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Roberto Midlej
Publicado em 5 de dezembro de 2024 às 09:18
O jornalista Maurício Kubrusly começou a atuar na profissão há quase 60 anos, mas foi nos anos 1980, quando estreou na TV Globo, que ele se tornou popular no país. Suas reportagens tinham um estilo muito próprio, o que não era comum numa época em que a televisão impunha uma atuação meio quadradona dos repórteres, sem dar espaço à ‘autoralidade’ nem a estilo. Kubrusly, que era do jornalismo cultural, chamava a atenção principalmente por imprimir um ritmo agitado às suas matérias. Era frenético, às vezes até meio afetado. >
Por isso, pode parecer chocante ver o jornalista aos 79 anos tão sereno, debilitado por uma demência em grau bastante avançado, como vemos no documentário Kubrusly - Mistério Sempre Há de Pintar por Aí, que está no Globoplay. É triste ver que hoje, por mais de uma vez, o ex-repórter não reconhece sua própria imagem. A determinada altura, ele vê seu reflexo num espelho e pergunta à esposa, Beatriz: “Quem é aquele maluco ali?”. “Aquele maluco é você”, ela responde.>
Mas se há tristeza no documentário dirigido por Caio Cavechini e Evelyn Kuriki, sobram delicadeza e poesia também. A cada cena, o jornalista parece estar redescobrindo a vida, como uma criança. Para ele, tudo parece novo, afinal não se lembra de nada. E também parece ter medo de tudo, como se estivesse reaprendendo a viver. Mas tudo é feito com muito cuidado, sem expor Kubrusly, graças à habilidade dos diretores. Logo na primeira cena, ao sentar à beira da piscina, arrisca-se a molhar os pés e pergunta à esposa: “E eu fico aqui dentro?”, diz, desorientado, sem saber como se comporta.>
É a arquiteta Beatriz Goulart, esposa de Kubrusly, que trata de lhe dar orientação. Não à toa, é a única pessoa que o jornalista reconhece e, mais que isso, lembra do nome dela quase sempre. É desolador ver o desespero dele quando sabe que a esposa precisou sair de casa por uns instantes. Parece novamente perdido, indefeso como uma criança que se perde por alguns segundos dos pais num shopping. “Onde você está?!”, berra ele, no portão de casa, buscando por Beatriz. E novamente, como se falasse com um menino de três ou quatro anos que sente falta da mãe, a moça que o acompanha diz “Vamos sentar ali e esperar?”, como se o consolasse e dissesse “mamãe já volta”.>
Beatriz está com Kubrusly há cerca de 21 anos e o conheceu num aplicativo de relacionamentos. Os cuidados dela e a dedicação ao companheiro são raros e é quase uma devoção. E é aí que vemos o tal “instinto materno”: Beatriz se dedica ao marido como se fosse um filho. Leva ao médico, faz atividades para estimular o pensamento dele, põe as músicas favoritas de Kubrusly para ele ouvir, sai para passear. Então, nos perguntamos: quantos homens na mesma situação de Beatriz seriam capazes de fazer o mesmo por sua esposa? >
Na sociedade machista em que vivemos, seguramente poucos o fariam. Quantos homens abdicam de sua vida para cuidar dos pais, dos filhos ou da esposa? Kubrusly é uma lição de luta, de resistência, de bravura, sem dúvida. Beatriz é um exemplo de generosidade e do mais genuíno amor e talvez seja ela a maior atração do documentário. >
Está a todo o tempo pensando na saúde mental dele, mesmo sabendo que não há cura para a demência frontotemporal que acomete o marido. Quando se muda de casa com ele, preocupa-se em manter os móveis na mesma disposição do antigo imóvel: “Não sei se funciona, mas mesmo assim, eu faço”, diz, sempre esperançosa.>
A música tem também papel essencial no filme e no tratamento de Kubrusly. Apaixonado por canções, é bonito ver o esforço dele para se lembrar dos versos de que mais gosta, como em Palpite Infeliz, de Noel Rosa, em uma sessão virtual com a fonoaudióloga. Sim, ele erra. E daí? O encontro com Gilberto Gil - que empresta os versos de Esotérico para o título do filme - é um dos momentos mais emocionantes. >
Kubrusly, ao ouvir a canção do compositor tropicalista, repete frases que sempre diz ao ouvir uma música de que gosta: “Olha isso!”; “Olha essa música!”, diz, com um deslumbramento de dar inveja. É como nós agimos quando escutamos uma canção pela primeira vez. É também o impacto que sentimos quando vemos um belo filme que ainda não conhecíamos. Para Kubrusly, tudo é sempre uma primeira vez.>
Disponível no Globoplay>