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Situações associadas ao barulho, como ameaças, costumam envolver relações de poder. Em Salvador, denúncias de som alto subiram quase 10 vezes em sete anos
Fernanda Santana
Publicado em 14 de janeiro de 2023 às 05:00
Em duas décadas de bairro, os Souza nunca imaginaram ter que agilizar a mudança de endereço pela razão de agora: a violência usada por dois vizinhos contra quem reclama do volume, sempre alto, do som deles. A caçula da família, Eline*, conheceu essa fúria no fim de dezembro passado ao reclamar do barulho e ainda se recupera dos ferimentos marcados nos olhos, boca e orelhas como um lembrete de que não os questionasse.
A poluição sonora nem sempre se esgota em si. Há, no contexto de parte delas, um arredor de medo e violência que acompanha a escalada de insegurança na Bahia, estado brasileiro com mais mortes violentas em 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O espancamento sofrido por Eline, por exemplo, aconteceu um mês depois do assassinato relacionado pela Polícia Civil à briga de dois vizinhos devido à altura da música, em Ilhéus. Rastro de violência na casa de Eline (Foto: Acervo Pessoal) Era por temer o que aconteceria que a estudante ficava calada quando os vizinhos, sem dia nem hora, ligavam o som do porta-malas do carro nas alturas, em Laje, no Vale do Jequiriçá. Há sete anos, moradores como ela convivem com a perturbação que vibra nas paredes. Na noite do último Natal, Eline* resolveu pedir que abaixassem o som. Foi a primeira vez – e será a última. “Vieram para cima de mim e já começaram a tentar me esganar, quando consegui sair, voltei para casa. Um deles invadiu e desferiu socos no meu rosto”, conta.Para remediar os ferimentos, Eline passou a madrugada no único hospital da cidade. Depois do ataque sofrido e denunciado na delegacia, a estudante voltou para casa, mas viajou em seguida para a casa de uma tia em Salvador, a três horas. “No dia seguinte, eles passavam em frente à janela, me xingando”, justifica.
Não só dos ferimentos ela se recupera, como do transtorno de estresse pós-traumático desencadeado pelas agressões. Basta falar no assunto e seu coração acelera.
'A poluição sonora é um vetor de violência. Já fui ameaçada de morte, agredida' Antes de partirem para operações, fiscais de poluição sonora da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur) vestem colete a prova de balas. A violência contra eles é o principal temor. Em 25 anos dedicados a conter o barulho, Márcia Cardim já foi ameaçada de morte e agredida fisicamente por gente que não aceitou ter o barulho questionado. Um dos fiscais de sua equipe, hoje transferido de setor, perdeu o dente em um desses ataques.
Em Salvador, os mais denunciados são veículos, áreas públicas, bares, restaurantes e residências. "Já sabemos que a poluição sonora é um vetor de violência. Não podemos generalizar, mas muitas vezes você chega naquele momento, que é o ápice da festa, e acaba prendendo o som. Não somos bem recebidos", afirma Cardim, subcoordenadora de Fiscalização Sonora.De dez cidades procuradas pela reportagem, seis demonstraram aumento de três a nove vezes nas denúncias - foi o caso de Salvador, onde as queixas passaram de 9,7 em 2016 para 93,4 mil em 2022. Carros são os maiores emissores de poluição sonora (Foto: Divulgação/Sedur) Janeiro e fevereiro são mais denunciados: a quantidade de festas é maior do que a média, sem falar nos eventos entre amigos e familiares. Este, inclusive, será o primeiro verão, desde o início da epidemia, em 2020, sem restrições sanitárias em eventos.
A poluição sonora pode ser fiscalizada e punida porque, desde 1998, é considerada crime ambiental. Em Salvador, o infrator paga, a depender dos decibéis (dB) excedentes, de R$1,2 a R$201,7 mil. São permitidos de 70 dB entre 7h e 22h e 60 dB das 22h às 7h em áreas públicas (saiba abaixo como identificar). Em residências, o máximo é de 55 dB.
