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Luiza Gonçalves
Publicado em 17 de abril de 2025 às 09:29
Andarilho na cidade com sua arte-indumentária, o artista plástico, poeta e performer Jayme Fygura marcou a cultura soteropolitana com sua estética singular e sua intensa vivência artística. Falecido em 2023, Jayme é uma figura vívida na memória da cidade, antes e depois da utilização de suas características máscaras de ferro. >
“Meu primeiro contato com Jayme Fygura ocorreu no final da década de 1980, período em que ele ainda não utilizava máscaras, mas já integrava a cena punk de Salvador. Posteriormente, passei a vê-lo já mascarado pelas ruas do Centro Histórico da cidade, onde sua presença adquiria um caráter quase mítico. Recordo-me vivamente de sua aparição em meio à multidão, usando máscaras metálicas e armaduras improvisadas — uma figura que combinava distopia, espiritualidade e provocação estética”, relembra o também artista Danillo Barata.>
Barata é o responsável pela curadoria da exposição 'Jayme Fygura: De Corpo e Alma', que reúne, na Caixa Cultural Salvador, 50 obras inéditas de Jayme Fygura, entre pinturas em acrílico sobre tela, objetos icônicos, esculturas em ferro, falos de Exu, manuscritos, vestimentas performáticas e o documentário “Sarcófago”, dirigido por Daniel Lisboa, que investiga o universo criativo de Fygura. A mostra fica em cartaz até o dia 06 de julho, com visitação de terça a domingo, das 9h às 17h30.>
De acordo com o curador, o processo de seleção das obras partiu do desejo de evidenciar a potência estética e política da obra de Jayme Fygura, respeitando, ao mesmo tempo, sua complexidade e suas contradições. Divide-se em três eixos conceituais — corpo, espiritualidade e insurgência — que condensam as forças simbólicas presentes em sua trajetória artística.>
“Tem início com a imagem de Jayme montado em um cavalo, remetendo à figura de São Jorge, em alusão às batalhas internas e simbólicas enfrentadas pelo artista. Em seguida, percorre sua produção pictórica e culmina em uma imersão audiovisual, por meio do documentário e dos registros sonoros e visuais de suas performances. A expografia e a iluminação foram concebidas para criar zonas de suspensão e intensidade, permitindo ao público um mergulho sensível não apenas na obra, mas também no universo imagético do artista”, explica o curador.>
Corporeidade>
Escultura, performance em um manifesto vivo que usa do corpo como seu principal veículo. A centralidade da corporeidade na obra de Fygura é uma das suas características de maior destaque e conceito principal da exposição, aponta Barata. “Se insere na tradição daquilo que Fanon denomina ‘experiência vivida do negro’, em que a materialidade corporal é marcada pelo olhar externo, pela objetificação e pelo trauma colonial. Suas esculturas, máscaras e pinturas exploram o corpo como território de inscrição da violência, mas também da reinvenção.”>
Barata destaca que, apropriando-se de materiais reciclados, sucatas e detritos urbanos, Jayme subvertia a estética da precariedade em uma estratégia de potência criativa, desestabilizando leituras homogêneas do corpo negro e tensionando noções de humanidade e subalternidade. Assim, o maior desafio da exposição teria sido a conservação material das peças artísticas e a propagação da poética transgressora e performática de Fygura, sem reduzi-la ou estereotipá-la.>
O curador também ressalta o caráter outsider da produção do artista plástico, criando à margem do circuito institucional e com os restos da matéria, sendo ora reconhecido como ícone, ora rejeitado como corpo estranho e tendo, nesse reconhecimento, embora póstumo, a chance de reparar simbolicamente esse apagamento histórico.>
“Sua principal contribuição, a meu ver, está na criação de uma linguagem própria, enraizada na cosmogonia afro-brasileira, mas também profundamente urbana e contemporânea. Ele nos legou uma obra que é, ao mesmo tempo, cicatriz e oferenda. Jayme Fygura inscreveu a sua existência na paisagem simbólica de Salvador — e agora, com esta exposição, reafirmamos a sua importância como um dos grandes artistas da arte brasileira recente”, arremata Barata.>