Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
No dia 20 de dezembro passado, a ferramenta alcançou a marca de 100 prisões - 67 em Salvador e 33 em Feira de Santana
Amanda Palma
Publicado em 5 de janeiro de 2020 às 06:00
- Atualizado há um ano
A primeira mulher presa em Salvador pelo sistema de reconhecimento facial implantado pela Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) foi considerada foragida por cinco anos. Yolanda*, 39 anos, teve a prisão preventiva decretada em 2014 por tráfico de drogas. Mas, como a justiça só tinha um endereço incompleto, ela nunca foi localizada. A espera só acabou no dia 13 de julho do ano passado. Yolanda estava vestida de preto, com os cabelos presos, encostada a um balcão da rodoviária de Salvador, quando foi reconhecida por uma das câmeras do terminal vinculadas ao sistema de reconhecimento e, finalmente, presa.
No entanto, quatro meses depois, a justiça concluiu que ela não era traficante - e que, mesmo que fosse condenada enquanto usuária de drogas, não seria presa, mas faria serviços comunitários ou receberia medidas educativas. O mesmo sistema que prendeu Yolanda em julho passado alcançou, no dia 20 de dezembro, a marca de 100 prisões, pouco mais de uma ano depois de ser implantado.
Até o último dia 2 de janeiro, a ferramenta havia ajudado a localizar 109 pessoas procuradas pela polícia - quatro delas durante o Festival Virada Salvador, na Boca do Rio. Mas ele ainda gera discussões. Herbert Oliveira dos Santos, 27 anos, era procurado por tráfico de drogas e foi encontrado ao entrar no Festival Virada Salvador (Foto: Divulgação/SSP) Enquanto a SSP-BA defende os benefícios da ferramenta, especialistas se dividem e organizações da sociedade civil questionam o compartilhamento de dados pessoais e um possível reforço ao racismo. Para o subdefensor público geral do estado, Pedro Paulo Casali Bahia, a tecnologia deve ser abordada "com extrema cautela". "Estamos diante de um monitoramento sistêmico, desautorizado e oculto em locais públicos e que pode colidir com princípios e outras garantias constitucionais, como liberdade de reunião, liberdade de associação e presunção de inocência, além do civilmente identificado não se submeter à identificação criminal", diz.
No caso de Yolanda, por exemplo, a prisão durou 17 dias. No dia 30 de julho, ela foi mandada para a prisão domiciliar. "Ela tinha em sua residência três filhos menores, um ainda em fase de amamentação", argumentou o defensor público que cuidou de seu caso. Em 28 de novembro, o processo foi julgado e arquivado. A justiça constatou que não havia provas para apontar Yolanda como traficante e que a quantidade de maconha que ela tinha era compatível com uso pessoal.
Leia também: 'O policial já foi com a arma na cabeça dele', diz mãe de rapaz confundido por reconhecimento facial
Debate A primeira prisão pelo sistema foi em março de 2019, durante o Carnaval de Salvador: Marcos Vinícius de Jesus Neri era procurado por homicídio e foi preso depois de ser reconhecido por uma câmera, mesmo usando peruca e uma fantasia do bloco As Muquiranas. Do total de presos até o momento, apenas dez eram mulheres - mais de 90% dos presos são homens e a maior parte era procurada pelos crimes de roubo, tráfico de drogas ou homicídio.
Para o superintendente de Gestão Tecnológica e Organizacional da SSP-BA, coronel Marcos Oliveira, o sistema é importantíssimo e muda a forma de atuação do policial.“Nós temos uma câmera para fazer a aproximação. O policial não vai simplesmente abordar uma pessoa porque ele acha (que é suspeita). Ele vai abordar com elementos que digam isso”, afirma o coronel Marcos Oliveira.O professor Pablo Lira, do mestrado de Segurança Pública da Universidade de Vila Velha (UVV) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), também diz que vê a ferramenta com bons olhos. “É uma ferramenta importante porque atrela o banco de criminosos procurados com uma ferramenta que já está difundida nos grandes centros, que é o videomonitoramento”, afirma. No Brasil, não há uma legislação específica para regular o reconhecimento facial. Mas, de acordo com a SSP-BA, a ferramenta segue a Lei Geral de Proteção de Dados, que assegura o uso da tecnologia em casos de segurança pública.
Já Wagner Moreira, um dos coordenadores do Fórum Popular de Segurança Pública da Bahia (FPSPB), observa o sistema com mais cautela. “Ainda é cedo, mas a gente segue preocupado com a ausência de protocolo e com a dificuldade para que a sociedade civil tenha acesso e melhor entendimento disso, inclusive para colaborações no aperfeiçoamento da ferramenta. A gente vê que os processos seguem criminalizando corpos negros”, destaca.
