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Thais Borges
Publicado em 17 de fevereiro de 2024 às 16:55
“Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime”, escrevia o advogado, jornalista e patrono da Abolição da Escravidão no Brasil, Luís Gama, em um artigo publicado em um jornal, em 1880. As palavras de Gama - homem preto filho de mãe negra liberta e pai branco, nascido em Salvador - encontram eco ainda hoje. >
No Brasil colonial, a pele preta era considerada oficialmente como um defeito. Pelo ‘erro’ da origem, pessoas eram impedidas de exercer cargos públicos ou de destaque na sociedade. De uma expressão racista, a autora mineira Ana Maria Gonçalves extraiu a inspiração para escrever o livro Um Defeito de Cor, lançado em 2006 pela editora Record. >
Quase 20 anos depois, a obra inspirou o enredo da escola de samba Portela neste Carnaval, que conquistou o 5º lugar no grupo especial. "Saravá Kehinde! Teu nome vive! Teu povo é livre! Teu filho venceu, mulher", diz um dos trechos da música, que fala diretamente com a protagonista da história. >
O desfile foi uma das razões para que o livro atingisse o topo dos mais vendidos do país nesta semana, chegando a ficar esgotado por alguns dias em sites como a Amazon e nas principais livrarias do país. A Record fez a reposição do livro, atualmente na 36ª edição, e prepara uma nova tiragem. >
A sinopse oficial talvez não prepare totalmente para a leitura. Diz a contracapa - tal qual os sites de livrarias que vendem o livro - que trata-se da história de uma africana idosa e cega que retorna ao Brasil em busca do filho perdido. Ao longo de uma viagem de navio, ela narra sua vida, marcada pela dor, por estupros, pela violência e pela escravidão. >
“É um calhamaço”, diriam - e dizem - alguns. De fato, a edição padrão tem 952 páginas (a especial, de 2022, tem 968). Ao mesmo tempo que a obra pode assustar alguns pelo tamanho, é praticamente um consenso quanto à sua importância para entender o próprio Brasil. >
História>
Ainda que seja ficção, Um Defeito de Cor é o chamado romance histórico - ou seja, traz elementos que realmente aconteceram em meio à parte inventada. O próprio Luís Gama está intimamente ligado à obra: Kehinde, a protagonista, é a versão ficcionalizada da heroína Luísa Mahin, mãe dele e participante de importantes revoluções da época, como a Revolta dos Malês e a Sabinada. >
Kehinde, porém, era chamada no Brasil de Luísa - apesar de ter se recusado a ser batizada no catolicismo. Nascida no Daomé (atual Benin), foi trazida à força ao Brasil para ser escravizada aos oito anos de idade. Na viagem, perdeu sua avó e sua irmã gêmea. >
"O romance foi publicado já no século 21 e se alinha a uma genealogia de obras literárias de autoria negra que, desde o século 19 - se a gente pensar no momento importante com a produção de Luís Gama e Maria Firmina dos Reis -, têm rediscutido uma ideia de Brasil, um projeto de nação, da perspectiva negra da experiência social das comunidades negras neste território", explica a professora Fabiana Carneiro da Silva, docente do Departamento de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autora do livro Ominíbú: maternidade negra em Um defeito de cor, fruto de sua tese de doutorado. >
Para Fabiana, o romance é um acontecimento pelo modo como se propõe a fazer isso: contando as travessias de uma mulher - desde a diáspora forçada a que ela é submetida, enquanto escravizada, até a compra de sua liberdade, sua experiência como liberta no Brasil, o retorno à África e sua nova vinda ao Brasil. >
"É muito bonito, potente, profundo e simbólico que o romance seja configurado como uma carta em que Kehinde narra, já idosa, em pleno Oceano Atlântico. Então, ela vai contando para a gente, na verdade para o filho dela, dentro dessa estrutura ficcional da obra, a história da vida dela. Tem todas as várias camadas que vão ajudar a gente a pensar nessa arquitetura do romance que desestabiliza um pouco dessa fronteira entre a ficção e a história". >
