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Alexandre Lyrio
Publicado em 13 de fevereiro de 2021 às 06:59
- Atualizado há 2 anos
Somente o Carnaval de Salvador é capaz de produzir um profeta de bermuda, guitarra e bandana. O que seria a canção 100 % Você senão uma profecia evocada por Bell Marques desde 2004? É que entre os absurdos citados na letra - jardim sem flor, praia sem mar, arco-íris sem cor – há um quesito tão impensável quanto os outros, mas que se tornou real: Carnaval sem festa! Quem diria que passaríamos um Carnaval sem aglomeração, sem alegria, sem celebrar o fato de que estamos vivos? Não tem jeito. Já que, como diria o pesquisador e professor Paulo Miguez, o único trio possível esta semana é máscara, confinamento e vacina, nos restam duas alternativas: viver as cinzas de um Carnaval que não existiu e imaginar que o próximo vai ser a Babilônia na Terra. Será?
O CORREIO ouviu diversos artistas, especialistas, foliões-símbolo, médicos, cientistas e gente anônima não só para entender o que perdemos de capital simbólico e identitário sem o Carnaval, mas também para saber de que forma essas pessoas estão enfrentando o luto e como anteveem o Carnaval pós-vacina. Será que vai existir de fato? Se existir, como vai ser? Bom, comecemos pelo profeta que por quase 40 anos comandou o Chiclete. Bell prefere crer que o próximo Carnaval “será ainda maior”. Para Bell, as cidades, não só Salvador, vão precisar estar preparadas para uma multidão saudosa e disposta a ir à forra pelo que perdeu em 2021. “Acho que o brasileiro, que é tão festeiro, vai querer celebrar em dobro”.
Até lá, vai ser preciso superar a maior Quarta-feira de Cinzas da história. Um doloroso vácuo carnavalesco para quem tá acostumado aos verões soteropolitanos. Dos seus quase 60 anos de vida, o diretor de teatro Fernando Guerreiro passou 55, desde meninote, participando ativamente do ciclo de festas populares de Salvador. Guerreiro diz que se sente “desterritorializado”.“A minha sensação é que eu saí de Salvador, como se eu estivesse passando um verão, sei lá, em Brasília. É uma sensação do não lugar, um verão sem identidade, por mais que um ou outro não goste do Carnaval, as pessoas estão baratinadas e em profunda melancolia”. O que vem por aí? Como não teria graça alguma brincar Carnaval metido em EPIs ou com todo mundo vestido de escafandristas, Guerreiro evita criar uma grande expectativa para não ter uma grande decepção. Ele acha que até teremos um boom de participação popular, sensualidade e o diabo a quatro. “Mas, ao mesmo tempo, esse ciclo é tão traiçoeiro e imprevisível que eu não me permito criar essa expectativa. A gente fica com a sensação de que uma chave vai virar. Quando? Ninguém sabe. E se acontecer uma mudança de paradigma mesmo? Será que voltaremos a fazer aglomerações de grande porte? Ainda não tivemos queda de contaminação significativa. Não é pessimismo, é realidade. Não podemos querer voltar ao passado. Não se volta ao passado. Vem coisa nova por aí”.
Organizadora do Carnaval por mais de 20 anos, Eliana Dumêt acredita que virá uma revolução por aí. Eliana, que viu de perto boa parte das transformações da festa, aposta em um novo modelo. "O Carnaval surge nas ruas e parte dele vai para os clubes. Aí surgem os blocos e depois vem os camarotes, que são um misto de clube e rua. No pós-pandemia vem aí um novo modelo. Qual será, ainda não sabemos", diz Eliana, uma das responsáveis pela profissionalização das festas populares em Salvador. Para Eliana, no pós-vacina, teremos um tripé para resolver: Saúde x Carnaval x Economia. "O Carnaval tem que atender às necessidades da cidade. Ele tem que acontecer com a maior segurança possível. Esse ano trocamos o Carnaval pela vida. Não ter Carnaval é a celebração da vida. No ano que vem, talvez a gente precise pensar nesse novo modelo".
