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Fernanda Santana
Publicado em 7 de setembro de 2024 às 05:00
Em Muritiba, no recôncavo baiano, um vereador já teve que pintar às pressas a fachada da sua nova casa para não infringir a etiqueta política. Pintada de amarela, a residência poderia denunciá-lo como um “babonete”, o grupo político rival ao seu, que usa a cor do céu como símbolo. Os “jacus”, como ele, são adeptos do azul, e todo mundo sabe disso. >
A experiência política em cidades do interior — sobretudo as de pequeno e médio porte — é marcada por essa rivalidade entre dois grupos políticos. E o antagonismo vira uma marca cultural, refletido por apelidos inspirados em músicas, histórias e gozações. >
“Quanto menor o interior, mais forte é essa realidade”, explica o historiador Marcos Batista, que pesquisou, no mestrado pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), os rivais jacus e os beija-flor, de Santo Antônio de Jesus. >
Na pesquisa, Batista investigou também os possíveis motivos para isso acontecer. E não só em Santo Antônio. Os partidos, por si só, tiveram dificuldade de se firmar na experiência política local. “Até o fato de ter menos festividades [nessas cidades] impacta. A política surge como um evento, time de futebol.Vira cultura”.>
O "apadrinhamento", simbólico e literal (com água benta, na igreja), de nativos por políticos dá contornos de intimidade à disputa, o que fortalece o antagonismo. "Não só os apadrinhados ganham empregos e outras moedas de troca, como há crianças que realmente são batizadas por políticos, o que cria laço de lealdade, e se cria uma familiaridade", completa Batista.>
A industrialização e crescimento das cidades, no entanto, tende a enfraquecer os times políticos. "A dependência pode mudar", explica Batista, "o que não significa o fim desse antagonismo histórico".>
A história dos rivais políticos de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, é de dissidências e conchavos. Ela começa em 1962. O primeiro grupo a surgir no páreo, com um nome, é o beija-flor, formado por separatistas do extinto Partido Republicano, que reinava na cidade sob as rédeas de Antônio Fraga, prefeito da cidade nos anos 40 e 50. >
“Aos poucos, esse grupo foi ganhando força e uma música inspirou sua existência”, explica o historiador Marcos Batista, que estudou, no mestrado pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb), os conflitos políticos do município. A música era “Meu Beija-Flor”, composta por Onildo Almeida e eternizada pela cantora Marinês. De um novo racha interno surgem os rivais - os Jacus. “Diferentemente de outros lugares, onde o Jacu é usado para se referir ao perdedor, em Santo Antônio, não”, ressalta Batista. >
Mas, dessa vez, não é uma canção que inspira o apelido. Os dissidentes se reuníam em uma sobrado da família, onde existia uma espécie de pequeno zoológico, formado por vários bichos. Entre eles, estavam as aves jacu. “Daí que a população passou a dizer, quando tinham esses encontros: ‘lá vai a jacuzada’”, afirma o historiador.>
Em Santo Antônio, a insignificância das ideologias é revelada pela homogeneidade dos rivais: ambos são filiados a partidos de direita ou centro, e já estabeleceram alianças em diferentes momentos históricos. >
Em julho deste ano, por exemplo, o ex-prefeito Euvaldo Rosa (PSD), um Jacu, e outro ex-prefeito, Humberto Leite (PP), dos Beija-Flor, sacudiu as estruturas. Principalmente porque outro beija-flor, Genival Deolino (PSDB), tenta reeleição contra Euvaldo e um candidato da terceira via, Edvaldo "da recôncavo" (PMB). “Mas isso não muda em nada a rivalidade local, mesmo que algumas pessoas tenham ficado tristes”, acredita o pesquisador Marcos. >
