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Fernanda Santana
Publicado em 23 de abril de 2022 às 10:56
Foi entre gente ávida por futuro que Felipe Tuxá, 31 anos, cresceu, de modo que até o cachorro da família dele ganhou o nome de “Projeto”, palavra que fazia sonhar. Era um território imerso em possibilidades aquele onde o antropólogo aprendeu a mergulhar no horizonte, enquanto os anciões indígenas planejavam: “Quando a terra sair...”. Nessas reticências, cabiam planos que nem erros históricos sufocaram. >
Cada um da Aldeia Mãe da comunidade Tuxá traçou seu projeto de futuro, depois de terem suas terras inundadas por uma barragem. Felipe acaba de realizar parte do dele: aprovado no concurso para professor do Departamento Antropologia na Universidade Federal da Bahia (Ufba), será o primeiro docente autodeclarado indígena da instituição que tem 75 anos - 200 alunos se autodeclaram indígenas.>
Em todo o departamento onde Felipe atuará, pelo menos oficialmente, não há alunos da graduação ou pós-graduação que tenham se autodeclarado indígena na matrícula. “Até de responder, fico emocionado. É um sonho, não vou mentir. É um projeto ancestral, que vem de longe e significa muita coisa. Significa que é possível, as coisas estão mudando”, conta o Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (UNB). De linhagem tradicional, Felipe é um projeto vivo da Aldeia Mãe, no Norte baiano, onde há 60 casas. Lá, ele não ocupa uma posição solitária: é um dos três professores de universidades públicas nascidos no território, transformado em referência indígena na educação formal. >
Hoje, por exemplo, cinco jovens crescidos na aldeia estudam Medicina em universidades públicas baianas. O irmão de Felipe também é médico e trabalha no distrito indígena de Kalankó, em Alagoas, a 48 quilômetros de distância de Paulo Afonso, onde ele mora.>
O cenário educacional era diferente na infância de Felipe e do irmão, Pedro, quando os pais deles decidiram pela mudança para Paulo Afonso, onde os filhos pudessem estudar. Em meados da década de 90, a comunidade não tinha uma escola, instalada apenas em 2001 e que modificaria a realidade sociopolítica local. >
A busca pela educação como resistência>
O avô de Felipe, Antônio, era conselheiro da Aldeia Mãe e incentivava os mais jovens a estudarem - formalmente.“Ele falava muito que precisávamos estudar, sermos também os ‘doutores’. A gente percebia que as pessoas que encabeçavam a luta [indígena] eram importantes, mas todas eram não indígenas. Não tínhamos o resultado que esperávamos”, conta Felipe, pesquisador em violação de terras indígenas baianas. A necessidade de pensar o futuro, uma semente semeada em conjunto, surgiu de uma ferida aberta do passado. Em 1987, a construção da Usina de Itaparica inundou as terras originárias do povo Tuxá, ilhas margeadas pelo Rio São Francisco, e obrigou as famílias a se mudarem para outros territórios. Felipe, o irmão e os avós (Foto: Acervo Pessoal) Os mais velhos viviam a dizer "quando a terra sair" porque a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), responsável pela barragem, tinha prometido uma terra para eles. A frase cheia de expectativa, que Felipe tanto ouviu na infância, inspirou parte do título da dissertação de mestrado dele. >
Sem destino certo, o povo Tuxá estabeleceu aldeamentos nos limites de três municípios: Ibotirama, Inajá (Pernambuco) e Rodelas, onde Felipe nasceu. >
A mudança para Paulo Afonso não anulou o contato dele com a Aldeia Mãe. Aos finais de semana e em datas festivas, eles viajavam até a comunidade, a 110 quilômetros de distância. O endereço dele, na cidade, já era repleto de vizinhos vindos da aldeia. >
Essa migração era fundamental para quem não conseguia subsistir devido às limitações agrárias da nova morada. A Aldeia Mãe é uma aldeia urbana, termo sem significado unânime, mas que pode ser entendido como aquele território integrado ao espaço urbano ou o núcleo de indígenas que vivem na cidade. >
Foi na aldeia que Felipe teve o os primeiros contatos com antropólogos. O pai dele, motorista da Fundação Nacional do índio (Funai), constantemente ia a Brasília. “Vou ali buscar um antropólogo”, ele dizia.“Esses antropólogos vinham e resolviam as coisas. Eu via como mágica”, recorda. Aos 17 anos, o jovem tinha certeza de que queria seguir esse caminho de “resolver as coisas” e aproximar a vida profissional à luta do povo Tuxá. Três anos depois, partiu para Belo Horizonte, aprovado no vestibular para Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O futuro batia à porta. >
A terra prometida e a criação da escola indígena>
Quando Felipe chegou em Minas Gerais, não existiam, formalmente, políticas afirmativas consolidadas para a entrada de pessoas indígenas em universidades públicas. Eram as instituições que criavam mecanismos para isso, como a criação de vestibulares específicos para estudantes indígenas, que se juntavam em grupos para resistir ao racismo que os agredida e estigmatizava. >
As universidades federais de Minas Gerais e de Brasília, onde Felipe fez mestrado e doutorado em Antropologia, eram duas das instituições que investiam na inclusão. Somente em 2012, a lei de Cotas obriga as universidades públicas a reservarem vagas para indígenas - também para negros e egressos da rede pública de ensino. >
