Veja o que esperar do uso da inteligência artificial nas eleições no Brasil

Uso da tecnologia nos bastidores das campanhas já é uma realidade brasileira

  • Foto do(a) author(a) Carolina Cerqueira
  • Carolina Cerqueira

Publicado em 18 de agosto de 2024 às 05:00

rstock Brasil terá neste ano a sua primeira campanha com  IA acessível ao público e com regulamentação do TSE
Brasil terá neste ano a sua primeira campanha com IA acessível ao público e com regulamentação do TSE Crédito: Shutterstock

Nem que tenha sido só por curiosidade, você já deve ter feito alguma pergunta ao ChatGPT. Se não faz ideia do que essa palavra significa, já deve ter ao menos escutado por aí algo sobre Inteligência Artificial, ou simplesmente IA. Ela tem mudado os hábitos cotidianos de meros mortais e mexido com o mercado profissional de diversas áreas. Em ano de eleição, a pergunta a ser feita é: como a IA vai ser usada nas campanhas políticas?

A tecnologia não surgiu agora, mas o modelo chamado de generativo - que faz a tecnologia criar elementos como textos e imagens - tem dado o que falar depois da popularização do ChatGPT, que começou em 2022. No dia 8 de agosto, a Open AI, criadora da ferramenta, anunciou que a versão gratuita ganhou a função de criar imagens.

“Basta pedir ao ChatGPT para criar uma imagem para uma apresentação, personalizar um cartão para um amigo ou mostrar como algo se parece”, diz a publicação da empresa no X, antigo Twitter.

Depois de experiências com as recentes disputas eleitorais na Argentina e nos Estados Unidos, que ainda está em curso, o Brasil se prepara para o que vem pela frente tendo como ponto de partida o dia 16 de agosto, que marcou o início da primeira campanha com a tecnologia acessível ao público comum e com regulamentação feita pelo Tribunal Superior Eleitoral. 

O TSE deu o passo à frente ainda em fevereiro deste ano. O órgão aprovou a regulamentação do uso de IA para as eleições municipais de 2024. Uma das resoluções prevê a obrigatoriedade da propaganda com IA conter aviso de uso ao eleitor. Ainda está prevista a restrição do uso de robôs para simular diálogo de candidatos com eleitores.

Inteligencia Artificial (IA)
Inteligencia Artificial (IA) Crédito: Shutterstock

Outra resolução proíbe as deepfakes, montagens em vídeo geradas por IA em que pode aparecer a imagem de um candidato falando coisas que ele nunca disse. O recurso foi usado na disputa eleitoral nos Estados Unidos com áudios, criando ligações nas quais a voz do ex-candidato Joe Biden pede a eleitores para não irem às urnas.

Como a IA já tem sido usada na política

Em março deste ano, uma matéria da BBC noticiou a circulação de imagens falsas nas quais o candidato Donald Trump aparecia ao lado de eleitores negros. Ao serem entrevistados, os criadores das imagens disseram não ter compromisso com a representação exata da realidade. Eles não fazem parte da equipe oficial de campanha de Trump.

Geradas por críticos ou apoiadores, também foram encontradas pela BBC imagens de Joe Biden ao lado de outros líderes mundiais, como o presidente russo, Vladimir Putin, e o ex-presidente dos EUA Barack Obama.

João Guilherme Bastos dos Santos é pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) e destaca que grande parcela do uso de IA nas campanhas também tem como objetivo a produção de memes. “Nos EUA vimos produtores de conteúdo usando IA para produzir memes que ridicularizam Joe Biden. Na Argentina, foram identificadas muitas postagens de memes estilizados, com estética específica, sobre Javier Milei e Sergio Massa”, compartilha.

Também foram discutidos internacionalmente casos de uso de IA nas eleições da Eslováquia, Indonésia e Índia. Neste último, a tecnologia serviu para mostrar figuras políticas já falecidas apoiando outras e ainda candidatos discursando em diversos idiomas, já que no país há diversidade linguística.

João Guilherme dos Santos destaca que ainda há outros tipos de uso, lícitos, não ligados à desinformação e sem objetivo de enganar o leitor. “A IA tem sido usada para criar variações de propagandas, o que significa uma equipe de marketing produzindo testes e diferentes versões de propagandas adaptadas à cada tipo de público. A tecnologia serve para facilitar esse processo, diminuindo o tempo e o custo de produção”, diz.

A estrategista e consultora política Cláudia Guimarães, de 32 anos, diz que usa IA diariamente no trabalho, principalmente a versão paga do ChatGPT com base nos conhecimentos que ela adquiriu sozinha estudando sobre o tema. “Dá para fugir do lado nebuloso usando para facilitar as tarefas do dia a dia em uma campanha política”, defende.

Ela conta que utiliza para ações como elaboração de relatórios e acompanhamento de métricas. Além disso, construiu uma base de dados que substitui um manual físico de milhares de páginas com instruções para otimizar as respostas que a equipe de gestão de pessoas fornece aos eleitores.

“Eu forneço os dados e direciono a ferramenta e funciona muito bem. Mas ela não fala por mim ou pelo candidato e nem pensa estratégicas; essa parte fica com os humanos”, pontua.

O pesquisador e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) Matheus Soares lembra ainda a possibilidade de criar jingles políticos através de IA e ainda usar o ChatGPT para gerar textos de divulgação. “Pontos positivos existem, sim. É possível usar como um recurso, uma ajuda, uma colaboração, enquanto a gente fica com a capacidade analítica de pensar e refletir. Acho que valem as experimentações tecnológicas, mas é preciso estar alerta quanto ao risco de desinformação”, diz.

