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Portal Edicase
Publicado em 19 de setembro de 2024 às 11:30
Uma casa transcende a mera estrutura de tijolos e cimento, madeira e vidro; ou mesmo barro, no caso das sustentáveis. Seja do tamanho que for ou onde estiver plantada, cabe a cada um de nós dar significado a ela. Podemos vê-la apenas como um local físico, apto a nos oferecer espaços para lazer, higiene, nutrição e descanso. Mas, se aprofundarmos o olhar, a trataremos como um lugar sagrado, onde a vida se desdobra em seus rituais diários e as memórias se tecem nas dobras do tempo. >
Acontece que, com a ascensão do consumismo e a supremacia da tecnologia digital, começamos a flertar com sistemas de automação residencial. Engenhocas que controlam iluminação, clima, segurança e entretenimento com o toque de um botão ou comando de voz. Se no início eram muito caras, hoje se popularizaram, e a ideia de uma “casa inteligente” se tornou cada vez mais viável e atraente, promovendo uma integração enorme da tecnologia no ambiente doméstico. >
Na prática, isso significa que automatizamos tarefas banais como ligar o som, acender as luzes ou abaixar as persianas. Mais ainda: trocamos até hábitos corriqueiros e reconfortantes, como passar um café no coador, por inserir uma cápsula na máquina, sem nos dar conta do impacto ambiental gerado por cada uma que vai para o lixo, formando pilhas. >
Em busca do caminho do meio, já que a tecnologia tem lá suas vantagens, não é hora de voltar a refletir que uma casa é feita menos de seus contornos arquitetônicos e mais dos momentos que nela habitam? Na visão do arquiteto e escritor Carlos Solano, a palavra “habitar” implica estar presente e tomar posse de si mesmo. Ele destaca que uma casa, descrita pelo arquiteto Friedensreich Hundertwasser (1928-2000) como “uma outra pele de si mesmo ”, deve ser um espaço que respeita nossa sensibilidade e o que é vivido ali. >
“É preciso habitar em si para verdadeiramente habitar a casa. A tecnologia é bem-vinda, mas não devemos deixar que se sobreponha às experiências que nos movem, aos ritmos que nos são naturais, à conexão com nossas raízes, histórias, memórias afetivas, ao que nos é crucial”, defende Solano, autor de livros que exaltam o bem-estar no lar, tais como Casa Natural (Edição do autor) e Casa Nossa de Cada Dia (Laszlo). >
A tecnologia deveria nos ajudar a ter mais tempo para a vida. “Com ela, poderíamos agilizar os afazeres para, como diz uma amiga, acordar no seu ritmo, respirar, movimentar, meditar, intencionar o dia. Dar graças por estar vivo. Lembrar-nos de quem somos, o que sonhamos, o que amamos, o que queremos, do que somos capazes, a serviço de que nós estamos”, filosofa o arquiteto. Contudo, cada vez mais, a tecnologia incentiva a velocidade, a automação, o imediato, e, nessa esteira a jato, preciosidades do cotidiano ficam para trás. >
Opinião muito semelhante tem a artesã e educadora Fabi Florinda, criadora da Escola Vida Manual, dedicada ao ensino de habilidades que permitem às pessoas criarem, repararem e manterem objetos e tradições que enriquecem suas vidas diárias e minimizam o impacto ambiental . >
Na visão da professora, a tecnologia deve servir aos seres humanos, à vida e à natureza, proporcionando mais tempo e energia para que cada um possa se conectar com o que realmente importa, como as relações entre pessoas e o cultivo de um propósito. >
“Uma máquina de lavar louças pode nos liberar para dedicar mais tempo cozinhando com nossos filhos, ou fazendo outras manualidades. A internet pode nos colocar em contato com informações e sabedorias que antes estavam muito distantes”, ela enaltece. >
O problema é que a tecnologia não está nos servindo. Nós estamos servindo a ela. Assim nos afastamos da natureza e uns dos outros. Mas, felizmente, há contrapontos. Os trabalhos realizados com as mãos, inclusive, se posicionam como uma antítese ao avanço avassalador dos aparelhos em nossos lares. >
Fabi acredita que esse resgate não é apenas um retorno às raízes, mas um movimento essencial para reconstruir a conexão perdida com o processo de criação. “No ritmo frenético de hoje, no qual tudo é instantâneo e efêmero, o fazer manual emerge como um ato de resistência”, explica. E, a cada dia, esse estilo de vida ganha novos adeptos, provando que nossa alma quer ser preenchida. >
Uma casa é só um bem material. Já um lar é profundo, envolve história e sentido. Fabi observa dois processos que se entrelaçam na tessitura de um ninho: o despertar do corpo e o despertar do sentir. O primeiro consiste em reaprender e praticar a habilidade do fazer. >
“É simples, basicamente aprender como fabricar as coisas do dia a dia com as próprias mãos. O alimento, os produtos de limpeza, os cosméticos, os artigos costurados”, diz a artesã. Mas isso, por si só, ainda não traz a sensação própria de um casulo. “Também é preciso acordar sentimentos . Apenas quando estamos atentos, observando e disponíveis para sentir, percebemos o sagrado que vive nas pequenas coisas do cotidiano.” >
Tal compreensão remete ao que Carlos Solano chama de receituário maravilhoso de cuidados para com a pessoa e a morada, fruto da cultura popular das nossas avós. “A avó é um arquétipo do cuidado, do feminino ancestral e sábio.” >
Em cada linha de costura, em cada grão de café manualmente filtrado e em cada planta que floresce sob nossos cuidados, reafirmamos o lar como um santuário de histórias e tradições. Ponto de encontro onde o coração descansa e a alma dança. >
Por Gustavo Ranieri – revista Vida Simples >
Jornalista e poeta. Em cada canto da sua casa busca a poesia do cotidiano e a essência dos momentos compartilhados. >