Acesse sua conta

Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google

Alterar senha

Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.

Recuperar senha

Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre

Alterar senha

Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.

Dados não encontrados!

Você ainda não é nosso assinante!

Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *

ASSINE

Grilagem no Vale do Capão: nativo cerca área pública e ameaça vizinhança

Ministério Público acompanha tensão em paraíso na Chapada Diamantina

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 1 de setembro de 2019 às 06:05

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Mariana Rios/CORREIO
Decreto Nº 224, de 11 de maio de 2015, cria o Parque Natural Municipal do Boqueirão

A região é de completo silêncio. O Gerais do Morrão parece impedir qualquer som senão o canto dos pássaros, o ruído das águas do Riachinho e o sopro constante do vento. Pois bem ali, no aparente paraíso, dá-se a maior disputa da história do Vale do Capão, na Chapada Diamantina. Lá, um nativo cerca, loteia a área e ameaça a vizinhança para provar que a terra lhe pertence. Os vizinhos respondem com processos e queixas na polícia.

A questão chegou à Prefeitura de Palmeiras em 2015, quando moradores começaram a relatar a ocupação na antiga terra devoluta, feita de pasto pelos nativos. A preocupação era a presença de um senhor identificado como José Mariano Batista de Souza na região e a especulação imobiliária no local. O decreto nº 224 transformou a área de 153 hectares, o equivalente a 150 campos de futebol, na unidade de preservação Parque Natural Municipal do Boqueirão.

O nativo, à época, já havia fixado residência e começado a cercar e lotear parte da terra. No Ministério Público da Bahia (MP-BA), quatro denúncias foram reunidas, em 2016, num único Inquérito Civil Público; na polícia, há seis boletins de ocorrência relacionados à ocupação do Parque e registros de ameaça ligados a Mariano. 

[[galeria]]

Durante um mês, o CORREIO ouviu pelo menos 20 moradores e nativos, advogados, corretores, policiais, promotor de Justiça e funcionários da Prefeitura de Palmeiras para desvendar os mistérios que enovelam desde a história da terra e de comunidades vizinhas até as recentes denúncias de grilagem. A luta entre posse e preservação já resultou em queixas de agressão, ameaça de morte e crime ambiental. Uma casa a oeste do Parque do Boqueirão é um dos símbolos do litígio. É onde vivem Mariano e Leila.

Ocupação  A investida sobre a terra é acentuada em 2015. É o momento em que Mariano e a esposa, a policial civil aposentada Leila Tatiana Martins, ocupam para comprovar a posse. A servidora, inclusive, responde por procedimentos junto à Corregedoria da Polícia Civil, entre eles, sobre ameaça e abuso de poder. A informação foi confirmada pela instituição. 

A partir de 2010, os vizinhos já identificam cercas e os turistas recebem propostas de venda. Os principais alvos seriam justamente os visitantes no caminho para as trilhas de Lençóis, Morrão, Águas Claras, Barro Branco e Guiné.

Desde 2016, a Promotoria de Justiça Ambiental do Alto Paraguaçu, em Lençóis, trabalha no Inquérito. O nativo nunca apresentou documento que comprovasse a posse, confirmou o promotor Augusto César Matos, à frente do caso. Ele acredita se tratar do "maior problema de regularização fundiária e de tentativa de ocupação de toda a Chapada Diamantina". "A questão de disputa de ocupação de terra se dá pela especulação imobiliária, não é pela agricultura. Não há disputa para se plantar, o que é diferente de outras áreas. A disputa é ocasionada pelas segundas-moradia e a proposta de se viver", opina. Como não foi apresentada declaração, não há estimativa do tamanho da terra ocupada por Mariano, que é rodeada de cerca.

A região é limitada, à leste, pelo Parque Nacional da Chapada Diamantina. Num dos limites, há uma placa de Reserva Legal, chamada Sítio do Boqueirão. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) checou as informações sobre o imóvel e disse que as dimensões da área estão desatualizadas, pois "parte teria sido vendida". A desatualização, afirmou o órgão, impede gerar informações sobre o espaço. Velha placa dentro de limites que depois virou Parque instituído, em 2015, pela Prefeitura de Palmeiras: tentativa de preservar área (Foto: Divulgação) No dia 6 de junho, no coreto da Vila do Capão, promotor, representantes da Prefeitura de Palmeiras, cidade à qual pertence o distrito, e moradores discutiram a questão. Foi divulgado o Termo de Ajustamento de Condutas (TAC).

Afinal, em fevereiro de 2017, Adaílde Neves, prima de Mariano, e seu marido, Afonso Timóteo, moveram processo na Vara de Iraquara, município na Chapada Diamantina, para questionar o decreto do Parque Municipal. Os dois foram identificados pela reportagem como parceiros de Mariano na empreitada pela terra.  

