Antonio Cicero era um intelectual na música popular

oeta e filósofo que morreu nesta quarta (23) era também letrista de Fullgás e O Último Romântico

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Publicado em 24 de outubro de 2024 às 05:00

Chico Cerchiaro/Companhia das Letras
Chico Cerchiaro/Companhia das Letras Crédito: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras

“Pátrias, famílias, religiões/ E preconceitos/ Quebrou não tem mais jeito”. Os versos - simples, diretos e sem rebuscamentos - são uma parte de um clássico da cantora Marina Lima, Pra Começar, que abria a novela Roda de Fogo (1986). A letra é de autoria do irmão dela, Antonio Cicero, que morreu nesta quarta-feira (23), aos 78 anos. Embora fosse intelectual, filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), ele soube transitar muito bem na música popular.

É de Antonio Cicero também a letra de Fullgás, cuja riqueza já começa no trocadilho do título, uma brincadeira entre a palavra “fugaz”, da língua portuguesa, com o inglês, que significa algo como “cheio de gás”. Marina já revelou a importância da canção, que foi decisiva para sua ascensão como artista: “É uma coisa honesta, tem uma coisa ousada. Foi com essa música que meu trabalho autoral levantou voo, tenho um carinho enorme por essa música”.

Cicero, que era poeta, tornou-se letrista de canções involuntariamente, quando Marina, ainda desconhecida em meados da década de 1970, resolveu, sem conhecimento do irmão, transformar em música o poema Alma Caiada, que ele havia escrito. Maria Bethânia chegou a gravá-la em 1976 para o álbum Pássaro Proibido, mas a Censura a excluiu. Em 1979, Zizi Possi registrou a música no álbum Pedaço de Mim. Cicero acabou se rendendo e passou a compor músicas para a irmã e outros parceiros, como João Bosco, Adriana Calcanhotto e Lulu Santos. Com este último, dividiu a autoria de outro clássico do pop nacional, O Último Romântico.

Dentre os livros de poemas de Cicero, destacam-se Guardar (Editora Record), de 1996, e A Cidade e os Livros (Editora Record), de 2002. Cicero ainda teve o poema Guardar incluído na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (Editora Objetiva) em 2001 e foi finalista do Prêmio Jabuti pelos ensaios filosóficos reunidos em Finalidades sem Fim (Companhia das Letras) em 2005.

Cicero entrou para a ABL no dia 10 de agosto de 2017, quando passou a ocupar a cadeira número 27, que antes era ocupada por Eduardo Portella. "O que é um poema imortal? Um poema imortal é um poema cujo valor não depende de fatores externos a ele: um poema, portanto, que vale por si", declarou ele em seu discurso de posse.

Morte

Diagnosticado com Alzheimer, Cicero optou pela morte assistida. O escritor estava na Suíça, onde a prática é permitida, acompanhado do marido, o figurinista Marcelo Pies. Na semana passada, o casal havia ido para Paris, e de lá, para Zurique, na Suíça. Marcelo revelou a amigos que Cicero vinha planejando havia algum tempo a ida à Suíça, mandando documentos e informações à clínica – e não queria que ninguém soubesse. “Passamos alguns dias em Paris para ele se despedir da cidade que tanto admirava”, disse Marcelo, que mandou aos amigos a carta de despedida.

Nas redes sociais, amigos se manifestaram. Caetano Veloso escreveu: “Cicero foi meu melhor amigo, a pessoa mais correta que conheci. O afeto de amizade mais límpido que se possa imaginar. E uma inteligência luminosa”. "O mais inteligente, íntegro, nobre e belo. O homem mais livre que já conheci”, afirmou Adriana Calcanhotto. A irmã Marina Lima publicou apenas uma ilustração simbolizando luto, mas não escreveu sobre o ocorrido.

O Ministério da Cultura distribuiu um comunicado à imprensa: “Figura fundamental da cultura brasileira, Cicero deixou um legado imensurável de versos, reflexões e melodias que atravessaram gerações, consagrando-o como uma das mentes mais brilhantes da literatura e música nacional”.