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Publicado em 6 de novembro de 2021 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Um testamento lavrado em 1586, diante do testemunho de três padres e um tabelião, influenciou para sempre o destino – e a rotina diária – de uma instituição de pé no Centro de Salvador há 440 anos: o Mosteiro de São Bento. Naquele ano, cinco após a fundação do mosteiro, a indígena Catharina Paraguaçu assegurou que deixaria tudo que lhe pertencia para a Ordem de São Bento da Bahia e seus frades. Uma doação, dizia, “de sua própria e livre vontade e sem constrangimento de pessoa alguma e por amor e serviço de Deus”. Em troca, um só pedido: que rezassem “para sempre”, até o fim do mundo, missas em sua intenção depois de sua morte, o que aconteceu em 1589. O pedido é rigorosamente atendido há 432 anos.
A súplica inicial era de uma missa por mês diante de seu túmulo, na Igreja da Graça, mas as celebrações, hoje, são diárias no Mosteiro de São Bento, que ‘administra’ a igreja e para quem ela deixou todos os seus bens. Contando uma missa por dia em mais de quatro séculos, calcula-se que só Catharina Paraguaçu já teve mais de 157 mil missas rezadas em sua intenção.“Tem que rezar todos os dias, não pode deixar de celebrar de jeito nenhum. Se acontecer alguma coisa, algum empecilho, qualquer coisa que impeça, uma viagem, ou doença, no dia seguinte rezam duas vezes”, explica o monge sacerdote Dom Anselmo Rodrigues, OSB, paulista criado em Maceió e que há 14 anos serve ao Mosteiro de São Bento, em Salvador.A fala do monge mostra o quão o compromisso assumido há mais de 400 anos é importante para os beneditinos. Mas, essa necessidade de cumprir tão rigorosamente uma promessa pode ser vista pelos católicos, também, como um sinal de piedade. “Catharina fala em rezar para sempre, até o fim do mundo, mas se alguém algum dia esquecer da gente, Deus se lembrará de nós. O que eu acho mais belo disso tudo é que, na verdade, a Igreja não se esqueceu dessas pessoas”, afirma Dom Gregório Paixão, atual bispo de Petrópolis (RJ), que também viveu como monge beneditino na Bahia. “Vivi no mosteiro por 31 anos e no final da vida, se Deus me der saúde, eu vou voltar para aí”, completa. Em testamento, Catharina Paraguaçu deixou tudo para os beneditinos, mas pediu que rezassem por ela "para sempre" (Foto: Paula Fróes/CORREIO) As missas perpétuas são um costume antigo. Essa história de rezar para sempre, inclusive, é abordada no romance histórico Um Defeito de Cor (Record, 952 p, R$ 60), da escritora Ana Maria Gonçalves. O olhar atento de Kehinde, a protagonista e narradora da história, uma mulher negra escravizada que conseguiu comprar sua liberdade - não sem antes sofrer abusos nas mãos de seu senhor José Carlos - capta os detalhes do enterro do seu senhor e algoz.
Kehinde - personagem que pode ser Luisa Mahin ou seu filho, Luiz Gama - enxerga tudo: desde o choro e lamento da casa grande, até o ritual do velório, a missa de corpo presente e a preocupação da família com a salvação da alma do falecido. Encomendar missas fúnebres era comum, mas não para gente como Kehinde, pretos esravizados que não só não tinham uma despedida terrena com tanta pompa, como raramente tinham a sorte de um enterro digno, em uma cova que não fosse rasa. Missa e enterro dentro da Igreja, perto de Deus, então, mais difícil ainda."Os enterros dentro das igrejas ou dos depósitos de corpos nos carneiros das irmandades eram negócios dos quais os religiosos não queriam abrir mão. Ganhavam dinheiro para preparar e transportar os corpos nos bangüês ou caixões, com a venda de mortalhas, com a esmola que os parentes davam para que o morto conseguisse um bom lugar dentro das igrejas e com a encomenda de missas, que às vezes chegavam aos milhares, para todo o sempre", diz um trecho do livro.Pelo menos, narra Kehinde, os pobres também lucravam com aquilo, "pois boa parte da população pobre também era paga para acompanhar enterros, porque um grande número de pessoas significava maior prestígio para o morto".
