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Depois de um ano em casa, pessoas cegas tentam relembrar como andar nas ruas

Memória é fundamental para locomoção de pessoas com deficiência visual e foi comprometida durante a pandemia

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 11 de setembro de 2021 às 05:44

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Diante da impossibilidade de ver com os olhos, Rita Ribeiro, 59 anos, enxerga com a memória e as mãos. Desde quando a visão turvou, na adolescência, ao completo breu, ela aprimorou o reconhecimento da vida por outros sentidos. Até que a pandemia impôs o esquecimento e Rita, com a mente mais embaralhada, fala que não se lembra dos lugares. Precisará reaprender. “O Rio Vermelho... não lembro mais, vou reaprender”.   Não será só o Rio Vermelho que Rita precisará reconhecer, nem será apenas ela que traçará rotas para ativar memórias. Pessoas com deficiência visual estão de frente para um novo viver. Ficaram privadas das ruas e dos outros por mais de um ano devido à pandemia e agora, vacinadas contra a covid-19, perguntam como fazer aquilo que sempre fizeram num momento de retomada de parte das atividades.     Todos os humanos necessitam da prática para manter um conhecimento. Sem ela, vem o esquecimento, e foi isso que se impôs desde março do ano passado, quando a pandemia começou. Para as pessoas com deficiência visual, o desafio de relembrar é duplo, porque o toque precisa ser evitado para conter o coronavírus e a cidade não permaneceu a mesma ao longo da crise sanitária. As ruas, como as pessoas, também mudaram, e isso faz toda diferença para quem não vê.    Em 2010, ano do último censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística estimou 582 mil cegos no país. Na Bahia, eram 33.980 pessoas que não conseguiam ver de modo algum. Não há estatísticas de quantas delas foram vacinadas contra a covid-19.    Em fevereiro deste ano, o Governo Federal incluiu pessoas com deficiência crônica na prioridade da vacinação contra a covid-19, por entender que limitações motoras, incapacidade de ouvir ou enxergar e intelectuais levavam a "um maior impacto ocasionado pela covid-19”, pelas "barreiras para adesão a medidas não farmacológicas”.    A aposentada Rita é uma mulher cega que se diz "autônoma" e que agora aprende mais uma vez a ser. Ela dança tango, trafega sozinha de ônibus ou carro por aplicativo em Salvador e mora com duas filhas e uma neta, no Largo do Tanque. No dia 2 de agosto, Rita recebeu a segunda dose da imunização e só então se viu no papel de lembrar caminhos e hábitos. Setembro é o mês oficial da luta pela inclusão da pessoa com deficiência. A aposentada Rita Ribeiro esqueceu como chegar ao banco - que ela frequenta desde 2000 (Foto: Marina Silva/CORREIO)   A menos de um quilômetro da casa de Rita, está o banco que ela frequenta desde 2000. Para chegar lá, é preciso descer a ladeira em frente à residência onde mora, pegar a direita e caminhar até o fim do passeio. Rita havia esquecido que era assim. Quem tem deficiência visual severa ou completa perda de visão guarda na lembrança comandos exatos para chegar e sair dos lugares. Até 80% de nossas impressões chegam por meio da visão, a primeira relação de percepção do humano com o mundo.  “Me perdi na memória do espaço. Estamos ativando a memória, muitos deficientes visuais estão com essa dificuldade”, conta.Três novos desconhecidos são o Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual, em Nazaré, e a Boca do Rio e o Rio Vermelho, onde ela costumava encontrar amigas. “Estou ansiosa, não sei se acerto mais ir”, conta. 

Momento é de 'reaprender a vida' Aos 7 anos, Rita já enxergava com dificuldade. As alternativas para fazer as atividades escolares eram ficar grudada ao quadro ou pedir a um colega que escrevesse por ela.  Sem ter um diagnóstico e envolta à falta de uma estrutura inclusiva, ela só completou o Ensino Médio aos 25. Já casada e mãe de quatro filhos, “me virava da forma que dava”.

A aposentada perdeu 100% da visão por uma degeneração da mácula do olho, localizada no centro da retina, que permite ver detalhes, aos 50 anos. Naquela época, sentiu nascer outra nova forma de apreender a vida. A degradação no olho foi causada por uma toxoplasmose que a mãe de Rita teve na gestação. O tato, aos poucos, tomou o lugar dos olhos. Quando catava feijão, identificava os podres pelas mãos; na faxina, sentia pelos pés descalços se ela estava limpa.   Ao decorrer dos anos, as conexões neurais de pessoas cegas são reorganizadas. A perda da visão leva a um aprimoramento de outros sentidos, como o olfato e o tato. O cérebro possui uma plasticidade que permite que isso aconteça. A memória também é potencializada. Esse aprimoramento, que se torna mais fundamental para quem passa a reconhecer o mundo pelo que ouvem ou tocam, ocorre com estímulos. 

Quando um bebê vidente (aquele que enxerga) nasce, a visão da realidade ainda é turva, mas é desenvolvida naturalmente com o tempo. Ninguém aprender a ver. O tato, por outro lado, é aprimorado conforme os estímulos.    “Existem programas de estímulo para que elas incorporem novas maneiras de enxergar o mundo”, explica Eliana Cunha, coordenadora de Educação Inclusiva na Fundação Dorina Norwill para Cegos. Quando se trata de crianças com perda de visão, os estímulos consideram que elas crescerão sem enxergar. As memórias delas serão criadas a partir de estímulos dos outros sentidos.    Em adultos que perderam a visão, há memória visual acumulada, mas que pode se perder com o tempo e dar lugar a novas formas de apreender o mundo. Aqueles que perdem a visão precisam reaprender a fazer o que consideravam básico, como andar, pois, a visão confere a maior parte do senso de localização.

