Jayme Fygura e Aurelino: artistas que vagam pelas ruas de Salvador e criam a partir do que veem

Cada um a seu modo, fazem da arte linguagem e, através dela, deixam os rótulos da loucura para trás

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  • Verena Paranhos

Publicado em 7 de maio de 2017 às 07:21

- Atualizado há 2 anos

Na paisagem urbana, a imagem dele se funde com o caos da grande cidade.  De rosto sempre coberto, encarnado em sua armadura, Jayme Fygura surge imponente e chama a atenção antes mesmo de chegar aonde quer que seja. As vestes do artista expressam possibilidades criativas, mas indicam que há ali uma voz dissonante do que a sociedade institui como normalidade. Pouco visto nas ruas recentemente, o artista virou assunto nas redes sociais depois que foi atropelado e internautas lançaram uma campanha para ajudá-lo. 

Na mesma urbe, Aurelino dos Santos caminha e fala sozinho. Franzino e de olhar perdido, deixa seu mundo nos dois cômodos de Ondina e passa despercebido pela cidade cuja “pele” traduz com régua e pincel. Cada um a seu modo, fazem da arte linguagem e, através dela, deixam os rótulos da loucura para trás e ganham identidade de artista. Produzem o contemporâneo e veem suas obras serem desejadas no mercado de arte. Jayme Fygura em armadura feita com couro e metal (Fotos: Angeluci Figueiredo/CORREIO)“É coisa! Sabe ler, sabe pintar”, diz o analfabeto Aurelino sobre as letras e números que marcam presença em suas telas. Salpicados pelo diagnóstico de esquizofrenia e pela pobreza, os símbolos saltam dos quadros, entre casas, igrejas e aviões concretos, em direção a falas desconexas do criador. “O negócio dói sem sentir. Renato Russo é Deus”, balbucia o artista, para, logo em seguida, mostrar certa conexão com a realidade. “O miserável do cantor morreu. Igual a Deus”, comenta Lelo, como é chamado pelos vizinhos, sobre a recente notícia da morte de Belchior, vista na TV de 14 polegadas. 

Há 30 anos, Aurelino percorre a pé, uma vez por semana, o caminho em direção à Paulo Darzé Galeria de Arte, na Vitória. Lá, joga conversa fora e contempla as obras expostas. “Ele conhece muito de pintura. Aponta o que é bom, o que é atual”, conta o marchand, que ao longo do tempo foi colecionando obras do artista, mas diz nunca ter comercializado nenhuma. Segundo ele, no mercado, dependendo do tamanho e do ano,  telas   são vendidas  entre R$ 2 mil e R$ 15 mil.Aurelino dos Santos e seu olhar perdidoDurante um período, a psicanalista Urania Tourinho Peres manteve encontros com Aurelino  na galeria. Para ela, não foi através da dita loucura que  tornou-se artista. “Também não é por ser artista que a loucura fez sua presença. Sua pintura não deixa transparecer a desorganização da patologia que o acompanha, seu talento artístico a transcende e a obra de arte surge, exatamente, onde a loucura não domina”, escreve Urania no catálogo da exposição Transfiguração do Real, que destacou a produção do baiano no Museu Afro Brasil, em São Paulo, em 2012.  

“É uma pintura do inconsciente. Ele faz o que tem na cabeça dele, sem preocupação de agradar a ninguém. As pessoas têm muita expectativa sobre o valor que o trabalho de Aurelino tem, muita gente compara com Artur Bispo do Rosário, mas é outra coisa”, diz Paulo Darzé. 

Já Jayme Fygura usa uma lucidez efusiva para defender sua arte performática e o valor que sua produção tem. O artista ultrapassa as aparições cidade afora para abraçar também esculturas de metais, pinturas, textos escritos e até bandas de rock. “Diziam: ‘Coitado, grande desenhista, ficou maluco, todo rasgado’. Comecei a usar armadura para me proteger, porque jogavam pedra em mim. Mas nunca fui louco. É uma forma de mostrar minha revolta”. 