O costume foi se tornando mais raro e encomendar missas para sempre, até o fim do mundo, já não é tão comum. Na verdade, não há nada que impeça um fiel de fazer uma doação a uma comunidade religiosa e pedir orações eternas pela salvação de sua alma. Mas, casos recentes são desconhecidos. Nos últimos 14 anos, pelo menos, Dom Anselmo não viu nenhum pedido do tipo na Ordem de São Bento da Bahia. “Se aparecer, claro, a gente acolhe, mas essa é uma cultura do passado”, diz. Lá no mosteiro, celebrações desse tipo são feitas em nome dos oito monges fundadores e de benfeitores, todos falecidos há mais de três séculos. “Essas missas são frutos das doações que as famílias iam fazendo para os monges e o interesse delas era simplesmente que o mosteiro pudesse rezar todos os dias pelos mortos daquela família ou por aquela pessoa de uma forma especifica”, explica o diácono Luciano Almeida, professor de Filosofia e Religião.É muita gente Catharina Paraguaçu é considerada a principal benemérita do mosteiro, mas não é a única. Dom Gregório Paixão lembra que as doações não vinham só de famílias abastadas, mas também de pessoas simples e até de escravos. Por isso, são muitos os benfeitores que recebem essas orações diárias – tantos e com doações tão variadas que Dom Anselmo não conseguiu precisar uma quantidade exata. Essa é uma das razões pelas quais, desde pouco depois do Concílio Vaticano II, que aconteceu em 1962, o Mosteiro de São Bento recebeu um indulto da Santa Sé com a autorização para que as missas perpétuas fossem rezadas uma vez por dia em nome de todos os benfeitores.
As celebrações recebem o nome de “Pro-Fund”, uma redução da expressão em latim pro fundatoribus et benefactoribus que significa “para fundadores e benfeitores”. A cada dia, um monge ou o próprio abade do mosteiro recebe a incumbência de dedicar suas orações àquelas pessoas. Após a celebração, eles deixam sua assinatura no Livro de Intenções, um caderno pautado com data, horário, nome do ‘destinatário’ das orações e do responsável por fazê-las. Assim, o compromisso vai sendo cumprido ano após ano, enquanto o mosteiro existir – ou enquanto os bens doados perdurarem.“O Mosteiro de São Bento tem 440 anos e até hoje se reza pelos fundadores e benfeitores. É uma linha sucessória de agradecimento ao longo de séculos, desde o primeiro abade, frei Antônio de Latrão, até o atual, Dom Emanuel D’Able. Muitos conventos na Europa fundados nos anos de 630, 640, até hoje fazem isso, é algo que se perpetua por séculos”, diz Dom Gregório Paixão.Parte dos homenageados estão enterrados ali mesmo no mosteiro. Todos os anos, há missa especial pelo Dia de Finados e visita ao cemitério conventual no claustro. Primeiro volume do Livro do Tempo do Mosteiro de São Bento guarda documentos sobre a fundação e testamentos de quem contribuiu para formação espiritual e material (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Ritual As orações pelo descanso eterno ocorrem de segunda a sábado, sempre às 7h. Aos domingos, um pouco mais tarde, às 10h. Nesse dia, a igreja do mosteiro fica mais cheia - é que é aos domingos que se ouve lá de dentro, durante a celebração, o canto gregoriano entoado pelos monges beneditinos. “Você vai ver que a missa aqui é diferente”, disse um segurança à reportagem, num domingo em que, além das 130 pessoas que cabiam dentro do templo, guardado o devido distanciamento necessário durante a pandemia da covid-19, outras 60 tentavam ouvir a celebração do lado de fora. Anualmente, no dia 11 de julho, a missa recebe mais gente ainda, por ser a data em que se celebra a vida e os feitos de São Bento.
Embora a missa de domingo reúna mais gente, inclusive pelo horário, quem assiste à celebração do começo ao fim e não conhece a tradição sai de lá sem sequer imaginar que os padres ali rezam em nome de pessoas como Catharina Paraguaçu, Gabriel Soares, Francisco Afonso, Francisco Barcellon, todos benfeitores do mosteiro, e a fundadores, como frei Antônio de Latrão.
O desconhecimento sobre os destinatários das intenções se explica facilmente – é que as menções em voz alta são discretas. As missas de domingo, aliás, são as únicas em que não se fala nada sobre as orações aos benfeitores. Mas, isso não quer dizer que elas não aconteçam. “Um dos padres está fazendo as orações na intenção dos benfeitores, não pode deixar de fazer. De segunda a sábado, se faz uma prece”, afirma Dom Anselmo.
