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Luiza Gonçalves
Publicado em 13 de fevereiro de 2025 às 08:15
Vera Lúcia da Silva, 62, é trabalhadora doméstica e fazia faxinas em algumas casas de Recife até pouco tempo atrás. Em uma dessas residências, Vera mantinha o hábito de conversar com as outras funcionárias. Fato que despertava uma fala irônica de seu patrão: “Você conversa muito, deveria escrever um livro”. Toda semana, ouvia a mesma coisa. “E aí teve um dia que cheguei aqui na casa de Wedna e disse: ‘Menina, esse homem tá me enchendo o saco. Pois eu vou escrever um livro, com a minha história. Vamos?’”, relembra. >
Vera também era funcionária na casa da professora de Psicologia da UFPE, Wedna Galindo, que, naquele momento, virou sua companheira e coautora no projeto do livro Espanador Não Limpa a Poeira: Memórias e Aprendizados de uma Empregada Doméstica. Em suas 96 páginas, a obra reúne um relato pessoal e reflexivo sobre as cinco décadas de trabalho doméstico desempenhados por Vera. Tempo marcado por preconceito, superação e luta por dignidade e respeito.>
“Lembro que eu me senti honrada pela confiança e, em alguns momentos, até preocupada, porque eu achei que eu não ia dar conta do pedido dela. No processo, acompanhei sua postura crítica, ainda que ela não necessariamente tivesse consciência de todas as dinâmicas envolvidas. Vera tem o saber e o que eu tentei fazer foi transmitir esse saber usando a linguagem dela. A história já existia e pedia para ser contada”, defende Galindo.>
Ambas explicam que, mesmo antes da ideia do livro surgir, sempre conversavam muito sobre as vivências e experiências profissionais de Vera. Restava ‘apenas’ a tarefa de registrar e organizar esses relatos. Compilaram tudo em pequenos textos que contam a história de Vera desde a infância no interior de Pernambuco até reflexões sobre respeito no trabalho doméstico, passando por temas como remuneração, direitos e abusos de patrões. O livro conta ainda com um prefácio de Luiza Batista, coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas.>
“Lembrar dessas histórias, voltar ao passado, teve coisas que foram fáceis e outras bem difíceis. Mas o livro foi feito como se fosse uma terapia, conversando com Wedna. Hoje, consegui contar essa minha história. Foi muito lindo isso”, explica Vera. Se tomou gosto, vai fazer outro livro? “Vontade dá sim! Agora, vamos ver se minha amiga está disposta de novo”, diz.>
Nascida no Engenho Palma, em Sirinhaém, Zona da Mata Sul de Pernambuco, Vera Lúcia iniciou no trabalho doméstico aos 12 anos e migrou para Recife aos 14 anos, desempenhando a função de empregada doméstica até o nascimento do seu terceiro filho, quando passou a ser diarista.>
Uma das primeiras lembranças de Vera nomeia o livro. Designada pela patroa da época, deveria limpar móveis com um espanador, mas não obtinha êxito na tarefa e era chamada de incompetente, pois não sabia que a ferramenta apenas deixava a poeira em suspensão. “Esse título é mais que uma lembrança, é uma metáfora para como sempre fomos tratadas: invisíveis e desvalorizadas”, reflete a autora.>
O principal objetivo das autoras é que o livro alcance as trabalhadoras domésticas, mas que também suscite o debate e a reflexão. “Considerar que todo mundo que compõe esse país tem alguma coisa para dizer sobre o lugar que está. Permitir que as pessoas possam falar por si, sobre o que é da realidade delas. E como eu, que tenho algum conhecimento específico em determinada situação, posso contribuir para que essas vivências ocupem espaços”, diz Wedna.>
“Eu aprendi com o tempo, com os meus pensamentos. Outras pessoas continuaram naquela mesma época de que só o patrão está correto e nós estamos erradas, que somos invisíveis. Mas percebi que queria ser vista, mesmo entre trancos e barrancos. Eu comecei a estudar, ter novas amizades, conversar mais com as minhas companheiras. E espero que esse livro chegue em algumas delas”, finaliza Vera.>
*Com coordenação da editora Doris Miranda>