O decreto não só foi mantido pela Justiça, como a Prefeitura ficou obrigada a, em até seis meses, desocupar “posseiros e grileiros”, como consta no TAC a que teve acesso a publicação. Na última movimentação do processo, ficou determinado que o casal deveria apresentar documentos que jusitficasse a anulação. 

A responsabilidade de administração do parque é da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Sustentável. “Agora, a gente vai iniciar o que ficou acertado no termo. Já começamos a questão da regularização fundiária”, explica o secretário, Jenivaldo Vieira dos Santos. 

No caso de Mariano, seria impossível afirmar a usucapião, quando alguém adquire a posse da terra a partir do uso num prazo de 10 ou 15 anos. Nunca foi apresentado um documento. E mesmo que houvesse, não seria possível ocupar uma terra pública como o Parque do Boqueirão. “A pessoa pode conseguir provar que adquiriu a terra antes do decreto. Mesmo se isso for reconhecido e declarado, o máximo que se pode pleitear é uma indenização”, explica Bernardo Romano, advogado e presidente do Instituto Baiano de Direito Imobiliário.Ainda assim, seria preciso comprovar o uso da terra, com depoimento de vizinhos e apresentação de documentações, o que também não aconteceu. 

A terra das denúncias  A residência do casal é a única dentro do Parque Municipal. Os vilarejos de Campina e Campos são vizinhos. Desde 2015, carros da Companhia Independente de Polícia de Proteção Ambiental (Cippa) e da prefeitura circulam pela região para averiguar os relatos de feitos em ligações anônimas. Os moradores, em sua maioria, pedem para não ter os nomes divulgados.   

O método para anunciar lotes de terra consiste em abaixar o preço. “Digamos que uma terra que seria vendida por R$ 100 mil, ele vende por R$ 30 mil. São pessoas que vêm de fora e compram a preço de banana”, afirma um nativo. A área é vizinha à maior nascente do Riachinho, que está numa Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Dentro do Parque, brotam outros afluentes que drenam o rio. 

Duas imobiliárias do Vale disseram não fazer negócio na região. No povoado dos Campos, vizinho ao Parque, a reportagem encontrou um terreno de dois hectares por R$ 135 mil.

O Serviço de Inteligência da CIPPA chegou a identificar as cercas e os anúncios na região, mas não conseguiu ir adiante no cruzamento de informações. A Prefeitura também identificou os cercados, mas só retirará o material quando a regulamentação fundiária for finalizada. O prazo é de um ano. 

Em abril de 2015, Mariano foi ao Cartório de Títulos e Documentos de Palmeiras doar 56 hectares de terra dentro do parque para Adaílde. A doação aconteceu menos de um mês antes das terras serem transformadas numa área de preservação. Na declaração, disseram se tratar de uma herança da ”falecida mãe” de Mariano, chamada Maria da Rocha. A mãe, no entanto, segue viva, responde por Clarinda e ainda reside nos Campos. 

No repasse, Mariano apresentou um contrato datado de 2000 e declarou o tamanho da terra em 25 hectares. Em maio de 2018, Adaílde foi ao cartório realizar uma certidão de uso e posse. Dessa vez, a declaração foi de 56 hectares, um terço do tamanho total do Parque.

O advogado Alexandro de Souza, que representa Mariano, afirmou que a doação aconteceu por razões familiares. Depois de Adaílde retornar de São Paulo ao Capão, "ele [Mariano] se compadeceu da prima, que chegou e não tinha nada. Ele doou parte da terra para ela".

A reportagem questionou a diferença entre as metragens, o que é justificado como um erro na conversão das medidas. Primeiro, a terra é avaliada em tarefas; depois, em hectares. Ainda assim, permanece a diferença, já que a terra havia sido avaliado em 70 tarefas, o mesmo que 25 hectares. Sobre a "falecida mãe", o advogado atribui a um possível erro. “Não sei se foi erro da pessoa que fez o documento na época. Quem morreu foi o pai dele. Não sei se houve algum erro formal aí no documento”. 

O advogado diz acreditar que a questão tem a ver com um "apartheid" criado no Capão a partir da chegada de turistas ao distrito. ”Por trás dessa ideia de parque, na verdade está sentimento privado, vingança privada”, afirma. 

A reportagem perguntou se era possível conversar diretamente com Mariano. Inicialmente, o advogado respondeu que o cliente não tinha celular. Na sexta-feira (30), comprometeu-se a agendar uma data para entrevista.

O Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas, Títulos e Documentos da comarca de Palmeiras foi procurado pelo CORREIO, mas não atendeu à solicitação da reportagem, que pediu acesso ao documento.  

