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Publicado em 6 de outubro de 2024 às 12:47
"Não deixar passar nada" é uma qualidade imprescindível para um bom zagueiro. Significa que o defensor antecipa bem o corte, tem autoridade no jogo aéreo e, invariavelmente, calça o atacante antes dele avançar com a bola dominada sobre o espaço em proteção.
A mesma frase, aplicada em outro contexto, ganha um contorno negativo. Um vereador que "não deixa passar nada" pode ser aquele que ignora preceitos republicanos em nome de – digamos assim – lances mais individuais.
Não é incomum jogadores de futebol, ao findarem suas carreiras migrarem para o terreno da política, aproveitando o enorme prestígio arregimentado no campo de jogo.
O artilheiro do tetracampeonato mundial pela Seleção Brasileira em 1994, por exemplo, hoje é Senador da República pelo Rio de Janeiro. Ao pendurar as chuteiras, o baixinho Romário manteve o oportunismo e hoje defende o PL, de Jair Bolsonaro.
O que o bigodudo Roberto Rebouças fez em 1976, entretanto, foi bem atípico. Zagueiro ídolo do Esporte Clube Bahia, ele conquistou uma vaga na Câmara Municipal de Salvador enquanto ainda dava botinadas nos atrevidos atacantes e empilhava taças pelo Esquadrão.
Uma vez eleito, passou a conciliar duas carreiras bem distintas, alternando sessões ordinárias no plenário Cosme de Farias, no Paço Municipal, com os treinos físicos e táticos no Centro de Treinamento da Fazendinha, no Costa Azul – onde o Bahia realizada seus aprontos até se mudar para Itinga, em 1979.
Paulo Roberto Rebouças de Carvalho é um dos grandes ídolos da história do Bahia de todos os tempos. Ironicamente, começou a se destacar no futebol pelo maior rival, o Vitória.
Natural de São Félix, às margens do Paraguaçu, veio ao mundo dia 10 de abril de 1939. Iniciou como ponta-esquerda habilidoso, ainda no São Cristóvão. Dada sua valentia e espírito de liderança, veio recuando até rugir como zagueiro-central do Leão, ostentando a imponente camisa 4.
Em 1963, o Bahia fez uma oferta ao Vitória. Ofereceu o meia Didico pedindo em troca Roberto Rebouças. "Nessa época, era muito raro trocar um zagueiro por um atacante, mas o Bahia insistiu e fez bem na troca", diz o jornalista Paulo Leandro, doutor em comunicação.
Depois de uma rápida passagem pelo Palmeiras, Rebouças voltou ao Tricolor de Aço em 1970. No ano seguinte, firmaria sua idolatria numa partida decisiva do Campeonato Baiano.
Bahia e Vitória chegavam rigorosamente empatados com 34 pontos na penúltima rodada do torneio. Em uma rodada dupla, o Bahia enfrentaria o Botafogo de Salvador na preliminar, enquanto o Leão faria o jogo principal, diante do Jequié. Era uma quinta-feira. No domingo, a dupla Ba-Vi decidiria o título do certame.
O Bahia perdia seu jogo até os 41 minutos do segundo tempo, pavimentando o caminho para o título do rival. Foi quando o valente Roberto Rebouças abandonou a função de zagueiro e foi relembrar seu começo de carreira como ponta-direita. Driblou dois zagueiros e cruzou à meia altura para Carlinhos Gonçalves, de cabeça, igualar o marcador.
O empate era bom, mas ainda insuficiente. Faltando dois minutos para o juizão apitar o fim, Rebouças sai tabelando com o lateral Souza até ser derrubado na área. É PÊNAAAALTI! Carlinhos Gonçalves bate e vira o jogo, transformando a Fonte Nova numa apoteose carnavalesca.
Os jogadores do Vitória já estavam na boca do túnel para entrar em campo quando se deu a virada. "Testemunhar aquela espetacular batalha produziu efeitos negativos no Vitória. A cena dos jogadores tricolores abraçando-se em lágrimas ao final do jogo, a torcida urrando e sacudindo a Fonte Nova, transtornou o grande time de Juarez, Ademir, Kosileck, Mário Sérgio e André [Catimba]. O Vitória entrou em campo abalado contra o Jequié", descreve o jornalista Nestor Mendes Júnior, no livro "Bahia: Esporte Clube da Felicidade ".
O Vitória ficou apenas no empate em 0 a 0. O Bahia entrou na finalíssima com a vantagem e garantiu o título no Ba-Vi, ao vencer pelo placar mínimo.
Rebouças foi o grande nome daquela conquista. E, de acordo com Mendes Jr, recebeu dos dirigentes dois prêmios pela atuação implacável: um Fusca Volkswagen e um terreno em Mar Grande, na Ilha de Itaparica.
Em 1976, o Brasil se preparava para ir às urnas – ou quase isso. Era a época da Ditadura Militar, sob o regime do general Ernesto Geisel.
Nas capitais brasileiras e nas áreas de Segurança Nacional (cidades de fronteira ou com parques industriais), os eleitores não podiam escolher seus prefeitos, que eram indicados diretamente pelo regime. Desta forma, aos soteropolitanos só sobrava votar nos candidatos a vereador.
A Arena, partido da ditadura, havia levado uma surra na eleição de 1974, perdendo em 18 estados para o MDB, a oposição consentida. A grave crise econômica que interrompeu o Milagre Econômico Brasileiro e gerou uma dívida pública milionária se fez refletir nas eleições para Senado – com a oposição vencendo 16 das 22 vagas em disputa, além de quase formar maioria na Câmara dos Deputados (elegeu 44% das 364 cadeiras).
Foi neste contexto de se reposicionar politicamente frente à opinião pública que a Arena lançou Roberto Rebouças como candidato a vereador de Salvador. O intuito era buscar nomes populares para recuperar o prestígio da legenda pró-regime nas urnas
O zagueiro era um dos maiores símbolos daquele Bahia arrasador. Àquela altura, dos sete títulos disputados nos anos 1970, o tricolor de Rebouças já havia vencido seis. Ele era o capitão daquele escrete, formado ainda por Sapatão, Baiaco, Douglas e Beijoca.
A torcida do Bahia não teve dificuldade para alçá-lo ao cargo parlamentar. Rebouças recebeu 4 mil votos e foi um dos 9 vereadores eleitos pela Arena naquele pleito. O MDB fez 12 cadeiras, totalizando às 21 que Salvador tinha direito no período.
Rebouças tomou posse em 31 de janeiro de 1977, iniciando a vida parlamentar para um mandato que só se encerraria em 1982. Curiosamente, quem era seu colega de vereança, também eleito pela Arena, era Paulo Virgílio Maracajá Pereira – àquela época, ainda diretor de futebol do Bahia, mas que viria a se tornar um longevo presidente do clube a partir de 1979.
A atuação de Roberto Rebouças no legislativo municipal é considerada bem discreta. Não há grandes projetos assinados por ele, tampouco embates memoráveis na tribuna ou escândalos políticos protagonizados pelo zagueirão.
Em 21 de março de 1978, ele se aposentou dos gramados em um Ba-Vi amistoso marcado especialmente para sua despedida, arrancando lágrimas dos torcedores.
Em 1982, tentou se reeleger como vereador, mas foi derrotado nas urnas, encerrando a breve carreira política com apenas um mandato. Se como parlamentar não teve lá grande brilho, na zaga, ao menos, "nunca deixou passar nada".
Essa coluna é dedicada ao grande amigo Paulo Leandro, que teve o privilégio de entrevistar o valente (e silencioso) Roberto Rebouças.