Realidade>
Essa linha entre o que é real e o que é criação é mesmo atravessada em inúmeros momentos por Ana Maria Gonçalves. Logo no prólogo, a autora diz que a história é fruto da serendipidade - uma palavra ainda pouco usada no português que costuma indicar uma situação em que alguém descobre uma coisa enquanto estava procurando por outra. >
Ela começa falando sobre quando se mudou para a Ilha de Itaparica, decidida a escrever um livro sobre a Revolta dos Malês. Depois de uma peregrinação, diz ter encontrado documentos que pareciam escritos em português antigo. Seriam as anotações de Kehinde. "Torço para que seja verdade, para que seja ela própria a pessoa que viveu e relatou quase tudo o que você vai ler neste livro", escreve a autora. >
Para o professor Marcelo Dalcom, autor de Nas Entrelinhas de um Defeito de Cor (resultado de sua dissertação de mestrado em Estudo de Linguagens), esse recurso consegue mexer com o imaginário dos leitores. >
"Outros romances históricos que falam sobre escravidão e escravizados partem do ponto de vista do colonizador, do branco ou talvez de um branco abolicionista. Ana Maria vem na contramão. Kehinde é uma menina negra capturada com a família e que chega aqui sozinha. O livro é sobre o olhar dela. Talvez esse seja um dos encantos do livro: ela é a dona da história dela", analisa. >
Ele defende que trata-se de uma leitura obrigatória, do tipo que deveria ser indicada até nas escolas. "É um livro muito importante para trazer outras vozes. É importante para entender a história como se deu", reforça. No caso de quem mora em Salvador, o diálogo com a vida na cidade é quase ininterrupto. "É muito forte para a gente que é de Salvador. Você anda pela cidade e vai vendo os locais onde Kehinde passou".>
Para a professora Fabiana, da UFPB, identificar o que é real e o que é ficcional talvez seja justamente o que o livro pretende questionar. "Ele quer implodir esse questionamento e ele faz isso formalmente enquanto uma obra de arte", pontua. Uma reflexão que ela propõe é constatar o quanto a história negra no país foi rasurada e como a ficção preenche essas lacunas. "O romance se vale dessa encruzilhada epistemológica entre a ficção e a história porque isso diz muito respeito a uma experiência de possibilidades e impossibilidades da criação de narrativa sobre experiência negra no Brasil". >
Adaptação>
O enredo da Portela não foi a única adaptação da obra. Uma exposição homônima inspirada no livro também já passou pelo Rio de Janeiro e, atualmente, está em exibição no Museu Nacional da Cultura Afro–Brasileira (Muncab), no Centro Histórico de Salvador. A mostra fica em cartaz até o dia 3 de março e a entrada custa R$ 20. >
De acordo com a diretora do Muncab, Cintia Maria, mais de 60 mil pessoas já passaram pela exposição desde a inauguração, em novembro do ano passado. A exposição se divide 10 ambientes que remontam aos 10 capítulos do livro.>
"Separar uma mãe de seu filho é algo que nos toca profundamente. O livro aborda essa busca de Kehinde, assim como a exposição e o desfile da Portela", diz. "A luta de Kehinde ainda é a luta de todas as mães negras atuais, a luta por ver seu filho crescer", acrescenta Cintia.>
Da mesma forma, ela destaca a força do samba-enredo da Portela. "Ao mencionar ‘teu nome vive’, destaca-se a perpetuação da memória e da identidade dos ancestrais que foram escravizados. Em ‘teu povo é livre’ ressalta a luta e a conquista da liberdade pelos descendentes dos africanos escravizados. E, por fim, ‘teu filho venceu, mulher’ celebra o triunfo da resistência, honrando as mulheres negras que desafiaram as injustiças e adversidades da escravidão". >
Em 2019, uma série baseada no livro chegou a entrar em pré-produção pela TV Globo, mas o projeto não foi adiante. >