Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Fernanda Santana
Publicado em 15 de maio de 2022 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Pela manhã, os primeiros helicópteros sobrevoam Cajazeiras. De cada janela de casa, em Cajazeira 10, W.* avista partes do bairro e acompanha a passagem da aeronave militar, que costuma voltar à tarde. Faz duas horas que ele ouviu quatro tiros e concluiu, pela direção do som, a origem dos disparos - a Independência, onde dois policiais foram assassinados no retorno do enterro de um colega. Há uma semana, Cajazeiras se retraiu a uma rotina imposta pelo medo de possíveis confrontos depois das mortes de três policiais militares, entre o último sábado e domingo. Nunca aconteceu algo semelhante na região, que acumula, desde janeiro, o maior número de mortes violentas em Salvador.
No ano, foram 31 mortes no bairro, seguido pela vizinha Águas Claras, com 22 óbitos, onde o cotidiano também está modificado pela violência, mostram os boletins diários da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP), tabulados pela reportagem. Já foram 428 em toda a cidade.
Os três policiais mortos eram lotados na 3ª Companhia Independente de Polícia Militar, que atende o perímetro, estratégico para o tráfico de drogas, seja pela proximidade com duas rodovias ou pelas áreas de matagal que facilitam a dispersão de quem foge.
Alexandre Menezes morreu ao receber um tiro na cabeça, em confronto com criminosos, na Rua Ulisses Guimarães, em Águas Claras, separada de Cajazeira 7 por três ruas. Os outros dois PMs, Vitor Cruz e Shanderson Ferreira, voltavam do enterro dele quando foram atingidos, na Independência, que começa ao lado do Campo da Pronaica e vai até Boca da Mata, ainda parte de Cajazeiras.
Com as mortes dos três militares em menos de 24h, são cinco PMs assassinados neste ano na Bahia. No ano passado, foram 23 policiais mortos.
A polícia prometeu dias de buscas pelos criminosos, que correram para se refugiar na vizinhança, como Valéria e Jardim Nova Esperança, onde acontecem operações. À população, restou mais uma semana de adaptação forçada, com funcionamento restrito de escolas e comércio, sobe e desce de viaturas e helicópteros no céu.
A rotina: ansiedade e medo
A última vez, em três décadas de bairro, em que W. presenciou tamanha movimentação policial foi em julho de 2016. Um atentado fatal contra um militar, em frente a um boteco, desencadeou três dias de perseguição ao suspeito - morto em seguida. O início de maio em Salvador registrou, até o momento, 43 mortes violentas.“Mas nunca vi nada parecido, com uma resposta tão forte quanto essa”, diz W.Afastado do emprego, W. evita sair, exceto para buscar a esposa no retorno do trabalho, num ponto de ônibus em Cajazeira 10. O filho deles, estudante de uma das 16 escolas que suspenderam as atividades, não voltará às aulas até os pais decidirem que é seguro. Quando? Não sabem. Diferentemente do que foi divulgado, ele e outros moradores dizem que a normalidade da rotina escolar não é uma realidade e que até os professores faltam ao trabalho, por medo. As secretarias municipal e estadual de Educação não responderam aos questionamentos sobre o funcionamento das unidades.
A morte de policiais ou o ferimento de agentes em operações leva receio à população, temerosa quanto ao resultado das ações de represália."O ir e vir, o acessar a escolas, ônibus, tudo passa a ser regulado pela dinâmica da violência. Há também o receio pelo abuso da força, já que há falta controle para inibir o uso da violência", pontua Luciene Santana, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e da Iniciativa Negra na Bahia.A Bahia fica atrás apenas do Rio de Janeiro em número de mortos em operações policiais em territórios periféricos - foram 260 mortos aqui no estado, entre 2019 e 2020, segundo a Rede. "A polícia é colocada em dinâmica de guerra, em que as operações resultam em alto índice de morte de pessoas".
Os sons da violência chegam por diferentes lados. Pela janela, em um só dia, o barulho metálico de disparos ecoou duas vezes na casa de W. O mais intenso, 12 tiros, despertou ele e a esposa. Passava das 22h, os dois viam TV. De onde vieram os disparos, não identificaram.Os primeiros dois pontos de tensão foram as áreas onde os policiais foram assassinados, entre Águas Claras e Cajazeiras, repartida em sete Cajazeira. Mas, como era de se esperar, as operações tomaram as ruas o sentimento de apreensão se espalhou.
Em Fazenda Grande 2, que integra Cajazeiras, O., babalorixá de um terreiro de Candomblé, cancelou três festividades públicas previstas para o mês – Tempo, Oxalá e as Yabás – e fechou as portas do templo para quem não fosse filho de santo feito na Casa. “Nós tínhamos um calendário e não vai ser mais feito pelos acontecimentos. São muitos tiros, barulhos perturbadores, notícias recorrentes de morte”, afirmou. Salvador tem dois mil terreiros e 25% deles estão entre Cajazeiras, Águas Claras e Fazenda Grande. É a localidade com a maior concentração de templos, junto ao Subúrbio, diz a Associação Brasileira de Cultura Afroameríndia (AFA).
A Polícia Militar respondeu que não fornece detalhes sobre a criminalidade na região “para não atrapalhar as operações ”, mas que a população poderia “ficar despreocupada, porque o policiamento foi reforçado”. Em Cajazeiras e arredores, onde ninguém está despreocupado, moradores percebem um aumento da violência nos últimos sete anos.