Quem são os presos O CORREIO fez um levantamento com todas as prisões realizadas pelo sistema em Salvador e em Feira de Santana – onde a ferramenta foi usada durante os quatro dias de micareta, no mês de abril de 2019. Lá foram realizadas 33 prisões, entre pessoas com mandados de prisão em aberto ou que estavam em prisão domiciliar e não poderiam estar na festa.
Entre os crimes identificados, roubo é o que acumula o maior número de prisões - 27, seguido de homicídio, 22. Tráfico de drogas aparece logo atrás, com 21 presos. Mas, em 109 prisões realizadas, 23 não tiveram os crimes revelados.
A reportagem fez uma busca nos nomes de todos os presos por reconhecimento na Bahia, mas poucos resultados foram encontrados – muitos deles possuem homônimos, outros não tiveram nenhum processo encontrado. Dos 18 processos localizados, metade das pessoas seguia presa.
Racismo digital Nas tabelas divulgadas pela SSP-BA, não aparece a cor da pele das pessoas presas. No entanto, de acordo com estudo divulgado pela Rede de Observatórios em Segurança, das prisões realizadas pelo sistema na Bahia, a grande maioria foi de pessoas negras. “Em relação aos casos em que havia informações sobre raça e cor, ou quando havia imagens dos abordados (42 casos), 90,5% das pessoas eram negras e 9,5% eram brancas”, pontua o estudo.“Isso, de alguma forma criminaliza. Mostra que esses algoritmos têm criminalizado a população negra de uma forma maior e isso só ajuda esse formato de segurança, que é a guerra às drogas, que é atacar as populações vulneráveis, as minorias”, aponta Wagner Moreira, do FPSPB.Para o coronel Marcos Oliveira, o sistema não reforça o racismo. “O sistema vai em cima de coisas que são fáticas: se a pessoa tem mandado de prisão, se está desaparecida. Num estado que tem 80% da população negra, é quase uma lógica que vai ser maioria”, argumenta.
O professor Pablo Lira diz que as pessoas não devem temer o sistema: “Quem está exposto a esse sistema são as pessoas que cometem crimes, que têm fichas criminais. As lideranças criminosas devem temer. Quem anda em dia com seus deveres, não”, declara.
Mas, o subdefensor público geral do estado, Pedro Paulo Casali Bahia, demonstra preocupação: "Existem estudos que apontam o eixo discriminatório da identificação facial como uma proeminência de erros com destaque para minorias raciais e mulheres, com um significativo percentual para falso positivo para pessoas tidas não-brancas (40%), em comparação com apenas 5% para pessoas brancas, o que impõe cautela e constante aprimoramento do sistema", aponta.
Um terço das prisões aconteceu em Feira de Santana Para que a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) alcançasse a marca de 100 presos com o reconhecimento facial foram necessários 290 dias. No entanto, em apenas quatro dias, o sistema possibilitou a prisão de um terço desse montante. Foi durante a Micareta de Feira de Santana, entre os dias 24 e 28 de abril de 2019, que a SSP-BA prendeu 33 pessoas. Um terço das prisões foi na Micareta de Feira, em abril (Foto: Divulgação) Entre elas, havia pessoas procuradas por crimes como tráfico, roubo e homicídio, mas também outras que estavam em prisão domiciliar e não poderiam estar na festa. Para a SSP-BA, o trabalho foi positivo e indica para um futuro certo: a expansão do uso da ferramenta para outras cidades do interior. De acordo com o coronel Marcos Oliveira, superintendente de Gestão Tecnológica e Organizacional da SSP-BA, a pasta já está trabalhando numa licitação para expandir o sistema e cidades estratégicas. Além disso, o diálogo é constante com a Polícia Federal.
Mas, para Wagner Moreira, da coordenação do Fórum Popular de Segurança Pública da Bahia (FPSPB), os dados não são tão positivos assim. Segundo ele, números recolhidos pelo Fórum apontam que a polícia foi mais “eficiente” na Micareta de Feira em 2018, quando fez menos abordagens (176) e mais prisões (48). No ano passado, para 33 prisões por reconhecimento, foram 505 abordagens.
“Duas coisas marcam esse processo: uma é associação na Bahia de criminalização durante as festas populares. Durante a Micareta de Feira, foram emitidos 903 alertas e 505 cidadãos foram abordados, para 33 prisões. Quantas pessoas tiveram sua folia atrapalhada sob essa tutela, já que a gente conhece esse formato de abordagem policial?”, questiona.
*O nome foi trocado para preservar a identidade