Durante a semana, a igreja quase vazia de fiéis segue sendo palco das orações. Numa quarta-feira, por exemplo, dia dos santos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, oito pessoas assistiam à celebração com a presença de 20 religiosos. Cada um deles que ocupava uma cadeira no altar tinha sua própria obrigação. Celebrações costumam ter mais de um monge sacerdote - cada um se dedica a rezar pela alma de uma pessoa; à frente, o arquiabade Dom Emanuel D'Able (Foto: Paula Fróes/CORREIO) É comum que, no mosteiro, as missas sejam celebradas por mais de um padre - são chamadas de concelebradas. É que, além dos benfeitores do mosteiro, também são feitos sufrágios na intenção da alma de pessoas que morreram recentemente, por quem seus familiares encomendaram uma série de 30 missas seguidas chamadas de gregorianas.
Se há, por exemplo, quatro encomendas para um determinado mês, são necessários quatro padres para celebrar uma única missa – cada padre dedica suas intenções à alma de uma pessoa. A contribuição destes é menor – uma missa custa R$ 40, destinados à manutenção do mosteiro. Nada tão volumoso quanto as doações em testamento deixadas pelos benfeitores – em geral, terras e outras propriedades.
Sem prazo Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana e professor titular de Língua e Literatura Latinas da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o padre Gilson Magno dos Santos explica que as missas pelos benfeitores são celebradas sem prazo. E isso, na verdade, independe do desejo do doador. Ou seja, mesmo aqueles que não pediram missas “para sempre”, como fez Catharina Paraguaçu, podem receber orações enquanto uma comunidade existir. “Essa é uma forma que a Igreja tem de orar pelas pessoas que de qualquer forma contribuíram para a edificação espiritual ou material de uma comunidade cristã, de uma diocese, de uma paróquia, de um seminário. As missas perpétuas são celebradas sem prazo e mediante elas se oferece o sufrágio pelo descanso eterno de um defunto”, explica.Outras igrejas também fazem missas pelos seus benfeitores, no mundo inteiro. Mas, os sufrágios oferecidos individualmente, em geral, só ocorrem em mosteiros, conventos ou em comunidades de frades - lugares que conseguem organizar uma rotina de celebrações e que têm muitos padres que possam assumir um compromisso individualmente. “Não é que as paróquias não possam celebrar essas missas, mas é que em geral, os padres de paróquias não têm condição de cumprir esse compromisso de celebrar uma missa só para uma pessoa”, diz Dom Anselmo. Missas perpétuas acontecem em diversas igrejas pelo mundo todo, mas elas são um costume antigo (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Na Igreja e Convento de Nossa Senhora da Piedade, por exemplo, os benfeitores são mencionados nas preces diárias, mas não recebem uma missa individual, explica o reitor da igreja, Frei Albervan Pinheiro. “Quando nós estamos na Santa Missa, se fala pelos benfeitores, pelos colaboradores, pelos dizimistas, aí a gente coloca os nomes dessas pessoas na oração, mas não é uma missa individual. Aqui não se faz essa celebração”, conta o reitor. Lá acontecem as chamadas Missas da Terra Santa, mas isso é outra história.
Pesquisadores ouvidos pela reportagem explicam que as paróquias não costumam assumir esses compromissos de sufrágios individualizados por uma questão de teologia moral. Embora, para os católicos, uma missa tenha um valor infinito, quando o pedido foi feito, séculos atrás, a pessoa desejou ter orações só para ela. E não se pode receber para celebrar uma missa para uma pessoa e se rezar coletivamente em nome de várias.
Os compromissos de intenção de missas são levados muito a sério pela Igreja e a Santa Sé não permite uma quebra de promessa. Na prática, se uma pessoa acreditava que precisava de missas por toda a eternidade para salvar sua alma – ou se desejava para sempre ser lembrada por Deus – não há justificativa para que a Igreja quebre esse compromisso assumido.
Quantas missas salvam uma alma? Antes de morrer, Catharina Paraguaçu pediu que rezassem por ela “para sempre”. Dom José Botelho de Mattos, oitavo arcebispo da Bahia, também pediu em seu testamento que rezassem por sua alma – a incumbência maior ficou com a Igreja da Penha, onde está sepultado, mas ele não exigiu celebrações pela eternidade. “Como já faz 253 anos de sua Feliz Morte, acredito que o testamento já esteja cumprido (ou não)”, afirma Luan Sacramento, membro da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Penha, em Salvador.
