começar com tanta força, verdade e poesia: “Maria Teresa parou em frente ao boi vivo e arrancou sua careta. O animal perdeu seu sentido controlado de direção, mas não tinha mais como escapar. A mulher achava justo que a morte se apresentasse de frente. Quando ela encarava o boi, o sangue da vida ainda corria quente por baixo da sua carcaça.”

O livro começa na transição entre a vida e a morte, como o tio da escritora, um senhor idoso, desenganado, no fim da vida e que relembra o passado. “Um refinamento que a gente nem sempre dá conta de resolver só com a nossa consciência científica. Mas a fé talvez nos auxilie. E eu sou uma mulher de fé”, diz.

MATA DOCE

Editora Alfaguara/ 304 páginas/ R$ 69,90 e R$ 34,90 (e-book)

SOBRE A AUTORA

Luciany Aparecida nasceu em 1982, no Vale do Rio Jiquiriçá (BA), é doutora em Letras, pesquisadora de Cultura Popular e autora de Mata Doce (2023), pela Alfaguara; Macala (2022), que é uma plaquete do Círculo de Poemas das editoras Luna Parque e Fósforo; Joanna Mina (2021), dramaturgia que resultou de edital do Teatro da USP. E com a assinatura de Ruth Ducaso – Ruth em homenagem à avó – publicou Florim (2020) e Contos Ordinários de Melancolia (2017), ambos pela paralelo135.

Lançamentos do livro na Bahia:

Flica: Sexta-feira (27), às 14h, na Casa Preta, com mediação de Fernando Baldraia

Salvador: 11 de novembro, às 16h, na LDM do Shopping Bela Vista, com mediação de Denise Carrascosa

A Flica

A escritora Luciany Aparecida participará da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), que ocorrerá desta quinta (26) a domingo (29), em Cachoeira, no Recôncavo baiano. Na sexta (27), ela lançará Mata Doce. Este ano, a Flica tem como tema as Poéticas Afroindígenas no Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia e receberá nomes como o baiano Tiganá Santana, a escritora indígena Auritha Tabajara e a pesquisadora nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí.

A curadoria foi feita de forma coletiva e dividida por espaços. Na Tenda Paraguaçu, um dos principais palcos da Festa, os convidados serão as escritoras Auritha Tabajara, Eliane Potiguara, Cleidiana Ramos e as estrangeiras Oyèrónkẹ Oyěwùmí e Teresa Cárdenas, com curadoria de Luciana Brito e Mirian Reis. Outros nomes estarão presentes como o jornalista Jean Wyllys e a escritora Marilene Felinto.

Na Fliquinha, a curadora Clara Amorim (Duca) confirmou a presença de Igor Millord, Cia Avatar de Teatro, Cássia Vale, Natalyne, Estevão Ribeiro, entre outros nomes. Já no espaço Geração Flica, coordenado por Jocivaldo Bispo, serão convidados Kamaywrá Pataxó, MC Akuã e Ricardo Ismael, além do moçambicano Féling Capela e do guineense Miguel Marcos José de Barros.

A novidade de 2023 é que, além dos espaços na cidade de Cachoeira, serão realizadas atividades na vizinha São Félix. A Festa Literária é promovida pela Secretaria Estadual de Cultura (Secult).