'A maior arma contra o coronavírus é parar', diz cientista defensora do isolamento social

Em entrevista, Claudia Feitosa-Santana explica por que auto-isolamento pode ser solução

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  • Fernanda Santana

Publicado em 21 de março de 2020 às 05:15

- Atualizado há 2 anos

. Crédito: Divulgação

Claudia Feitosa-Santana, 49 anos, não é infectologista e nunca estudou o comportamento biológico do coronavírus. Mas, como cientista, quer levantar a bandeira da ciência e ocupar um papel na divulgação científica sobre o novo vírus. “Acho que a principal mentira é negar que o isolamento social é benéfico e ser contra o isolamento social”, opinou a neurocientista Claudia, pós-doutora em neurociência pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Ela consome o mínimo possível de notícias e está empenhada em ler e traduzir aquilo que é fato sobre o novo coronavírus. 

No dia 13 de março, um vídeo de Claudia, gravado pela instituição Casa do Saber, voltada para a produção de debates viralizou nas redes sociais. De frente para a câmera, ela emenda uma linha de raciocínio que propõe o direito de parar como forma de frear o coronavírus.  “Um monte de gente que acha meu vídeo lindo na sexta, sai comentado que aquilo é o que deveria ser feito, no sábado vai para balada, para casamento. Ah, legal, o que eu falo sobre isolamento é ótimo, você diz isso e daqui a pouco vai para um bar, para um restaurante, para um casamento”, lamentou a neurocientista, por telefone.Na quarta-feira da semana da gravação, ela acordou como se despertasse de uma catarse, um momento de revelação. "Fiquei completamente desesperada e mandando mensagens para as pessoas perguntando: já caiu sua ficha?", lembra ela, que adota o isolamento exceto quando não consegue adaptar o trabalho, e mora, em São Paulo, com o pai de 77 anos e a mãe de 72. "A maior arma contra o coronavírus é parar", defende.

A maior defesa da neurocientista, que estuda percepção, é de que cada um tem seu papel na campanha contra o coronavírus. Os ricos, por exemplos, têm a obrigação moral de não ir para as ruas, ela acredita."Todo mundo que pode tem que sair da rua, porque se todo que pode sair da rua, você minimiza muito a transmissão e tem um impacto excelente.  A rua hoje é só para o pobre, para quem realmente não pode parar", acredita.Não há, oficialmente, nenhuma recomendação de auto-isolamento, exceto para casos suspeitos e comprovados de pessoas infectadas pelo coronavírus.

Durante a entrevista, por telefone, a neurocientista defende, com bases científicas, o auto-isolamento, fala sobre o avanço da Covid-19 no Brasil e no mundo, aponta para a necessidade de mudanças e explica que mesmo a pandemia pode ter um saldo positivo. "O que vamos aprender com essa história? Que o mundo mudou e o que acontecer daqui por diante será diferente", concluiu. Confira na íntegra: 

Uma coisa que tem se discutido muito por conta do coronavírus é o direito de parar. Você acha que temos esse direito? A gente não tem mesmo direito de parar. É tanto que quando a gente fica doente ficamos apavorados, porque não podemos ficar parados. E o que fazemos? Nos entupimos de remédio. O correto para tratar uma gripe, por exemplo, é descansar, mas a gente não pode fazer isso. Vivemos numa sociedade que, apesar de ser muito mais produtiva que no passado, essa produtividade é resultado de um trabalho insano. Nós trabalhamos insanamente. 

Então, tem até um lado bom no coronavírus. Apesar de toda a desgraça, nós vamos perceber que é preciso parar. Só que essa nossa parada vai ter um custo gigantesco economicamente. O mundo vai precisar se reestruturar. O que vamos aprender com essa história? Que o mundo mudou e o que acontecer daqui por diante será diferente. De acordo com Paulo Saldiva [médico patologista e pesquisador], a gripe espanhola demorou sete anos para virar pandemia.

A gente pode dizer que o coronavírus demorou sete semanas, aproximadamente, pouco mais de dois meses.. O mundo tem que mudar e por que o vírus se espalhou tão rápido? Porque o avião é capaz de levar o vírus rapidamente para o outro do lado do mundo. Temos outras histórias de vírus, perigosos, que vão continuar acontecendo. Daqui a quatro, cinco anos, pode ser que surjam novos. A gente não pode passar por isso e não aprender nada. A gente precisa aprender a viver de outra formar.