Esse intervalo de tempo coincide com a intensificação da presença de facções criminosas na região, entre elas a Bonde do Maluco, criada no complexo prisional da Mata Escura, em 2015, com a intenção de ampliar a atuação em pontos estratégicos do tráfico na cidade. Para isso, esses grupos criminosos cooptaram quadrilhas já existentes.
Violência é problema de saúde pública
Às pressas, F. retirou as cadeiras da praça, onde uma família acabara de sentar. Era Dia das Mães e esperava lucrar, com o restaurante, R$ 2 mil. As mortes dos policiais anteciparam o fechamento, no entanto. Quem cresce em bairros onde há constante conflito entre criminosos e policiais aprende a reconhecer a iminência dos riscos, o que não exclui o apavoro.
F. está ansiosa e sente medo pela movimentação de viaturas - cada uma a serviço de uma especializada - e pela resposta dos criminosos, que pode levar a troca de tiros, como os registrados ao longo da semana. Movimento na Rótula da Feirinha, ponto central de Cajazeiras (Foto: Marina Silva/CORREIO) Os disparos, feitos por armas legalizadas ou extraviadas, nem sempre cumprem o destino planejado, perfurando casas e corpos de quem acompanha uma guerra sem vitoriosos.“Eu estou muito ansiosa, porque a gente não sabe o que fazer, principalmente eu que trabalho na rua“. Desde 1996, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a violência que perturba a vida de pessoas como F. um problema de saúde pública, pelas consequências físicas, psicológicas, sociais que ela provoca. A violência, de tão próxima, impõe mudanças na rotina que se estendem no tempo - evitar determinadas ruas, intuir a hora limite de voltar para casa, saber até quais caminhos é permitido ir.Mariana Possas, professora de Sociologia e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre o Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, utiliza o termo “adaptação cotidiana à violência” para se referir a essas concessões que a violência impõe. “Não precisamos estar nas periferias para haver violência, mas sabemos onde a violência termina em disparo de arma de fogo para matar. É uma adaptação muito radical e cruel”.Na última quarta-feira (11), F. reabriu seu comércio, mas com antecipação do fechamento em duas horas. As entregas também foram adaptadas: o entregador não entra em três localidades – Águas Claras, Cajazeira 11 e Independência – até segunda ordem.
O saldo da procura
Cajazeiras nasceu para ser um bairro planejado, com prédios, casas e equipamentos urbanos. A falta de moradia para todos já era uma realidade na década de 70, o que levou o Governo da Bahia a formular o Projeto Urbanístico Cajazeiras. Proprietários de chácaras foram desapropriados para que, em 1978, o projeto fosse posto em prática. A equipe envolvida no plano da extinta Empresa de Habitação e Urbanismo da Bahia (Urbis) recebeu críticas pela distância do bairro, pensado para 20 mil habitantes - o número está três vezes maior no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2020 -, mas o programa seguiu.
Cada terra desapropriada recebeu um estudo e o bairro, fatiado por número.“Primeiro Cajazeira 4 e 5, depois a 6, 7, 8, 10 e a 11. Só não teve a 9, por um problema fundiário”, explica Tânia Scofield, arquiteta que participou da implantação do Projeto Cajazeiras, atualmente presidente da Fundação Mário Leal Ferreira.A desapropriação de três fazendas - entre elas a Fazenda Grande - levou à integração de novas áreas. Daí ser comum, hoje, moradores se referirem a Fazenda Grande como Cajazeiras, pois tudo passou a integrar o reformulado Projeto Urbanístico Integrado Cajazeira. O bairro de Águas Claras existia, mas tão próximo a Cajazeiras a ponto de se confundirem. Já Boca da Mata surgiu como uma ocupação espontânea dentro de Cajazeira 10. Na virada para os anos 80, Salvador registrou um dos maiores picos de crescimento, diante do êxodo rural e do avanço industrial.
A ideia do bairro planejado não vingou, com a chegada de pessoas a encostas ou planícies de Cajazeiras. A Urbis tentou, sem sucesso, sufocar as invasões.
O bairro cresceu e desenvolveu um polo comercial – em 2015, o Shopping Cajazeiras foi inaugurado. A Rótula da Feirinha era pensada, desde o princípio, como a rota central que viria a ser. Em 1985, G. chegou à Cajazeira 11, para morar numa das casas planejadas, hoje bem distante do projeto original.
Lá ele criou família e passa a maior parte do tempo. “Apesar dos últimas acontecimentos, acho um lugar tranquilo. Aqui você tem um certo tipo de tranquilidade para conviver no barzinho, curtir com a família”, diz G.
Ao longo da semana, ele evitou sair, exceto por necessidade, sempre com documentos em mãos, em caso de ser abordado por policiais, e nunca para áreas que ele considera de mais risco, como Águas Claras e Independência e Jaguaripe, ambas em Cajazeiras.
No fim da última sexta (13), as operações de busca pelos envolvidos nas mortes dos policiais seguiam sem intervalo pelo bairro, mas G. optou por não cancelar a participação em uma festa religiosa planejada durante meses. Uma semana depois da morte do primeiro policial, o saldo das buscas é de nove mortos.*Por questões de segurança, o nome dos entrevistados foi ocultado. As iniciais não correspondem às dos verdadeiros nomes deles.