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Morte do cineasta Jean-Luc Godard levanta discussão sobre eutanásia e suicídio assistido

No Brasil, ainda é necessário entender os conceitos de ortotanásia e distanásia

  • D
  • Da Redação

Publicado em 18 de setembro de 2022 às 11:44

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Divulgação

“Essa é a condição da dialética cinematográfica: é preciso viver ao invés de durar”. O autor da frase viveu intensamente. Até que, aos 91 anos de idade, decidiu não mais durar. Um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo, considerado ícone e gênio por seus pares, Jean-Luc Godard morreu na última terça-feira. E, como nos filmes que dirigia, ele próprio concebeu o fim da sua história. Godard faleceu em sua casa na Suíça, às margens do lago Léman. Após ser acometido por “múltiplas patologias incapacitantes”, segundo os termos de relatório médico, o cineasta franco-suíço recorreu ao suicídio assistido. 

Permitido na Suíça, o método consiste em dar fim à própria vida, geralmente por meio da ingestão de medicamentos letais, com acompanhamento médico. “Essa foi a sua decisão, e era importante para ele que ela fosse conhecida”, afirmou uma fonte à imprensa francesa. 

Outro ícone do cinema, Alain Delon recentemente manifestou seu interesse em recorrer ao mesmo procedimento. Símbolo sexual nos anos 60 e 70 (pergunte a sua mãe ou avó), o ator de 86 anos enfrenta diversos problemas de saúde, tendo passado por cirurgias cardíacas nos últimos anos. Em 2019, ele sofreu um AVC. O astro franco-suíço está vivo, mas tem reclamado das condições em que se encontra. “Envelhecer é uma merda! Você não pode fazer nada sobre isso”, disse, pouco antes de sua última hospitalização.  O astro Alain Delon, de 86 anos, manifestou sua vontade de também cometer suicídio assistido (Divulgação) O suicídio assistido é legalizado também na Espanha, Alemanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Canadá e alguns estados dos EUA. Entretanto, nesses países, o método só pode ser aplicado em casos de pacientes com doenças terminais e incuráveis, que gerem sofrimento insuportável. Este ano, dois países da América do Sul deram os primeiros passos no sentido da legalização dos procedimentos. No Peru, uma mulher que sofria com uma doença degenerativa havia mais de três décadas teve o pedido de eutanásia autorizado. Na Colômbia, a justiça despenalizou o suicídio assistido por médicos. 

A demonstração pública de Delon e a morte de Godard jogam luz em temas como o já citado suicídio assistido, além da eutanásia e o suicídio de idosos, assuntos extremamente delicados em países como o Brasil, com fortes questões morais e religiosas, mas que, contraditoriamente, invisibiliza as pessoas velhas e lhes nega direitos garantidos pela Constituição, como a saúde pública de qualidade.  

Eutanásia, ortotanásia e distanásia 

Em alguns países, a eutanásia também é permitida. O procedimento consiste no ato intencional de proporcionar ao paciente uma morte rápida e indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável, por meio de injeções letais, desligamento de aparelhos, dentre outros. O paciente deseja a eutanásia (quando consciente) ou há uma autorização de um representante legal.

Advogada em Direito Médico e Bioética, Camila Vasconcelos explica que a diferença básica entre a eutanásia e o suicídio assistido está em quem realiza a conduta. “Neste segundo, quem faz com que o evento morte aconteça é o próprio paciente. Ele é acompanhado e assistido também, em geral, por profissionais de saúde. No primeiro, são os profissionais os responsáveis pelo ato”. A advogada reforça, no entanto, que no Brasil ambas as práticas são consideradas crimes. De acordo com o nosso Código Penal, a eutanásia se enquadra no artigo 121 como homicídio simples e o suicídio assistido é crime contra a vida, segundo o artigo 122. 

Presidente da Regional Bahia da Sociedade Brasileira de Bioética, Camila Vasconcelos diz ser muito importante que se comece a discutir esse tipo de temática no país, para além das universidades, “pois favorece o exercício da liberdade das pessoas, garantido na Constituição brasileira”. Antes, porém, ela diz ser preciso conhecer conceitos como ortotanásia e distanásia. 

