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Uma vida de nãos: enfermeira trans precisa trabalhar como ambulante para sobreviver

Lorrane é formada pela UFBA, mas não é selecionada em entrevistas

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 8 de março de 2020 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Betto Jr./CORREIO

Lorrane recebeu o primeiro não quando ainda estava na barriga da mãe, Maria Helena Carolina. O pai abandonou ela, a mãe e um irmão. Depois, recebeu outros nãos: por ser pobre, por ser negra e por ser transexual. Por isso, a enfermeira Lorrane Manthele, 38 anos, formada pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) - e também em Hotelaria, pelo Instituto Federal da Bahia (Ifba) - trabalha como vendedora ambulante, no bairro do Uruguai, para se manter.

Na vizinhaça, Lorrane monta uma barraca onde vende artigos como blusas de times de futebol. "Como pode uma enfermeira trabalhar como ambulante?", questionou uma outra vendedora à reportagem, na Festa de Iemanjá, quando encontramos Lorrane. Ela trabalha em festas populares desde 2016. "Tem gente que não acredita", completou a enfermeira, naquele 2 de fevereiro. 

Lorrane é a segunda dos quatro filhos de Maria Helena Carolina, 61, que trabalhou por 30 anos num abatedouro na Baixa do Fiscal, para manter a si mesma e as crianças. Frequentemente, Helena, conhecida no bairro como Mãezinha, se refere à filha no masculino. 

Na família, a maioria de Testemunhas de Jeová, a transfobia também existe. As portas de casa já foram fechadas para Lorrane. Quando tinha 18 anos, foi expulsa de casa pelo pai, o mesmo que abandonou a família com a esposa grávida e retornou para casa quando ela tinha 11 anos.  

Ao ouvir a história, perguntei à mãe de Lorrane: “Por que a senhora deixou ele voltar?”. Ao que ela retrucou: “Você já se apaixonou,  filha?”. “Já”, respondi. “Então, você já tem a resposta”, continuou. Mas, a paixão teve custos para Lorrane.

É quando começa a luta dela para ser a mulher que é e sempre sentiu que fosse, apesar de todos os nãos.    

Portas trancadas À 1h da madrugada, expulsa de casa pelo não da família, Lorrane buscou abrigo na casa de um amigo. Precisou começar a traficar para sobreviver. Logo depois, veio a prostituição, quando passava madrugadas nas orlas de Patamares e Pituba ou no bairro da Calçada. "Se as portas estão fechadas para algumas pessoas, para as transexuais, elas estão trancadas", afirma Lorrane.Foi quando começou a tomar hormônios femininos por conta própria. Em 2004, uma amiga injetou cinco litros de silicone industrial nos seus seios. O corpo rejeitou e ela desenvolveu uma infecção. Ficou três anos sem andar.

Depois de uma cirurgia para retirar o silicone, conseguiu se recuperar. Em 2008, como vendedora ambulante de frutas e verduras, retornou à casa de onde foi enxotada. Vestia uma calça capri e blusa verdes, ums sandália rasteira e tinha um aplique vermelho no cabelo. Novamente, ouviu um não. Uma tia trancou a grade para ela ficar do lado de fora."As mulheres, às vezes, são as mais transfóbicas. Criam uma competição umas com as outras", disse Lorrane.    Só então, a mãe, Helena, confrontou a família - inclusive o marido. Quem não estivesse satisfeito com a presença da filha que saísse de sua casa. Ela voltou a frequentar o lugar. Sempre de passagem.

"Me chame pelo meu nome" Na época, Lorrane se formou em Hotelaria pelo Instituto Federal da Bahia (Ifba). Já havia deixado o tráfico e a prostituição. Mas, nunca conseguiu emprego formal. "Já fiz entrevista com pessoas semianalfabetas que foram escolhidas no meu lugar, acredita?", contou. Na carteira de trabalho de Lorrane, feita em 2007, não há sequer uma assinatura.   De tanto ver as amigas serem maltradas e morrerem, sem assistência médica, por aplicação clandestina de silicone industrial, Lorrane decidiu cursar enfermagem. Passou de primeira, no semestre 2013.1."Todos olhavam para mim, como se eu, o que eu represento, não pudesse estar lá", disse.Um dia, foi ao colegiado da Escola de Enfermagem resolver um problema numa disciplina. A funcionária insistia em chamá-la pelo seu nome do registro civil. "Me chame pelo meu nome", cobrava a estudante. Só no quarto semestre, passou a ser chamada pelo nome.

Em algumas seleções de emprego, Lorrane chega a usar um nome masculino para conseguir fazer a entrevista. "Quando veem o nome social, alguns nem chamam", relatou.    Num estágio durante a graduação, Lorrane ouviu o não da mãe de um rapaz que, com uma infecção na cabeça, precisava de troca do curativo. "Não toque nele", disse a mãe dele, agarrada ao braço da enfermeira. 

Mesmo entre nãos, Lorrane fez mais de dez cursos de especialização. No próximo semestre, iniciará uma pós-graduação em Infectologia, pela Ufba. Hoje, faz uma pós numa faculdade privada.  "Não ter um emprego formal é a realidade de maioria das trans, que ficam sujeitas à rua, de onde eu vim", afirma Millena Passos, coordenadora do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher. Em dezembro do ano passado, Lorrane se formou como enfermeira. Neste mês, ela foi selecionada para um estágio num programa estadual - mas não para um emprego, mesmo depois de formada. Lorrane buscou empregos em três hospitais. Não houve retorno. "Estou perseverante. Não me lamento, todos aqui me  reconhecem", contou, animada.No dia de Iemanjá, quando o CORREIO conheceu  Lorrane, atrás de um freezer e vendendo cerveja e água, ela havia acabado de tatuar no antebraço direito: "Que minha coragem seja maior que o meu medo".