A política teve efeito: de 2010 a 2019, o número de estudantes indígenas no ensino superior, em Salvador, saiu de 310 para 1.455, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Felipe e crianças no Rio São Francisco que margeia a Aldeia Mãe (Foto: Acervo Pessoal) Felipe faz parte desse movimento de inclusão no ambiente acadêmico e ser professor da Ufba era um dos principais projetos dele, que passou por uma semana de provas até a aprovação no concurso, anunciada na noite de 8 de abril.“Para mim, é simbólico. A Bahia é onde a colonização começou. Estar na Ufba significava onde eu deveria estar para pensar nossa existência nesse espaço que também é indígena”, comemora. Desde 2018, ele já era professor universitário: era substituto no curso de Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena, voltada para a formação de professores da rede básica indígena, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).>
Enquanto aguarda a nomeação na Ufba, que deve ocorrer nos próximos três meses, Felipe conclui o ciclo como professor substituto da Uneb. Como nunca morou em Salvador, Felipe deve vir à cidade em maio para resolver a mudança. Aqui, ele tem outros parentes, como a artista indígena Yacunã Tuxá, vinda da mesma aldeia de Felipe. >
Um dos colegas de trabalho que o antropólogo se despedirá, em Paulo Afonso, é Dorival Júnior Jurum Tuxá, 32, historiador e primo dele. Desde jovem, como Felipe, ele viu na educação a chance de fortalecer as lutas indígenas e ter possibilidades. Ele é outro professor da licenciatura voltada a docentes indígenas.>
“É necessário fornecer uma educação de qualidade que fortaleça o vínculo do indígena com seu território, mostrando que ele tem o direito de escolha por uma profissão, mas que possa favorecer também a comunidade”, acredita o pesquisador. >
O caminho da formação >
Antes de a barragem inundar a ilha habitada pelo povo Tuxá, Rosilene Cruz, 47, ia de canoa à escola. Quando o território afundou, afogaram-se também referenciais materiais da comunidade. A família de Rosilene decidiu continuar próxima da área de onde foram desterrados, na Aldeia Mãe. A educação emerge desse tempo de perdas.“A perda do território foi um marco para essa bandeira da educação. Com a perda de referência, a educação e depois a escola indígena passam a ser referências memoriais e de identidade”, opina ela. Rosilene é a primeira professora de universidade pública - Universidade Federal do Amapá, nas áreas de Ciências sociais e Educação - nascida e criada na aldeia, em uma família com 10 filhos. Os pais dela sempre os incentivaram a estudar - as perspectivas locais de viver da terra, como boa parte da população estava habituada, foram desestruturadas pelas perdas do território. Rosilene com ancião (no meio) e professor (Foto: Acervo Pessoal) Quando desembarcou na aldeia com a notícia da aprovação, em 2016, foi um tempo de festa. A região já estava diferente daquela onde ela havia crescido: depois de anos de luta, a escola indígena se encontrava bem estruturada e acabara de incluir as séries do Ensino Médio na grade de ensino. >
Nas escolas indígenas, a formação inclui, além das disciplinas convencionais, a recuperação das memórias e a reafirmação das identidades. Foram dez professoras nativas que iniciaram a luta pela instalação de uma escola com essas especificidades.>
Entre elas, estava Aldenora Tuxá, 63, que deixou a aldeia em 1979, com destino a Brasília, para ser enviada como professora em aldeias, contratada pela Funai. Mesmo antes da mudança que transformaria a vida dos tuxás, ela sonhava com a instalação de uma escola indígena onde havia crescido.>
Quando criança, ela conheceu o preconceito nas salas de aula e sabia que "a única arma contra as armas dos brancos era a educação". >
De volta à aldeia, às vésperas da inundação, Aldenora foi uma das que lutaram pela fundação da escola. As respostas do governo estadual, até então, eram negativas, sob a justificativa de que havia um colégio em Rodelas.>
Só em 2001, a Escola Estadual Indígena Capitão Francisco Rodelas é inaugurada. A rede estadual de ensino da Bahia tem 27 escola indígenas.>
Aldenora e Maria do Socorro, falecida em janeiro deste ano, foram os pilares dos primeiros anos da escola e lá trabalhavam como "professoras, merendeiras, faxineiras". Eram apenas duas salas para os alunos, levados pelos pais interessados numa nova proposta educacional. >
Hoje, os 252 alunos são Tuxás, assim como os professores. Em 2020, a escola foi escolhida, pelo Prêmio Anísio Teixeira, como a escola pública referência daquele território de identidade, chamado Itaparica. "Já existia uma predisposição para educação como caminho. Aprimoramos essa educação sem deixar de pensar na continuidade da vida acadêmica", afirma a diretora da escola, Tayra Jurum Tuxá, irmã de Júnior e filha de Aldenora. É na escola onde alunos aprendem caminhos para conhecimento da própria identidade. Antes de fixar residência na Aldeia, aos 8 anos, Tayná Cá Arfer, 14, viveu em três cidades, onde estudou em escolas não-indígenas. "Aqui aprendemos nossos rituais, língua, estamos em família”, diz.>
Um dos conhecimentos mais importantes, para ela, foi a descoberta do seu sobrenome indígena, pesquisado para um trabalho escolar. A três anos do vestibular, a estudante pensa em cursar Antropologia. Da forma que puder, pretende contribuir com ações e palavras que façam sonhar - como aquelas que Felipe, o primeiro professor indígena da Ufba, se acostumou a ouvir na infância. >