Crimes ambientais  No dia 23 de abril de 2018, o fogo no perímetro do parque levou agentes da secretaria a visitar o parque. Nas três idas, pediram que Mariano apresentasse uma comprovação da posse. O nativo bateu pé. Dois autos de infração e uma multa de R$ 5 mil foram emitidos, já que ele também não assinou o auto da vistoria. O relatório concluiu que pelo menos nove hectares foram comprometidos pelas chamas. 

No dia 15 de dezembro de 2017, agentes da Cippa tinham ido ao Parque para averiguar se Mariano e Afonso tinham desviado a tubulação de água que iria à Campina. Observaram tubos fora do lugar, remendos e terras desmatadas. A conclusão do relatório foi a utilização do acesso hídrico como “instrumento de poder”."O Parque está válido e o que estamos fazendo é o patrulhamento preventivo. Tudo mostrou que a área é comum. Assim sendo, em breve, acredito eu, ele será desapropriado", diz major Brandão.O município de Palmeiras possui o maior número de Parques da Chapada. São quatro: além do Boqueirão, Parque do Pai Inácio, do Riachinho e Monumento da Carrapeta. 

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Icmbio) foi questionado se há tensões identificadas em outras áreas vizinhas ao Parque Nacional da Chapada Diamantina. Também foi perguntado sobre o litígio no Boqueirão. A demanda, disse o órgão, foi enviada ao Ministério do Meio Ambiente, que mesmo um mês depois não atendeu à solicitação. 

Os antigos paraísos  Na imensidão dos chapadões, um vilarejo ocupa um ponto geograficamente central. No Caeté-Açú, o Capão, a produção de café, banana e a extração de garimpo movimentava a vida dos nativos, cujas casas eram erguidas sobre os montes e ao lado de rios. Os turistas começam a chegar atraídos pelo completo isolamento da região, dos anos 80. Um lugar considerado místico onde a energia elétrica chega apenas no final daquela década. Hoje, um local de intercâmbio entre mundos, repleto de pousadas, restaurantes, associações. 

Os animais pastavam sem os limites de cercas quando não havia nenhum litígio no Boqueirão. Os cavalos e jegues transportavam, pela trilha de Lençóis, os produtos que seriam vendidos na feira do município vizinho. No último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2010, existiam 2,3 mil moradores no vale – 10 anos antes, eram 1,7 mil. “Sou testemunha do que vivi desde criança. Com a especulação imobiliária, quando o turismo chegou, a coisa mudou. As roças de café acabaram, poucas pessoas plantavam”, lembra um morador. A área ao redor do Riachinho sempre foi uma das preferidas. A memória dos mais antigos não cita nenhuma outra grande disputa judicial pela terra. Na verdade, o espírito comunitário permeou o surgimento do Capão. A primeira fase de desenvolvimento do local está ligada a comunidades como a Campina e Lothlorien, de 1984. A Campina, criada aos pés do Morrão em 1990, é uma das que tentam até hoje aliar num só espaço a partilha, a ecologia e o culto às belezas. “Lá, até hoje é assim, tudo é dividido. As refeições são feitas coletivamente”, diz um morador do povoado, com o pedido de não ser identificado. A compra e venda de terra eram geralmente firmadas informalmente, lavradas no cartório com a comprovação de doação ou usucapião. Nessa época, o Capão era movido, pelo menos na aparência, pela coletividade. Nos últimos dez anos, acredita o promotor Augusto, em atuação na Chapada há 18, começaram os acirramentos. Depois da novela global Pedra sobre Pedra, com gravação da abertura gravada em Lençóis, a região tinha ganhado visibilidade nacional. "Existia um espírito coletivo. A terra era de todos, a água dividida. O que vemos hoje é um retrato da sobreposição da ganância, do poder especulativo da venda. A valorização vertiginosa do terreno", acredita o promotor.Hoje, a menos de dois quilômetros da vila, casas são vendidas por até R$ 2 milhões. Na vizinhança, as comunidades resistem. O passado de tranquilidade não dá sinais de que ganhará espaço no futuro. Mas alguns nativos esperam que nem tudo esteja perdido.  

ENTENDA 153 Hectares: é tamanho total do Parque Natural Municipal do Boqueirão, criado em 2015 - antes terreno era usado como área de pasto

4  Denúncias foram reunidas num único Inquérito Civil Público no MP-BA; na polícia, há seis registros à ocupação ilegal do Parque e ameaças

2017 Ano em que primos de investigado pedem anulação do Parque; solicitação foi negada pela Justiça em Iraquara

MEDIDAS: 1 hectare - 10 mil m², equivalente a um campo de futebol.

*Com supervisão da editora Mariana Rios.