“A ortotanásia é a morte no momento certo, em que não há outra alternativa, pois todos os tratamentos possíveis de saúde já foram utilizados. Neste caso, suspendem-se as medidas tratamentosas desnecessárias, que não causam nenhuma reversibilidade de quadro ou auxílio ao paciente, e mantêm-se todos os cuidados a ele”, explica. “A distanásia é o contrário, pois consiste na continuidade de medidas inúteis de tratamento e, muitas vezes, invasivas”, afirma. “O sinônimo de distanásia é obstinação terapêutica, o que é considerado, inclusive, uma espécie de tortura, é desnecessário, tudo o que é feito não traz benefícios”, esclarece Camila. 

De acordo com a advogada, a sociedade brasileira ainda vivencia uma situação de completa percepção da utilização da medicina a qualquer custo, sob o fundamento do ‘faça o que puder’. “Só que o ‘o que puder’ extrapola o limite do razoável. Então, hoje, nós estamos discutindo, sobretudo, a necessidade de melhor estabelecimento da ortotanásia, que é lícita, possível (há uma resolução do Conselho Federal de Medicina só sobre ela), para que não precisemos fazer distanásia”.

Setembro Amarelo

Por aqui, enquanto nenhum dos temas (suicídio assistido, eutanásia, ortotanásia) é discutido amplamente na esfera pública (falar sobre suicídio ainda é considerado tabu em nossa sociedade), acompanhamos cada vez mais casos desse tipo, principalmente entre idosos. E já que estamos no Setembro Amarelo, mês de prevenção ao suicídio, vamos falar sobre ele? 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que aproximadamente 800 mil pessoas tiram a própria vida por ano em todo o mundo. No Brasil, em 2019, foram mais de 14.500. Ainda de acordo com a OMS, os idosos são o grupo populacional de maior risco. Em 2017, o Ministério da Saúde publicou o último relatório sobre o assunto. Os dados sinalizam que, enquanto a taxa geral de suicídio entre os brasileiros é de 5,8 para cada 100 mil habitantes, entre pessoas com mais de 70 anos ela sobe para 8,9 por 100 mil habitantes. Mesmo com os números alarmantes, este fenômeno ainda recebe pouca atenção de pesquisadores, da mídia e das autoridades da área de saúde pública. 

Nos últimos anos, nos entristecemos com as mortes dos atores Flávio Migliaccio, 85 anos, e Walmor Chagas, 82, que cometeram suicídio. Artistas reconhecidos e celebrados, eles tinham em comum o fato de estarem velhos e enfrentando problemas de saúde e mentais. Mas, apesar de nos comovermos com as notícias, será que paramos para pensar sobre suas causas? 

Segundo a psicóloga Ana Bárbara Neves, estudos demonstram que o suicídio de idosos está relacionado a fatores como o isolamento social, depressão e o adoecimento. “O envelhecimento é um momento marcado por muito preconceito. De acordo com o Relatório Global sobre Ageísmo, a discriminação contra a pessoa idosa está associada a uma diminuição da expectativa de vida, da saúde física e mental, maior isolamento social, podendo aumentar índices de violência e abuso contra esse segmento da população”, explica. 

O ageismo ou idadismo é o preconceito contra a idade avançada. A gerontóloga Graça Senna reforça que a pessoa idosa é vista com muitas ressalvas entre os mais jovens: “A velhice não é bem aceita, ainda é associada à doença, à incapacidade, à falta de produtividade, e isso deixa muitos idosos à margem social. A sociedade precisa entender que estamos em um país que não é mais de jovens, mas de pessoas envelhecidas”, alerta.

Para ela, cada vez mais, é necessário encarar a velhice como algo natural: “A minha orientação é aceitar esse processo de envelhecimento e se cuidar. Cuidar da saúde física, mental, social e espiritual. O primeiro passo é aceitarmos que estamos velhos, quem já está velho; e quem não está no estado de velhice, entender que vamos envelhecer. Isso é uma realidade. Só não fica velho quem morre”. 

Vale ressaltar que o CVV – Centro de Valorização da Vida - realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente pessoas de todas as idades que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone (188), e-mail e chat, 24 horas, todos os dias. Para mais informações, o link na internet é cvv.org.br.