Que outra forma de viver seria essa? A gente vai precisar parar para questionar que forma de viver seria essa. Muita coisa boa vai vir com o coronavírus. Eu acredito nisso. As empresas vão perceber, por exemplo, que você não precisa viajar o tempo todo por besteira, para qualquer reuniãozinha que aconteça. É insalubre. Além de ser um gasto de dinheiro desnecessário, é insalubre viajar de avião o tempo todo, sem necessidade. Isso acho que vamos aprender. Nossa higiene vai melhorar também. Taiwan e Singapura já tinha aprendido muita coisa com a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), tanto é que a maneira com que eles lidaram e lidam foi muito eficiente.

Eles estão vivendo de forma restrita, tem muita gente em quarentena, mas, dessa forma, eles estão com distanciamento social e tem mais controle em relação aos números. Eles não precisaram passar pelo que Itália passa, que não sabia lidar com o problema. Na Itália, eles correram atrás do prejuízo, não lidaram com o prejuízo antes dele chegar. Singapura e Taiwan não, eles se preparam para não ter que enfrentar uma tragédia.

E o Brasil? Ah… Não vou querer politizar, certo? Mas, para ser bem sincera, estou acompanhando a literatura científica e não estou acompanhando tão de perto as atitudes dos governos em geral. Todos os governos têm que seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas não posso dizer quem está seguindo mesmo e quem não está.  

O que acontece é que a melhor medida para desacelerar a velocidade com que o vírus se propaga é o isolamento social, só que o isolamento tem um custo econômico e psicológico muito grande.

O que a gente tira disso? Quem pode parar e quem pode parar e trabalhar em casa tem o dever de fazer isso. Porque aí você não está minimizando só seu risco de ser transmitido, mas você sai de circulação e aumenta o espaço livre para que aquelas pessoas que não podem parar, que não podem sair das ruas. Não é só sobre contaminação, mas sobre manter o espaço das ruas livre para quem não pode parar. 

Mas os governos, de forma geral, tem conseguido controlar a partir desse isolamento? Os governos, sozinhos, principalmente de sociedade democrática, como as americanas, não conseguem controlar os movimentos das populações como no caso dos asiáticos. Os asiáticos têm um modelo menos democrático, mais vertical, então é mais fácil para o governo chegar e controlar a sociedade para controlar a velocidade com que o vírus se propaga.

Em sociedades como as nossas, primeiro, temos um histórico de desconfiança em relação aos governos que é gigantesco. Nosso grau de conformismo também não é igual ao dos asiáticos, que seguem, por obrigação, o que o governo manda. Aqui, não seguimos nem o que é o recomendado.

De onde vem essa ausência de direito de parar? O próprio sistema, o nosso sistema econômico, a nossa organização de trabalho, é ainda muito centralizador. Nós, até aqui, estamos caminhando para uma sociedade mais horizontalizada. Só que essa mudança não acontece da noite para o dia, é gradual. Mas muitas empresas vão descobrir, agora, como isso poderá ser feito.

Nas empresas, tem gente que sempre vai preferir trabalhar fora, de casa, e tem gente que prefere sair e trabalhar dentro. E a gente sabe que quando as pessoas estão bem elas são mais produtivas, seja aquela que quer sair e aquela que quer ficar.

Muito tem se falado sobre o elitismo que engloba esse direito de parar. Como você avalia isso? Primeiro, esse vírus se espalhou por causa de rico, não o pobre, mas o foco não é esse. O que a gente tem que focar é no seguinte: o rico agora tem um papel moral, muito importante, mas que só depende dele mesmo. O rico tem o direito de sair das ruas antes que o governo siga as recomendações da OMS e obrigue o isolamento.

Quem é rico provavelmente teve educação e quem tem educação tem que entender que é preciso parar. Estou vendo um monte de gente que acha meu vídeo lindo na sexta, sai comentando que aquilo é o que deveria ser feito, e no sábado vai para balada, para casamento. O que é isso, Fernanda? Ah, que legal, o que eu falo sobre isolamento é ótimo, você diz isso e daqui a pouco vai para um bar, para um restaurante, para um casamento... essa pessoa está ocupando um lugar que ela não poderia estar ocupando.

A rua hoje é só para o pobre, para quem realmente não pode parar. Então, não é um vírus elitista, porque vai chegar para todos. E tem mais: na Itália, está morrendo rico e tá morrendo pobre. Todo mundo que pode tem que sair da rua, porque se todo mundo que pode sair da rua, você minimiza muito a transmissão e tem um impacto excelente.

O que não dá é continuar indo para praia. Em Portugal, a polícia precisou ir para a praia evacuar. Ficar em casa não significa ter férias, mesmo porque vamos passar por isso semanas. Não será fácil, nem está sendo fácil, e as pessoas têm que se conscientizar disso. 