O personagem ganhou as ruas de Salvador em 1992, quando o plano Collor desestruturou a vida do então desenhista publicitário que se identificava com o movimento punk. “Eu ganhava 15 salários, minha esposa estava grávida do segundo filho. Tinha carro, três cadernetas de poupança, uísque embaixo do braço”, lembra Jayme.  

Apesar de ser conhecido andarilho de Salvador, Fygura gosta mesmo é de produzir longe das ruas, em seu ateliê, no Carmo, que batizou de Sarcófago, e depois entregar as peças ao cliente. “Ele não é só um criador compulsivo de objetos. Tem a experiência de viver o que cria diariamente, caminhar pela cidade, vivenciar a morte para refletir isso na estética das armaduras”, destaca Thais Darzé, outro nome por trás da Paulo Darzé Galeria de Arte, que também adquiriu peças do artista.

De pouca falaAos 75 anos, Aurelino dos Santos fala pouco. Apesar da doença mental, não toma remédios. Pergunta atrás de pergunta, para e desvia o olhar, sempre dando batidinhas com o cabo do pincel na mesa de trabalho. Volta e diz meia dúzia de palavras que podem fazer sentido ou não. Nesse movimento, lembra da infância e do começo na arte. Nasceu e foi criado no bairro de Ondina, passou um período na Escola de Menores, em Brotas e em Paripe, “no tempo em que ali era mato puro”, diz. Mesmo sem educação formal, chegou a trabalhar como cobrador de ônibus e também no ateliê de Mário Cravo. Incentivado pelo escultor baiano Agnaldo Santos, se aproximou da arte. “Peguei uma tela e fui pro Farol da Barra pintar”, lembra as primeiras pinceladas, no começo dos anos 60. Na época, foi apresentado a Lina Bo Bardi, que conseguiu para ele trabalho no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM). Funcionando ainda no foyer do Teatro Castro Alves, o MAM recebeu quadros de Aurelino em uma exposição coletiva. “Podia fazer outra exposição lá. Tem presença”, opina. Apesar de seus quadros já terem sido expostos em São Paulo, Paris e Madri, Aurelino só saiu de Salvador uma vez, por volta de 1967, quando, a convite de Lina e Pietro Bardi, passou cerca de dois anos na capital paulista.

Neste quadro de 1996, o pintor usa colagem com caixas de cigarro e outros produtos, botões, panfletos de propaganda / Tela produzida por Aurelino dos Santos nos anos 2000 TransgressãoQuando trabalhava como desenhista publicitário, Jayme Almeida já se diferenciava do comum por algumas roupas rasgadas e o gosto pelo movimento punk rock. Depois de perder o emprego, em 1992, assumiu de vez a transgressão pelas ruas na persona de Jayme Fygura ao ver suas vestes se tornarem alvo nas periferias. Como forma de proteção contra as agressões que sofria, o artista natural de Cruz das Almas foi acumulando camadas de ferro e aço em uma armadura. Daí nasceu a principal marca artística e identificação do mascarado que cria em seu Sarcófago, no Carmo. Recentemente, o artista foi atropelado, o que tem dificultado sua produção. Poucos conhecem o rosto do homem de 58 anos e imaginam que é marido, pai e até “dorme de pijama”, como diz. O peso do metal ele carrega aonde vai, mas também usa o material como base para esculturas, muitas, inclusive nascidas a partir de armaduras, que, com o tempo, se tornaram mais leve, tendo o couro como base. “Não sou catador de lixo. Só produzo com coisa nova. Eu faço perfeitas, com cheiro de arte, e elas envelhecem no meu corpo com o sol e a chuva”. Sua verve criativa também desagua em pinturas e letras de músicas de bandas das quais foi vocalista, como The Farpa, Missionários do Dízimo e Jayme Fygura e Seus Vermes. “Sou um artista contemporâneo, meu trabalho é profundo”, reivindica. 

Cabeças usadas por Jayme Fygura integram esculturas / Primeira armadura: das ruas para a galeria