As polícias Militar e Civil não estimam como esse barulho todo, se interrogado, pode alavancar a agressividade. Mas, em 155 municípios do interior baiano, Tenente Marçal vê um comportamento parecido com o identificado em Salvador. Há três meses, por exemplo, ouviu ameaças de um homem que se negava a desligar o som de um comércio - e foi preso. “Pessoas fazendo uso de aparelhagem sonora em excesso geralmente também estão ingerindo bebidas alcoólicas, o que implica na alteração de comportamentos. Às vezes em grupos, se sentem fortalecidas e no direito de invadir o direito dos outros". A ocorrência é enviada como termo circunstanciado ao Ministério Público da Bahia (MP). A partir daí, o infrator ou paga multa para recuperar o aparelho apreendido ou responde judicialmente pelo delito. O MP não respondeu quantas vezes isso aconteceu.
Em 2019, a OMS apontou três epidemias globais: obesidade, solidão e poluição sonora. Irritabilidade e estresse estão associados ao barulho em excesso. Juntos, podem fermentar a violência, já tão banalizada.
Em maio do ano passado, Neviton da Silva, 39, foi assassinado ao sair do trabalho, no bairro de Cidade Nova. O assassino teria se revoltado com a altura da música na frente da barbearia de Neviton - o aparelho sonoro sequer era dele. Antes de matar, falou a irmã da vítima ao G1, o policial que disparou o gatilho disse: "Já estou cansado disso, estou cheio de ódio".
A música que virou dor Na primeira vez em que ouviu música depois do assassinato do irmão, Ailyn Marcela Magalhães de Almeida, 36, chorou. “A música para a gente da família, acabou remetendo à dor e saudade", diz a professora, um dos dez irmãos de Arivan, o caçula morto na manhã de 19 de novembro do ano passado, em Ilhéus.
O assassino depôs ter matado depois de uma briga provocada pelo volume do som ligado por Arivan. Para Ailyn, essa pode ter sido a gota d’água, mas não “o motivo”. Em Ilhéus, as denúncias contra poluição sonora cresceram 32% nos últimos sete anos.
Ela lembra detalhes daquele dia: Arivan chegou às 4h30 em casa e pôs música em uma caixa portátil pequena, o que tirou a esposa dele da cama. “Ela desligou, mas ele ligou e deixou baixo terminando a cerveja”. O vizinho, então, surge para reclamar. Começa a discussão, revela-se a tragédia: Arivan esfaqueado. “Meu irmão morava lá desde agosto e desde o primeiro dia havia implicações do vizinho, por coisas banais”. A família Magalhães sempre gostou de música, ainda mais em eventos festivos, “mas nada que incomodasse” e geralmente num distrito de Ilhéus que a família frequenta. Arivan era dos mais animados. “Essa história da morte do meu irmão mostra muito da intolerância. É como se as pessoas estivessem enchendo seus copos de infelicidades e esperando transbordar”, conta Ailyn.
Doutor em criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), Danilo Cymrot sugere explicações para o temor e possível violência associados à música alta. “Se quem ouve estiver em grupo e forem jovens negros, haverá o estereótipo, falso, de que o homem negro é violento”, é uma justificativa apresentada peloo autor do livro "O funk na batida".
Independentemente da classe social, faixa etária ou cor do responsável pelo som alto, o estímulo à violência masculina, por meio do porte de armas, e a intensificação do apelo do privado são elementos para pensar a violência relacionada à poluição sonora. “Há uma lógica de se sentir ofendido quando alguém reclama. É a lógica do cowboy americano: ‘Na minha casa, mando eu’. Pedir para abaixar o som vira uma tentativa de emasculação do homem. Se a pessoa tiver uma arma, ela pode atirar”.Segundo o Instituto Sou da Paz, 85% das mortes violentas em Salvador, no ano passado, foram por arma de fogo.
O contexto dessas reações seria a resistência em assumir deveres de cidadania coletivos e reconhecer a autoridade do Estado. "Isso acontece seja porque o Estado é visto como "opressor", no caso dos jovens, porque é visto como "ilegítimo", no caso de pessoas mais ricas, que não querem se submeter a regras estatais, ou porque desconfiam da capacidade do Estado de impor normas e solucionar conflitos".
A epidemia do som e o temor Aos finais da tarde, um homem abria o porta-malas do carro e, sem horário para acabar, ligava o som no volume máximo à porta da lanchonete de Angélica* em Jauá, no litoral norte. “Às vezes, era tão estressante que eu e meu marido falávamos: ‘estou no meu limite’”. No domingo, o dia mais movimentado, iam para casa cedo. “Nunca reclamamos, por medo”.