Em uma das suas primeiras músicas gravadas, a Baiana System, um dos símbolos das últimas transformações do Carnaval, pergunta na voz de Russo Passapusso: “como serão os futuros Carnavais?”. Nem eles imaginavam que pudesse haver um Carnaval sem Carnaval. Agora, Russo diz não abrir mão de aprender com o silêncio e acha que, para os foliões, o desafio é saber lidar com a vida sem essa válvula de escape.“As pessoas vão ter que bolar suas formas pra não viver o vácuo emocional. A minha pergunta agora é: ‘Como será a ressaca dessa expressão pós-Carnaval que teve e não teve? Como vai ser esse vácuo? Como vai ser esse povo sem essa válvula de escape?”. Doutor em Comunicação e Cultura e pesquisador do Carnaval, o economista e professor da Ufba, Paulo Miguez, tem convicção de que faremos, sim, um grande Carnaval em 2022. O professor pondera que o mundo pós-pandemia vai carregar muitos dos comportamentos do período que estamos vivendo, a exemplo do trabalho remoto. Mas, diz ele, com as festas populares tem que ser diferente. Não é possível um Carnaval em casa. “A rua é indispensável. A multidão, a aglomeração, não há live na Internet ou desenvolvimento tecnológico que possa suprir isso”. Miguez diz que a falta do Carnaval é “uma pancada muito forte” e nos provoca danos simbólicos. “Nos realizamos na festa. Somos uma sociedade dada ao toque, à aglomeração. A falta do Carnaval é uma pancada muito forte”. Mas, confiante, Miguez prevê um Carnaval inesquecível em 2022.“Tenho uma crença inabalável de que a ciência vai construir os melhores caminhos para que a gente tenha as condições sanitárias para voltar a aglomerar!”. Também da Ufba, o historiador e professor de Filosofia Milton Moura diz que o Carnaval é a oportunidade máxima de exposição de nós para nós mesmos. Como se trata de algo importante para nossa cultura, nesse momento sentimos essa sensação de vazio. "O Carnaval junta a cidade com a cidade. Isso é fabuloso! Nos juntamos em uma imensa comunidade apesar dos nossos problemas", reflete Moura.
Um dos papas da festa, o multi-instrumentista, cantor, compositor e filósofo do axé Carlinhos Brown afirma que “a espera de agora fortalece o que virá”. Brown acredita que esse é o momento de compreender melhor como o Carnaval vai muito além das ruas. O cacique observa que talvez o baque nos traga revoluções. É na crise que saímos da inércia e da monotemática para que as coisas se modernizem. “Um aspecto essencial dessa modernização é o respeito. É preciso respeitar mais a história, os patrimônios artísticos que temos, a ancestralidade que fez o Carnaval de rua ser, acontecer. Valorizar os blocos afros é um exemplo desse respeito que vem faltando no Carnaval”, aponta Brown.
Mudanças Desde os que acreditam no desbunde redentor até os que ficam com o pé atrás, as opiniões são as mais diversas. O ex-rei momo magro Clarindo Silva diz: “Vamos administrar esse momento e paroano será o Carnaval da redenção”. Iuri Barreto, administrador do perfil Soteropobretanos no Instagram, vai na mesma linha de Guerreiro. “Queria acreditar que vamos ter Carnaval no ano que vem, mas prefiro não criar expectativa. É possível que algumas pessoas, mesmo imunizadas, não se sintam à vontade pra pular atrás do trio tão cedo. A verdade é que a nossa geração nunca viveu nada parecido antes e cada um vai levar um tempo diferente pra normalizar aquela aglomeração gostosa do Campo Grande”.
Mas, o que precisa mudar no futuro Carnaval? Já que ganhamos tempo com esse hiato histórico, quais transformações se pode promover para que a festa se torne ainda melhor? O presidente do Conselho Municipal do Carnaval (Comcar), Jairo da Matta, diz que pretende aproveitar o esse lapso para consultar a população sobre temas como a criação de um terceiro circuito no Comércio e o fim definitivo das cordas dos blocos, por exemplo. No primeiro caso, Jairo levanta a possibilidade de um Carnaval protótipo ser realizado até o final desse ano, entre outubro e novembro.“Um Carnaval protótipo em outubro ou novembro seria um teste para ver se colocamos o circuito do Comércio no Carnaval 2022 e para que os empresários consigam se recapitalizar também. Mas ainda estamos nas conversas iniciais e depende da pandemia”, explica.
