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Luiza Gonçalves
Publicado em 27 de março de 2025 às 10:22
Há 70 anos, A Falecida (1953) marca a dramaturgia brasileira não só por sua trama, mas por ser uma das obras que resguardam em si o poder de se manter atrelada à sociedade brasileira. Essa foi a principal razão que levou o diretor Sergio Módena, após anos estudando a obra de Nelson Rodrigues, a levar sua versão da peça aos palcos. "A Falecida é extremamente atual. Ali há questões pertinentes tais como o machismo, a misoginia, o apagamento de uma classe social, a impossibilidade de redenção, a culpa e o fanatismo religioso”, justifica. >
O clássico estará em cartaz em Salvador de hoje (27) até domingo (30), na Caixa Cultural de Salvador, com Camila Morgado no papel principal. Ela é definida por Módena como rodrigueana por excelência: “Camila tem a força e a inquietude das grandes atrizes, é trágica e cômica. Nelson dizia que seus diálogos em A Falecida eram ‘dupla face’, ou seja, faziam rir e ao mesmo tempo geravam tensão no espectador. Uma qualidade que somente grandes atores possuem”. >
Essa também é a estreia de Morgado encenando Rodrigues. “Acho todos os personagens femininos do Nelson maravilhosos. Mas no momento, sendo bem franca, estou toda Zulmira! Estou experimentando o universo desta heroína trágica”, conta, animada. A trama, ambientada no subúrbio carioca, narra o cotidiano da tuberculosa e frustrada Zulmira, que sonha em ter um enterro cheio de luxo e pompa. Dessa forma, ela causaria inveja à prima e vizinha Glorinha, com quem mantém uma relação inexplicável de competição.“ É uma heroína trágica”, define a atriz. >
Zulmira>
Morgado destaca que um dos pontos que mais a atraem em Zulmira está na riqueza de afetos, ambições e emoções da personagem. “Ela está em busca de uma solução para sua vida infeliz, passa pela conversão religiosa, pela culpa, pela ganância, pela inveja, pelo ódio. Zulmira é alguém que nunca vai ascender socialmente, e que sabe da sua condição, mas ainda assim sonha com um enterro ‘de parar o trânsito’, com um desfecho glorioso”, reflete.>
Reencenar um clássico é um caminho cheio de desafios, revela o diretor Sergio Módena. Dentre eles, o primeiro foi o de se desapegar de inúmeras referências da obra que tinha como espectador, a exemplo do também memorável filme de 1965, estrelado por Fernanda Montenegro. “Depois foi saber equilibrar cenicamente esse universo rodrigueano que combina desejo, culpa, tragédia, comédia e melodrama em um mesmo texto”. O sucesso da montagem é atribuído por Módena principalmente à boa relação e dedicação do elenco, que também é destacada por Camila Morgado.>
“O diretor da peça e eu sempre imaginamos representar Zulmira com credibilidade, dando sentido a essa mulher que elabora seu próprio destino, alguém que percorre todas as etapas de sua própria destruição. O processo de criação do espetáculo foi de muita colaboração na criação, com um diretor atento às propostas dos atores. Foi um processo construído na base da amizade e confiança”.>
Um dos pontos de reflexão na peça está nas temáticas abordadas no texto original e que ainda repercutem no século XXI, como hipocrisia, fanatismo religioso e desigualdade social. “O teatro de Nelson fala de universo interior profundo. Ele criou personagens psicologicamente complexos. Acho que é por isso que o Nelson é tão amado ou odiado. Ele causa polêmica quando toca em pontos que são cruciais, delicados”, diz a atriz.>
Segundo Morgado, a peça tem gerado questionamentos no público: “Seria uma obra machista ou contra o machismo?”, disseram. Ela vê isso como uma oportunidade de discutir a representação do feminino na obra de Nelson Rodrigues e a invisibilização da mulher na sociedade.>
“Zulmira leva uma vida medíocre, está inserida em um ambiente opressor onde seu marido mal a percebe, os outros homens na peça a veem como um objeto de sedução – é bom ver o público se questionando. Acredita ingenuamente que ao morrer, estará salva. Uma forte simbologia sobre o apagamento do feminino. O machismo, a violência contra a mulher, a violência de gênero estão enraizados na nossa sociedade, causando muito sofrimento. Acho importante poder criar pontes de diálogo e reflexão sobre temas tão complexos e difíceis”, finaliza.>