A música atraía um moinho de gente, que já quis brigar com Angélica. “Não consumiam, mas queriam ficar entrando e saindo”. Em seis meses de pandemia, ela fechou o negócio – as contas estavam desequilibradas; o ambiente, um inferno. No ano passado, a Prefeitura de Camaçari recebeu 140 denúncias de poluição sonora em Jauá, com 2,5 mil habitantes.
Desde o fim do ano, os decibéis sobem por lá, na região do Litoral Norte baiano. Chegam os veranistas, turistas, ou, de férias, donos de casas.
A proliferação do barulho acontece em um momento de avanços na indústria fonográfica. Na última década, novas caixas portáteis de som revolucionaram o consumo público da música, tornando-se objetos de desejo ou desprezo. A possibilidade de equipamentos de som mais potentes para carros também pesou, tanto mais na pandemia, com a proibição de festas e a perda de renda.
Proprietária de uma loja de artigos para carros, Jaqueline Alves, 50, arrisca um palpite para esse recente aumento de demanda: “Com uma caixa de som, podem organizar uma festa”. Há opções ao valor de R$ 3 a R$ 12 mil.
Em cada um dos oito anos em Barra do Jacuípe, Nilda Gonçalves, 47, ouviu o volume do som subir, sobretudo na epidemia, com novos moradores e visitantes. No condomínio onde vive, uma regra reforça a lei municipal: som, apenas até 22h. “Não significa que obedeçam”.
Mas ela nunca reclama diretamente: aciona a administração ou a polícia. Se o problema não for resolvido, espera. "Não sabemos o que vem do outro lado".
Volume de música também é por conquista de territórios O volume da música e a busca por status estão relacionados historicamente. No Brasil, a trajetória do funk serve de exemplo – não é o único. “A lógica do som alto parece com a do pichador. Quanto mais distante ele pixar, mais visibilidade ele vai conseguir”, explica o criminologista Danilo Cymrot. Em uma sociedade marcada por abismos sociais, o som, tanto quanto o carro para alguns homens, é associado à conquista de territórios e visibilidade.
É por isso, e pelo desejo de transgredir, que há jovens que não ouvem música no fone de ouvido em transportes públicos, mas no volume alto.
Em São Paulo, onde Cymrot estuda a criminalização social do funk, tocar esse gênero musical nas alturas era uma forma, sim, de se fazer visto. Processo semelhante se desenrola na Bahia, com o pagodão.“Estamos falando, nesses casos, de jovens, muitos deles de classe média baixa e baixa, numa sociedade racista e classista. O volume do som vira forma de obter visibilidade, reconhecimento”, explica Cymrot.Para ficar no funk e no pagodão, esses também são dois gêneros musicais em cujo grave ficará mais marcado quanto mais alto forem tocados. Mas não funciona limitar o barulho às periferias. Em Salvador, dos cinco bairros mais barulhentos, dois deles, Pituba e Rio Vermelho, são de classe média alta.
A conquista da rua a partir do som é mundial. Na Jamaica dos anos 40, DJs equipavam caminhões com toca-discos e geradores elétricos e estava feita a festa – essa é uma das origens dos paredões de som (rebocado, instalado ou acoplado no porta-malas de veículos) que se espalharam pelo Brasil a partir de 2014, época de recessão econômica no Brasil, que exigiu lazeres baratos.
Na Bahia, os paredões chegaram a ser proibidos em outubro de 2021. A repressão veio depois do assassinato de seis pessoas em uma festa do tipo, no Uruguai, e para controlar as aglomerações e denúncias sobre poluição sonora. O ato do então governador Rui Costa foi visto, por alguns, como tentativa de criminalizar essas festas, já parte da cultura de festas de rua, e restringir a violência aos bairros periféricos onde esses eventos acontecem.
Barulho e violência, ao contrário, não escolhem lugar: são epidemias para todos.
SAIBA VERIFICAR SE SEU SOM PASSOU DOS LIMITES
Como nem todo mundo tem um medidor de decibéis em casa, há aplicativos para celular (IOS e Android) que medem os decibéis. Você também pode perguntar à vizinhança se o som está incomodando. Outra forma de auferir o quão alto é um som é verificar se superfícies como vidros estão tremendo.
COMO DENUNCIAR POLUIÇÃO SONORA?
Contato – Número 156, de forma sigilosa, mas não anônima.
Aplicativo Fala Salvador Transalvador – Aplicativo NOA Cidadão.