E é possível medir o impacto positivo desse isolamento em números? Eu queria fazer essa estimativa, mas não trabalho com modelos matemáticos. Outra coisa: o que acontece é que todos cientistas que podem fazer essas análises com mais confiabilidade estão enlouquecidos trabalhando dia e noite para poder fazer projeções de leitos, do que é preciso, do que será preciso para atender as pessoas. Eles não conseguem parar para fazer a análise. Eu já tentei fazer, mas não consigo, são muitas variáveis, muda de lugar para lugar.

Mas tem uma coisa, sim, que dá para dizer: Taiwan era para ter o segundo maior número de infectados com a Covid-19 e não tem. Não é porque lá tem uma temperatura quente, que matou o vírus, nem nada, mas porque eles iniciaram a campanha. A partir de 5 de janeiro, já havia medidas de controles do vírus. Eles conseguiram fazer análise de todos os possíveis contaminados. Eles têm uma morte. Singapura não tem nenhuma. 

Por que você acha que, mesmo assim, as pessoas insistem em não querer se isolar, se distanciar? Porque ninguém quer mudar de vida, porque mudar de vida tem um custo energético gigantesco, você precisa raciocinar para isso e a gente não quer raciocinar para mudar. A pessoa só para, em geral, por motivações egoístas.

Tem muita gente sendo altruísta agora, consigo ver isso, mas ainda há muito egoísmo. Quando você passa a ter muito medo, ou quando você entende melhor a situação e tem medo de passar para alguma familiar, aí você muda. Então, enquanto a desgraça não bate na sua porta você não quer mudar, quer continuar sua vida normal. 

Posso te dar o exemplo do divórcio. Quando as pessoas divorciam? É óbvio que têm pessoas que se divorciam como se trocassem de roupa, não é esse o exemplo que quero dar. Quero falar sobre pessoas que sofrem muito e gastam muita energia para isso. Quando você opta pelo divórcio mesmo assim? Quando continuar casado fica insuportável, porque aí a energia que você gasta para mudar é menor que a energia de continuar casado. Para mudar de emprego é a mesma coisa. As pessoas, geralmente, vão até o limite para mudar. 

Quando as pessoas vão mudar? GmE não é só o governo que tem responsabilidade. Só o governo não dá conta e não tem dado conta em lugar nenhum.

Obviamente que a gente tem muito mais infectados do que os números indicam, porque se não estamos testando os pacientes como outros lugares testaram, os nossos números não são reais e certamente são maiores. Então, a gente pode estar na fase de transmissão coletiva sem nem saber. Quem tem acesso a essa informação precisa se cuidar e cuidar do mundo, da nossa sociedade, da sua comunidade.

Esse problema das testagens dificulta o quê? O fato de a gente não está testando tem implicações do ponto de vista científico e estatístico. Se a gente for pensar hoje, com a situação que a gente tem hoje, é melhor ficar casa, com febre, com dor do corpo, com tosse seca, e entrar em contato com fontes oficiais, com médicos, que ir para hospitais. 

Tenho muitos amigos que fazem parte dessa força tarefa e que estão correndo atrás. É óbvio que dá medo, dá ansiedade, mas as pessoas precisam respirar fundo e ir atrás das informações. Sair de casa com uma febrinha, para ir se testar, acho que não é o caso, não tem teste para todo mundo e você ainda pode acabar contaminado sem nem ter chegado lá com o vírus.

Na Inglaterra, estão fazendo tenda fora no hospital para que o vírus não entre. O pânico nessa hora não ajuda em nada. Todo mundo deveria ser testado, então nossos dados são limitados. A Coreia do Sul é um exemplo de que quando ela começou a testar, ela abaixou o número de casos.

Singapura está há sete semanas vivendo de formar restrita. Minha amiga ficou duas semanas em isolamento, e ficou uma semana trabalhando de casa e outra lá, porque o escritório só podia ter metade da ocupação. Singapura não tem nenhuma morte.

Testando as pessoas você consegue mudar a forma com que o vírus se propaga, mas custa muito caro e o Brasil não tem dinheiro para isso. Meu amigo taiwanês precisou ser testado três vezes negativo para ser liberado. Ele está há mais de 55 dias de quarentena, porque ele estava no Diamond Princess [navio que ficou isolado, depois de casos de coronavírus]. Esse teste, quando dá positivo, geralmente é positivo, mas quando você testa uma pessoa muito importante, você testa mais de uma vez. É caríssimo testar. 