A cegueira ocorre quando há ausência de percepção visual por defeito no globo ocular ou neurológico. “Quanto mais rápido ela entrar em reabilitação, melhor. O adulto reaprende a vida”, diz Eliana.    Durante a pandemia, Eliana acredita que um dos percalços é redescobrir a vida "em meio aos medos”. “A memória pode existir, mas o medo vira uma névoa sobre ela, inviabilizando atividades”. O medo é uma companhia de todos, mas pode ser maior para quem não enxerga. O estudante de Bacharelado Interdisciplinar da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Gilson Coelho, 59, mora sozinho e, por um ano e meio, ficou recluso, porque tem medo de se infectar e sabe que os riscos que ele corre podem ser maiores. A deficiência visual não costuma vir sozinha.

Dos casos de cegueira, 80% são provenientes de problemas de saúde tratáveis, alerta a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que torna parte das pessoas cegas grupo de risco para a covid-19.  Na Bahia, 33.980 pessooas são cegas, segundo o último censo de 2010 do IBGE (Foto: Marina Silva/CORREIO) Diariamente, Gilson sente como se precisasse recomeçar. No final de 2004, ele perdeu a visão por glaucoma, degradação do nervo óptico causada por alteração na pressão ocular. “É como refazer do início”, ele diz, “após tanto tempo tentando ter autonomia”. O próprio corpo de Gilson sentiu a diferença da falta de estímulos e a mobilidade não está a mesma. “Eu tenho que me redescobrir”. E no exercício de redescoberta, estão os outros.  “Conhecemos o outro pelo toque, sabemos como a pessoa é, assim. É uma nova dificuldade ver a essência do outro agora”, conta.Os impactos físicos e psicológicos deixados são percebidos no dia a dia de profissionais especializados em deficiências visuais. Em junho deste ano, a terapeuta ocupacional Amanda Argolo, do Instituto de Cegos da Bahia, se surpreendeu ao reencontrar uma paciente com 5% da visão que não via desde março de 2020. A paciente que antes conseguia fazer as atividades em casa sozinha, não sabia mais. “Tipo sair sozinho, é uma situação que muitos não conseguem. Eles sabiam como chegar aqui e agora perguntam: faço como?”.     Isso acontece, reforça Amanda, pela falta de prática. Não basta realizar uma ação. Ela precisa ter funcionalidade. “E a funcionalidade só vem quando fazemos algo de forma contínua. As pessoas com deficiência visual também precisam de estímulo constante”, explica.  

Em 2020, a busca por reabilitação, no entanto, despencou. Em 2019, o Instituto de Cegos da Bahia realizou 108.920 atendimentos oftalmológicos, psicológicos, educacionais e de reabilitação. No ano seguinte, houve uma queda de 20% nos atendimentos.   'Não é fácil falar apenas 'volte!''  O esquecimento não atingiu apenas às pessoas com deficiência visual. A pandemia é uma época de negação e, aos poucos, todos foram negados de sensações e prazeres aos quais estavam acostumados. A OMS divide em cinco os tipos de deficiência - mental, física, auditiva, visual e deficiência múltipla. Em média, 10% da população mundial possui algum tipo de deficiência.

A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência entende a "deficiência" como "barreiras comportamentais e ambientais que impedem a participação plena na sociedade de forma igualitária".    "São pessoas que já sofriam barreiras, arquitetônicas e atitudinais. A pandemia foi um novo fator de exclusão", acredita Nildo Ribeiro, doutor em Neurologia que trabalha com fisioterapia neurofuncional. Cada uma a sua forma, as pessoas foram privadas do que a Fisioterapia Funcional chama de "desempenho". O desempenho é o que a pessoa faz e vive no seu ambiente real. "Essas pessoas estão voltando aos ambientes. Mas de que forma?", questiona Nildo."Não é fácil falar apenas volte! Nem ficar treinando em casa, precisa haver funcionalidade na rua". A transição para o digital foi uma forma de adaptar formatos e manter atividades corriqueiras. Mas a inclusão nem sempre é completamente pensada. “As estruturas digitais foram fundamentais para incluir e a gente percebeu uma grande dificuldade nesse sentido. Para quem não vê, isso não é fácil. Não é apenas entrar no zoom, clicar no google meet [plataforma de reuniões online], e estar integrado”, afirma Alexandre Benini, superintendente dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado.    Desde 2018, a Secretaria de Cultura do Estado tem colocado em seus editais a necessidade de produções com acessibilidade. Antes, em 2004, já havia uma Lei da Acessibilidade. Mas nem sempre são requisitos cumpridos e ainda pior ficou na pandemia. Durante a pandemia, Sandra Rosa, que pesquisa e trabalha com audiodescrição e assessoria para acessibilidade artística, foi convidada para apenas um projeto de acessibilidade - a do Museu de Arte Moderna, reaberto no dia 17 de agosto. “Há uma população muito grande que ainda é alijada disso. A gente precisa pensar, incluir elas no pensar o acesso”, opina Sandra.    Para quem perdeu a visão e agora se vê em recomeço, repensar o acesso é uma tarefa diária. Na semana passada, Gilson foi, pela primeira vez em um ano e sete meses, ao Shopping Piedade. O centro da cidade, pela oferta de transporte público, é uma das regiões mais frequentadas por pessoas com deficiência visual, principalmente quando promovem encontros em grupo.

“Fui aprendendo aos poucos, retomando, lembrando. Acho que a própria natureza vai conspirando a favor”, diz Gilson, que, como tantos outros, se sente nascer pela terceira vez.