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Luiza Gonçalves
Publicado em 28 de novembro de 2024 às 05:47
Psicanalista, rebelde e multifacetado. Esses foram os três pilares escolhidos pelo norte-americano Adam Shatz, escritor e editor da London Review of Books, para reconstruir a trajetória de um dos maiores pensadores do século XX. A biografia A Clínica Rebelde (Todavia) pretende explorar, em uma reconstrução minuciosa e curiosa, as múltiplas vidas de Frantz Fanon (1925-1961), que, apesar de ter vivido somente 36 anos, deixou marcas significativas em seu legado acadêmico, ativismo racial e anticolonial, métodos psiquiátricos e ideologia revolucionária.
Fanon foi um psiquiatra e filósofo político da Martinica, ex-colônia francesa e, hoje, departamento ultramarino francês. Conhecido como ativista e revolucionário do movimento anticolonial, teve sua obra popularizada principalmente a partir do já clássico Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), onde revela a sombra que a opressão racial lança sobre a vida das pessoas negras, e de Os Condenados da Terra (1961), sobre colonialismo, fascismo e crítica ao racismo contra a África multiétnica.
Esse é o resumo que se tem sedimentado da vida de Fanon em ampla escala e que, para Shatz, não captura o drama político e intelectual de sua vida, reduzindo-a tanto em suas qualidades quanto em seus questionamentos. Baseado em biografias anteriores e entrevistas que realizou com pessoas que conviveram com Fanon, o escritor começou, em 2001, a escrever A Clínica Rebelde para tentar recuperar os fragmentos do "eu" por trás do intelectual, suas tensões e o constante espírito de rebeldia que o guiou pelo mundo. “Neste livro, explorarei as perguntas que Fanon fez e as que ele deixou de fazer, porque ambas explicam muito, não a respeito do profeta, mas a respeito do homem”, afirma Shatz no epílogo da obra.
Martinicano de nascimento, argelino por escolha e cidadão francês por omissão, acompanhamos a infância, adolescência e vida adulta de Fanon, localizando as origens de suas dores, que sedimentaram o modo como via, vivia e expunha suas convicções. Vemos sua incursão nas forças da França Livre na Segunda Guerra Mundial, passando pelo período de estudos médicos na França, até a mudança para a Argélia, onde integrou a Frente de Libertação Nacional até sua morte, além de sua passagem pela Tunísia e outros países africanos.
A descrição da relação entre Fanon e a Argélia é um dos pontos mais interessantes da obra. Ao chegar no país em 1953, o intelectual assumiu o cargo de diretor do hospital psiquiátrico de Blida, ocupando, ironicamente, a posição de um administrador colonial. No entanto, sua atuação foi marcada pela busca por humanizar o cuidado médico e pela crítica ao racismo estrutural.
Introduzindo abordagens terapêuticas inovadoras para reengajar pacientes marginalizados no cotidiano, Fanon mergulhou na cultura local. Quando a revolução estourou, em 1954, abraçou a causa, não apenas como médico, mas como participante ativo, articulando diálogos entre a França, a África negra e o movimento de libertação.
Em protagonismo na obra está sua atuação como psiquiatra que, segundo Shatz, era sua principal função e onde o pensamento de Fanon sobre poder, política, racialização, alienação e violência realmente tomava forma. O objetivo do livro é mostrar, ainda, as tensões entre seu trabalho como psiquiatra, curador, e enquanto militante e defensor da luta armada. Acompanhando a trajetória de Fanon, pode-se ainda ter um panorama dos ideais políticos e sociológicos que marcaram a segunda metade do século XX.
No aspecto pessoal, o leitor conhece um pouco mais da personalidade de Fanon. Vaidoso e ambicioso, não escapava das contradições de ser um homem de seu tempo e dos impactos que a opressão que denunciava tinha sobre si mesmo. Humilde e dedicado com seus pacientes, Fanon escreveu e se engajou naquilo que sentiu na pele.
Em sua biografia, o autor ainda destaca a importância de se conhecer Fanon, relembrando a relevância de seu legado para pensar o impacto do inconsciente na política, os movimentos de reação enquanto frutos de uma estrutura muito maior de violência, e a importância do corpo na maneira como as pessoas experienciam o mundo. Diz que, apesar das violências raciais e coloniais, Fanon era um otimista e acreditava que poderíamos superar tais adversidades e construir um novo mundo.
*Com orientação da editora Doris Miranda