Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Agência Brasil
Publicado em 28 de janeiro de 2025 às 09:58
Era noite de 24 de janeiro de 1835. Um grupo de africanos, a maioria escravizada e alguns libertos, se reunia em um sobrado em Salvador (BA). Eram, sobretudo, muçulmanos trazidos à força de países como Senegal, Togo, Mali e Nigéria. Eles discutiam os últimos detalhes de um levante planejado para eclodir na manhã seguinte. Mas houve uma delação e a movimentação de soldados imperiais exigiu uma mudança de planos: o levante foi antecipado.>
A mais importante rebelião urbana de escravizados do Brasil ficou conhecida como a Revolta dos Malês. Na noite de sábado (25), 190 anos após o episódio, sua história foi apresentada ao público da Mostra de Cinema de Tiradentes. O filme Malês, do diretor Antônio Pitanga foi exibido em pré-estreia em praça pública.>
"O meu sonho era trazer à baila essa história que a escola não conta. E humanizá-la de tal maneira para poder interagir com o século 21. Concluída a obra, o meu sonho agora é ir para banca dos saberes, escolas, para as universidades, os quilombos. E já está acontecendo. Nós recebemos telegrama de três universidades americanas nos convidando e fomos lá para Princetown, para a Pensilvânia e para Harvard. E aqui em Tiradentes já recebi vários convites de universidades", conta.>
"O meu filme não pode ficar só nas salas de cinema frequentadas por brancos de classe média. Eles também vão ver. Mas esse filme precisa chegar às escolas, à favela e ao quilombo", acrescenta.>
Os malês, como eram conhecidos os muçulmanos negros, conheciam o alfabeto árabe, tinham domínio da escrita e grau de instrução elevado. Embora sejam os protagonistas do levante, buscaram também o apoio de outros grupos escravizados. A rebelião foi minuciosamente planejada e havia sido marcada para 25 de janeiro, por ser a data que celebra o fim do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos.>
Os enfrentamentos duraram mais de três horas. Mais de 70 africanos morreram nos conflitos e centenas foram punidos com penas de morte, prisão, açoites ou deportações. O episódio é detalhado no livro Rebelião Escrava no Brasil, publicado originalmente em 1986 pelo historiador João José dos Reis. A obra foi a principal referência para a produção do filme.>
A preparação do figurino e a caracterização dos personagens demandaram estudo aprofundado. Além disso, os atores fizeram aulas de árabe, já que há diversas cenas em que o idioma é usado.>
Malês, como observa Pitanga, não é um retrato frio do episódio. O filme dá espaço para que os personagens revelem suas individualidades: seus sonhos, suas tristezas, seus amores. Segundo o diretor, houve também a preocupação de fugir do estereótipo do escravo enquanto vítima passiva. "São cabeças pensantes", afirma.>
O elenco conta com a presença dos filhos de Antônio Pitanga: o ator Rocco Pitanga e a atriz Camila Pitanga. Uma senhora branca é interpreta por Patrícia Pillar. O diretor destaca a importância do crescimento de filmes com elencos majoritariamente negros, citando também o filme Kasa Branca que estreará nos cinemas na quinta-feira (30) sob direção de Luciano Vidigal.>
Rocco Pitanga vê um cenário diferente para as novas gerações. "Estou hoje com 44 anos e comecei a atuar com 20 anos. Normalmente. quando eu encontrava um colega negro em um teste, eu já sabia que era só um de nós que ia ser escolhido para fazer o personagem negro. E, de repente, estamos vendo surgir filmes aonde é possível ver vários atores interpretando personagens com as suas individualidades. Filmes que exploram os sonhos e a jornada de cada um".>
O filme vem sendo promovido ao longo da Mostra de Tiradentes, que chega à sua 28ª edição. Organizado pela Universo Produção, o evento é um dos principais festivais de cinema do país, conta com programação que se estende até 1º de fevereiro e inclui ao todo 140 filmes, além de debates, shows, oficinas, lançamentos de livros e outras atividades. Em diferentes momentos, Antônio Pitanga tem aproveitado o contato com o público para discutir sobre o seu trabalho.>
O diretor faz uma comparação com o longa-metragem Ainda Estou Aqui, primeiro título brasileiro indicado para o Oscar na categoria de Melhor Filme. Segundo ele, Malês deverá construir sua própria trajetória.>
"O Oscar exige estofo financeiro para fazer o lobby. O Walter Salles sabiamente buscou dar visibilidade ao filme nos países onde estão os jurados que podem decidir. O meu filme vai precisar construir seu caminho por meio dos espaços de saber. E, além disso, a Globo é sócia nessa obra. Eu tinha a responsabilidade de entregar uma série de quatro capítulos de 30 minutos cada um. Eu quero que o filme chegue nos cantos mais longínquos do país". A série ainda não tem data para ir ao ar.>
Direção>
Descendente de negros escravizados, Antônio Pitanga conta que um dos principais desafios foi mediar os sentimentos. Eu precisava fazer essa história. É a minha contribuição à vida artística, à cultura, à minha cidadania. Havia uma necessidade muito grande de não trazer a raiva e o ódio e sim jogar luz sobre a própria história que o Brasil não conta". Antes das filmagens, ele conversou com cada integrante do elenco sobre o que era a Revolta dos Malês.>
Uma das preocupações do diretor foi reduzir as cenas de violência explícita. O episódio de um estupro é retratado sem mostrar rostos e de forma lateral. O açoite de escravos toma conta da tela uma única vez. Em outros momentos, o castigo é retratado a partir de diferentes estratégias de montagem.>
"Eu podia ter colocado outros escravos sendo chicoteado, mas já vi esse tipo de cena. O branco sempre faz filme em que o negro é chicoteado. Eu não quero vender no meu filme que o negro é só vítima. São cabeças pensantes", explica Pitanga.>
Ele também revela como surgiu a ideia de uma cena em que os revoltosos capturam a senhora interpretada por Patrícia Pillar. Eles a abandonam acorrentada e com uma mordaça de ferro. "Em um contexto de violência, seria fácil colocar os negros escravizados matando a senhora branca. Era, inclusive, o que tinha em mão no roteiro. Um dia acordei e falei: Não! Vou colocar ela no lugar da escrava. Ali são 12 segundos. Eu também não queria uma eternidade".>
A atriz Samira Carvalho, que compôs o elenco, considerou a escolha assertiva. "A imagem é tão incomum. A gente está acostumada com essa imagem quando a figura que está sendo amarrada é a figura preta. E aí, quando a gente vê uma mulher branca, é um choque. Não a toa o público geralmente reage muito nessa cena".>