Pode parecer brincadeira, mas a ‘dúvida’ sobre o cumprimento ou não do testamento de Dom José Botelho de Mattos, arcebispo da Bahia entre 1741 e 1760, um dos mais atuantes por aqui, é válida. Afinal, quantas missas são necessárias para salvar uma alma? A historiadora Luciana Onety, que pesquisa a morte sob a ótica das relações institucionais, afirma que a celebração de missas para a salvação das almas já eram muito tradicionais bem antes da morte de Catharina Paraguaçu, no século XVI – ou de qualquer dos benfeitores do Mosteiro de São Bento.
“Essas orações são muito tradicionais desde o século XII, que é quando surge o a ideia de existência de um purgatório, esse lugar entre o céu e o inferno, onde as pessoas ficariam ali purgando. É o lugar da misericórdia e da justiça divina”, aponta Luciana, que é doutoranda em História Social pela Ufba e coordenadora do curso de História da Unijorge. No claustro do mosteiro são sepultados todos os membros da ordem beneditina na Bahia; Dom Anselmo Rodrigues explica que arquiabades têm lápides maiores (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Para os católicos, o purgatório é um lugar de passagem: já se sabe que as pessoas que estão ali irão para o céu, só não sabem quando.“Do purgatório, ninguém desce para o inferno. Ou você fica, ou você sobe para o céu. A ideia é que quanto mais orações você recebe, mais rápido você sobe. Mas, quantas orações são necessárias para salvar uma alma? O que significa para a Igreja ficar décadas, séculos rezando por uma alma, se não se sabe disso?”, indaga a pesquisadora.“A alma que está no purgatório, se recebe as orações, ela pode completar sua elevação e subir ao céu. A alma não pode fazer mais nada por ela, o que podia fazer por sua salvação, a pessoa faz em vida. Por isso que ela precisa de orações para alcançar a salvação”, afirma Dom Anselmo.
Mas, a pergunta segue: como definir quantas missas são necessárias para a salvação? Sem essa especificação, a busca pela salvação elevou a Igreja a um lugar inimaginável, apontaram os estudos do historiador francês Jacques Le Goff. “A Igreja passou a ser a intercessora entre Deus e os homens. Não eram orações que se pudessem fazer em casa, você pagava para que a Igreja, um pároco, fizesse essas orações. Então, a Igreja vira a grande intercessora para a salvação das almas”, pontua Luciana Onety.
Atual bispo de Petrópolis, Dom Gregório Paixão, que além de monge beneditino também já foi bispo auxiliar de Salvador, diz que não há, mesmo, uma ‘receita’ para a salvação por um número de missas. E que, os mais antigos, que pediam um número incontável de celebrações, não necessariamente estavam calculando o que faltava para o céu.“Não tem uma explicação. Na verdade, não é que uma missa vai salvar, mas, na eucaristia, é como se a gente dissesse: ‘Senhor, essa pessoa é tão limitada quanto eu, eu quero o Senhor reze’. Existem várias passagens da escritura que dizem que nós temos de rezar perpetuamente por aqueles que partiram. A forma mais próxima que todas as igrejas cristãs têm de se comunicar com o mundo da eternidade é através da eucaristia, da missa”, explica.“As pessoas olhavam para suas próprias limitações e, por desejar que a memória do seu nome ficasse para sempre no coração de Deus, mesmo elas já estando no céu, então essas pessoas faziam o seguinte: ‘Eu gostaria de deixar essa herança para a Igreja, mas eu só peço uma coisa, que vocês se lembrem e rezem pelo menos uma vez por ano e peçam a Deus que eu consiga enxergar a luz perpétua’”, afirma.
Para Dom Gregório, o tempo de celebração – seja uma missa, uma centena, milhares, para sempre – é algo significativo para as pessoas, mas não para Deus: “Para Deus, não existe tempo. Quando a gente fala de tempo, a gente está falando de passagem dos dias e horas, e assim por diante, mas Deus é presente. Quando eu celebro hoje uma missa para alguém que morreu há 400 anos, para Deus, é como se tivesse morrido hoje, agora”.
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