DESPEDIDAS 

O seu Chalita de ‘Tapas & Beijos’ deixou uma carta de despedida: “Me desculpem, mas não deu mais" (Divulgação) Flávio Migliaccio, 85 anos (04 de maio de 2020) Sempre tão alegre aos olhos do público, o seu Chalita de ‘Tapas & Beijos’ sucumbiu. “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é (…) como tudo aqui. A humanidade não deu certo”, desabafou em um bilhete encontrado ao lado do seu corpo. Segundo a família, na época, ele estava fazendo tratamento para depressão, mas resistia às sessões de terapia. O último trabalho foi em 2019, em ‘Órfãos da Terra’. Na Globo, fez ainda ‘Rainha da Sucata’, ‘A Próxima Vítima’, ‘Senhora do Destino’ e ‘Passione’. O ator norte-americano de 63 anos sofria com uma doença degenerativa que só foi diagnosticada após sua morte (Divulgação) Robin Williams, 63 anos (11 de agosto de 2014) Desde 2013, o ator norte-americano sofria com uma doença degenerativa que só foi diagnosticada após sua morte, a Demência de Corpos de Lewy, ou DCL, causada pela degeneração de células nervosas do cérebro. “Já não sou eu”, disse à esposa, nos últimos dias de vida. Williams tinha dificuldades para atuar, para lembrar suas falas, para se relacionar com seus amigos, dormir e sair de casa. Produziu uma vasta galeria de tipos cômicos e dramáticos no cinema, com filmes como ‘Bom dia, Vietnã’, ‘Sociedade dos Poetas Mortos’, ‘Uma Babá Quase Perfeita’, ‘Gênio Indomável’ e ‘Patch Adams - O Amor é Contagioso’.  Problemas de saúde limitavam os movimentos e a visão de Walmor Chagas (Divulgação) Walmor Chagas, 82 anos (18 de janeiro de 2013) Um dos atores mais importantes da teledramaturgia brasileira, Walmor Chagas cometeu suicídio no sítio onde morava, em Guaratinguetá. Problemas de saúde limitavam seus movimentos e sua visão, nos últimos anos. De acordo com o delegado responsável pelo caso, o ator também sofria de solidão. Walmor Chagas trabalhou em novelas de destaque como ‘Locomotivas’,  ‘Vereda Tropical’, ‘Selva de Pedra’, ‘Mandala’, ‘Sonho Meu’ e ‘Malhação’.  A atriz Ariclê Perez era admirada por sua elegância e intensidade na interpretação (Divulgação) Ariclê Perez, 62 anos (26 de março de 2006) O corpo da atriz Ariclê Perez foi encontrado pelo porteiro do prédio onde morava, em São Paulo, após queda de 10 andares. Horas antes, ela deixou na portaria um bilhete com os telefones de parentes para o caso de uma emergência. Famosa por ter participado de trabalhos de sucesso na TV, como ‘Felicidade’, ‘Anjo Mau’ e ‘A Casa das Sete Mulheres’, Ariclê era admirada por sua elegância e intensidade na interpretação. Na época, familiares relataram que a atriz passava por “profunda depressão”. Richard Farnsworth: indicação ao Oscar aos 79 anos e estrela na Calçada da Fama (Divulgação) Richard Farnsworth, 80 anos (outubro de 2000) O ator ficou conhecido mundialmente depois da atuação no drama ‘Uma História Real’, de David Lynch. Nele, viveu um aposentado que comoveu os EUA ao viajar 700 quilômetros dirigindo um cortador de grama para reencontrar o irmão mais velho, que não via há 10 anos. O filme rendeu a Farsworth uma indicação ao Oscar de melhor ator. Ele tinha 79 anos e se tornou o concorrente mais velho ao prêmio da Academia. Em 1992, recebeu uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood. O ator cometeu suicídio em outubro de 2000, em seu rancho. Ele sofria de câncer de próstata metastático. 

ENTENDA OS CONCEITOS

Suicídio assistido: Consiste em dar fim à própria vida, geralmente por meio da ingestão de medicamentos letais, com acompanhamento médico. Não é permitido no Brasil.  Eutanásia: Ato intencional de proporcionar ao paciente uma morte rápida e indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável, por meio de injeções letais, desligamento de aparelhos, dentre outros. Não é permitido no Brasil. 

Ortotanásia: Morte no momento certo, em que não há outra alternativa, pois todos os tratamentos possíveis de saúde já foram utilizados. Suspendem-se as medidas tratamentosas desnecessárias, que não causam nenhuma reversibilidade de quadro ou auxílio ao paciente, e mantêm-se todos os cuidados a ele. 

Distanásia: Corresponde ao prolongamento da vida, por meio do uso de remédios e tratamentos que podem trazer sofrimento para o paciente. Não traz melhora da qualidade de vida para a pessoa, tornando a morte mais lenta e dolorosa.