Em julho deste ano, a NBC News mostrou que o ChatGPT e o Copilot (ferramenta da Microsoft) reforçaram informações falsas sobre um debate nos Estados Unidos entre Biden e Trump. Segundo o material, as inteligências respondiam que sim ao serem perguntadas sobre a veracidade do boato que havia viralizado sobre o evento ter sido iniciado com atraso para ser editado antes de chegar ao público.

Como medida de prevenção, o Google anunciou este mês que o Gemini, ferramenta de IA da empresa, não responderá perguntas sobre as eleições brasileiras de 2024. A ação faz parte das iniciativas da big tech em conjunto com o TSE para combate à desinformação.

Teste feito pela repórter com o Gemini, do Google
Teste feito pela repórter com o Gemini, do Google Crédito: Captura de Tela

O que esperar para a eleição brasileira de 2024

Para o pesquisador João Guilherme dos Santos, no Brasil, a IA tem grandes chances de ser usada nas eleições deste ano para fazer circular áudios falsos no WhatsApp. “Já conseguimos identificar isso em outros países e até mesmo já no Brasil. Num levantamento sobre o aplicativo, identificamos que a maior parte dos áudios com grande viralização continha informações falsas e pessoas se passando por outras”, destaca.

Quanto ao uso com fotografias e vídeos, o especialista diz acreditar na maior probabilidade de fins humorísticos, com memes, do que de desinformação. Mas o especialista em comunicação política Arthur Ituassu, professor da PUC Rio e professor visitante da Universidade do Arizona, pondera que, em casos de fins desinformativos, o TSE terá dificuldade para fiscalizar.

“Estamos falando de eleições municipais. Neste caso, é ainda mais difícil porque são muitos municípios. E o país e o órgão precisa se preparar porque eu não tenho dúvida de que a IA veio para ficar e vai ser mais um elemento transformador, até disruptivo num certo sentido, para a comunicação política”, coloca.

Ele acrescenta que, para colaborar com o monitoramento, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital terá uma rede de laboratórios montada em diversas universidades do país, incluindo a Universidade Federal da Bahia (Ufba).

OAB Bahia cria comissão de IA

A Ordem dos Advogados do Brasil Seção Bahia (OAB-BA) criou, no dia 8 de julho, uma Comissão de Inteligência Artificial. A presidente, advogada especialista em Direito Digital Maria Clara Seixas, explica que o objetivo é monitorar a criação de leis para regulamentar o uso de IA no Brasil e entender o impacto na advocacia.

“Hoje a gente vive num limbo, não temos regulamento específico, apenas projetos de lei. Tem quem anseie pela regulamentação e tem quem defenda que não podemos regulamentar ferramentas tão novas, sobre as coisas sabemos muito pouco já que seus desenvolvedores mantêm muita coisa em sigilo, como o funcionamento dos algoritmos”, explica.

“Basicamente, seguimos o princípio de que o que não pode ser feito no mundo real não pode ser feito no mundo virtual. E, para os processos eleitorais, temos resoluções específicas, como a aprovada este ano pelo TSE, que proíbe o uso voltado para desinformação e discurso de ódio, por exemplo”, completa.

Responsabilização

De acordo com o órgão, candidatos que façam usos indevidos de IA nas eleições poderão ter o registro ou o mandato cassado. As denúncias podem ser realizadas pelo telefone 1491 ou pelo site tse.jus.br, no qual um sistema automatizado classifica as informações de acordo com o tema. Caso haja indícios de crime, o Ministério Público e a Polícia Federal são imediatamente acionados.

Página no site do TSE desmente informações falsas sobre eleições
Página no site do TSE desmente informações falsas sobre eleições Crédito: Captura de Tela

A advogada Maria Clara Seixas lembra que, considerando que boa parte dos conteúdos são disseminados nas redes sociais, as plataformas também devem ser responsabilizadas. O TSE também entende dessa forma, prevendo que as big techs retirem do ar, imediatamente, os conteúdos e, caso não o façam, respondam por isso.

Mas o pesquisador Arthur Ituassu lembra que, apesar de outros países, como os da Europa, terem avançado quanto à responsabilização das plataformas, o Brasil ainda está atrasado. O pesquisador Matheus Soares acrescenta que, apesar da incapacidade de punir as plataformas, estas estão empenhadas em ajudar.

“Temos visto um compromisso coletivo, a criação de iniciativas. Uma delas é a criação de uma marca d’água que adiciona a informação de que aquele conteúdo foi criado com IA. Outra é a atualização das políticas de uso para dar conta dos conteúdos sintéticos”, explica.

Mas ele reconhece que as medidas podem ser burladas e que as plataformas podem ter dificuldade para fazer a moderação dos conteúdos indevidos. “Lembrando que o TSE tem essa resolução voltada para os candidatos, mas os eleitores, que estão em bem maior número, também ficam com essas tecnologias à disposição”, pondera.

Por isso, defende o letramento digital como uma das possíveis soluções. “A educação midiática é fundamental e precisa ser contínua porque, o tempo todo, estão surgindo novas tecnologias e novas dinâmicas. As pessoas precisam estar preparadas para entender as possibilidades de uso, os pontos positivos e os negativos e a identificar irregularidades”, finaliza.