A outra ideia é baixar definitivamente as cordas e transformar os cordeiros em agentes públicos do Carnaval. Fardados, seriam disciplinadores que ficariam posicionados em locais estratégicos ao redor do trio para acompanhar os blocos. “É um modelo que também tem que ser testado nesse possível evento”. Maior ou melhor? Mas, qual a visão de um dos organizadores do Carnaval? A Empresa Salvador Turismo (Saltur), instituição ligada à Prefeitura Municipal e responsável pela realização da festa, acredita que o próximo Carnaval não necessariamente será o maior de todos os tempos. Na verdade, diz Isaac Edington, presidente da Saltur, o Carnaval 2022 vai ser o Carnaval possível ou, quem sabe, um Carnaval melhor. Sem “tirar o pé do chão”, Edington afirma que a maior festa de rua do mundo não tem mais para onde crescer.
Aliás, o Carnaval ainda não está oficialmente cancelado em 2021. Suspenso até segunda ordem, tem possibilidade de ocorrer se for até o mês julho. Como até lá a imunização é difícil, provavelmente será cancelado. Sobre um evento protótipo no Comércio, a Saltur diz que pode até ocorrer por iniciativa dos empresários, mas não seria o Carnaval de Salvador. “Seria outra coisa, mas não entraríamos com quase nada. No máximo com o básico de estrutura”, garante Isaac Edington, que se coloca contra a criação do terceiro circuito no Comércio. “O Carnaval tem que ser melhor para todo mundo. Não dá pra pensar se vai ser maior ou menor. É preciso pensar em fazer uma festa possível nesse novo mundo. O Carnaval não precisa de mais asfalto. Ele tem que ser uma experiência melhor”.Sobre aumentar o número de dias de festa em 2022, uma sugestão feita por Daniela Mercury, o presidente da Saltur acha pouco provável. “A gente tem que se perguntar se nesse novo mundo cabe ter mais dias de Carnaval. Pelo olhar do poder público isso significa mais dinheiro público. Até lá acho muito difícil”.
Carnaval o ano inteiro Muitos artistas estão desolados e preocupados com os setores que os cercam. Caso de Margareth Menezes, que pensa nos trabalhadores do Carnaval não só em fevereiro, mas o ano inteiro. Dos músicos aos técnicos de som, muita gente que trabalha boa parte do ano está parada. “A maioria dessas pessoas tem uma vida digna graças a essa indústria artística e cultural. Realmente é uma lástima. Se eu estivesse num lugar de poder criaria um mecanismo de socorro para essa área. Ninguém pode imaginar como está sendo sofrido. Espero que em 2022 possamos realmente estar ativos. Desejo força, fé e esperança a todos esses profissionais”, pede Margareth.
A não saída do Ilê Aiyê, em 46 anos de existência, atinge profundamente a comunidade do Curuzu. "Tá muito difícil! As pessoas que trabalham no bloco estão sem renda. Os blocos afros ajudam muitas pessoas nesse período. Mas tem que se conformar. É uma pandemia", resigna-se Vovô do Ilê, presidente do Mais Belo dos Belos. "No próximo Carnaval, se for concretizada a vacinação em massa, vamos com total sede ao pote. Muita alegria para fazer o Carnaval de 22". Mas, diz Vovô, se a pandemia ainda tiver algum efeito, as autoridades precisam ficar atentas ao que vai ser possível fazer."Tem que avaliar se vai precisar diminuir o número de blocos, se vai criar um novo circuito. De repente, pode ser a hora de fortalecer o Carnaval do Centro", sugere Vovô. Experiente em Carnaval, o jornalista Andrezão Simões, que segue à risca uma quarentena em família desde o início da pandemia, acredita piamente que em 2022 “nos veremos fisicamente intensamente ‘extravagante, extrabacante e extravazante’”. Andrezão tem conhecimento de causa. É da época que colocava a mortalha no domingo e só retornava na Quarta de Cinzas “para aquilo que reconhecia como lar”.
“O Carnaval será tudo isso, sem dúvida, por que é a representação da vida, com tudo que existe nela”, acredita Andrezão, encerrando com Chico Buarque. "Eu tenho tanta alegria adiada, abafada. Quem dera gritar. Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar". Que chegue logo a vacina! Que chegue logo o próximo Carnaval. Como diria o nosso profeta de bandana: não dá pra ficar sem te ver! Já estou ficando louco!
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