Agora, você acha que estamos em que momento: da negação ou do pânico? É um processo. A maioria das pessoas nega desde o começo, só não nega, de cara, quem é cientista. “Imagina, o povo tá ficando louco”, alguns dizem… Imagina que tem médico que nega, porque dormiu naquela aula, porque faltou, vai saber o que estava fazendo, em geral a maioria nega.

O que você precisa para sair disso? É preciso conseguir informação de qualidade e filtrar informação. A pessoa precisa buscar duas fontes: oficial e científica. E você pode conseguir isso em veículos de qualidade. O que vejo ao meu redor é que todo mundo acha que deve estar informado.

Mas é melhor está desinformado do que mal informado, é o que Denzel Washington fala e eu concordo. Muito provavelmente, a gente pode dizer que a sociedade como um todo está mais num grau de negação, dado o nível de educação.

O que a acontece: da negação para o pânico é muito rápido e para você sair do pânico para lidar com essa situação com cautela precisa é de informação, boas informações. Eu já recebi uma enxurrada de fake news, mesmo dentro da comunidade científica. A gente tem, na nossa história, mutação de vírus, vários, ela é perigosa porque viaja de avião e contamina um monte de gente o tempo todo. Dizer que a China vai lucrar com isso, como alguns disseram?

A China vai conseguir se reconstruir, mas que ela tira vantagens disso, não. Os chineses estão revoltados porque o governo demorou para agir. Mas quando o governo reagiu, conseguiu contornar a situação.

Recentemente, nunca se produziu tanto conteúdo jornalístico por causa de um vírus.  Há confusão de informação? Eu acho o seguinte: os cientistas que estão seguindo essa literatura científica do que é produzido é gigantesca e eles estão bem informados. Mas, vou te falar uma outra coisa: uma coisa é o cientista e outra é o médico que atua no dia a dia.

Tem muito médico que fala besteira e não está indo lá estudar esse volume absurdo de produção sobre o coronavírus e fala besteira sem pensar. Mas o médico que é cientista, e faz ciência, em geralmente, está mais atualizado. Mas, infelizmente, quando um médico faz um vídeo ou escreve um texto irresponsável é muito mais difícil… Acabei de ver uma coisa aqui de um infectologista que é, assim, surreal. Por isso que tem que confiar nos canais jornalísticos de confiança, que checam informação.

E qual você acha que tem sido a principal mentira, o que está mal contado sobre o coronavírus?  Só para você ter uma ideia, quando eu gravei esse vídeo falando sobre o coronavírus, na quinta-feira, do dia 12 de março, a gente tinha 909 artigos no repositório da Covid-19. Quando, no dia seguinte, foi publicado o vídeo, já tinham 994 artigos. Agora, estou conversando com você, tem 1.150 artigos. 

Eu acho que a principal confusão e mentira é negar que o isolamento social é benéfico e ser contra o isolamento social. Parece que tem gente que ainda fala isso, acho que o pior é esse. Apesar dos danos econômicos e sociais, é o mais benéfico que pode existir. A maior arma contra o coronavírus é parar, só que tem um custo.

Quais são as consequências desse parar para nós, seres sociais? Vamos lá, vamos sofrer todo mundo junto, e vamos estar todos conectados virtualmente e temos que focar nisso. Não vai ser fácil. Nossa, eu estou só começando e estou quase ficando louca.

Como posso dizer isso? Preciso dar um jeito de fazer exercício físico em casa. Meu amigo ficou 12 dias num quarto sem janela e ele disse que é absolutamente enlouquecedor. Nós não estamos num isolamento forçado, então pode ajudar pensar em quem está numa solitária, que é muito pior. Nós temos condições de nos adaptar, mas precisamos reinventar como isso será feito. 

Eu tenho um vídeo que fiz recentemente sobre celular e as pessoas têm aqui uma oportunidade de continuar usando o celular de uma forma imbecil ou usar da forma correta, para aprender e se comunicar e estar perto de quem está muito longe.

Eu morei em Chicago [nos Estados Unidos, por sete anos] e vi meus sobrinhos crescerem via Skype. Eles sempre se sentiram próximos de mim. A gente precisa saber como agir. Nós já somos seres digitais, é preciso que sejamos seres digitais inteligentes.

Vamos logo mais, provavelmente, entrar em fase de isolamento obrigatório e aí seremos obrigados, não tem jeito. Se ele é muito eficaz, aí você vai relaxando para ter distanciamento, mas não dá para prever. Mas não adianta a gente ficar falando que não resolve agora, vamos ter que lidar com o problema dia a dia e procurar a voz dos especialistas que já estudaram o assunto.