Para o historiador, os rivais são como “os democratas e republicanos dos Estados Unidos”: “existem muitas diferenças internas nos próprios grupos”. >
Desde o início da República brasileira, em 1889, a política em Campo Formoso, no norte da Bahia, se desdobra em apelidos. Os pioneiros foram os grupos liderados por José Gonçalves, que vivia na Fazenda Piabas, e o Coronel Antônio Pereira Guimarães Filho, residente no núcleo urbano. >
“Aí os apoiadores de Dr. José viraram os ‘Piabas’, em referência à moradia dele, e o outro ‘papa-mel’, já que Antônio, como bom sertanejo, era chegado à alimentação de mel com farinha de mandioca”, explica o historiador José Carlos Martins, especializado nas tramas locais. >
O falecimento dos oponentes suspendeu o uso dos apelidos políticos, até uma certa brincadeira de “boca branca” e “boca preta” surgir. Nas eleições de 1974, concorreram à Prefeitura Rômulo Galvão de Carvalho e Luis Alberto Prisco Viana. >
No bigode do primeiro candidato, mais velho, despontavam os fios brancos. “Já Luís possuía um vasto bigode, bem preto. E em um determinado dia, um garimpeiro saiu com um pejorativo no bom sentido”, narra o historiador José. “São o boca preta e o boca branca”, brincou o catador de pedras preciosas.>
A partir daí, a cidade se dividiu entre os “boca preta” e “boca branca”, sem espaço para tons intermediários. O negócio era, e é, levado tão a sério que, antes de um comício de Prisco Viana, os homens foram avisados com antecedência para aparecerem bigodudos no evento. >
Aqueles que não tivessem pelo o suficiente que improvisassem com tinta preta ou pelos postiços. O inverso também aconteceu. Quem tinha bigode preto tratou de raspar. Os grisalhos tiveram entrada livre.>
“E parece que assim vai continuar por muitos e muitos anos. nisso se resume a política, não esquerda e direita”, projeta José. >
Hoje, quem comanda a cidade é o grupo dos ‘boca branca’, representado por Elmo Nascimento (irmão do deputado federal Elmar Nascimento), que tenta reeleição pela união brasil. A adversária dele é Denise Menezes, que também tem sobrenome e herança na política local: é esposa do deputado estadual Adolfo Menezes.>
Dizem que, em Muritiba, o centro é mais azul, e o amarelo colore mais os bairros das periferias, como o Paraguai e Buri. >
Os tons refletem o antagonismo político na cidade do Recôncavo baiano: todo mundo sabe que a cor do céu pertence aos babonetes, e a dos girassóis aos jacus. “Já teve casa aqui cuja fachada era amarela e teve que mudar para azul, senão iam achar que era casa de jacu”, conta uma moradora que prefere não ser identificada.>
Os apelidos dos adversários surgiram no início dos anos 2000, quando Epifânio Marques Sampaio, ex-prefeito, chegou ao poder conhecido por um nome inspirado em seu apelido de infância — Babão. “Os seguidores, então, viraram os babonetes”, explica a nativa anônima.>
Já os "jacus" passaram a ser chamados assim por uma brincadeira conhecida, inclusive em outros interiores baianos. “Geralmente, é chamado assim o lado que perde”, completa ela. Já o motivo da definição das cores pelos rivais não está bem claro, mas há um palpite.>
Os babonetes sempre foram vistos como um grupo “de elite econômica” local, o que indicaria sua inclinação à direita. Como o azul, historicamente, é escolhido pelos partidos dessa ala, veio a calhar para os babonetes.>
O amarelo dos jacus denota a oposição. “São um grupo mais relacionado ao povão, talvez à esquerda”, afirma a moradora. A briga mais acalorada do momento na política da cidade é, inclusive, sobre a posse das cores.>
Mãe Mara, uma das candidatas à Prefeitura, é jacu, mas usou o azul em um evento recente. Os babonetes, todos vestidos de azul e rodeados por balões dessa cor, reagiram na convenção do dia 4 de agosto: “Essa cor vai ser sempre herança nossa. O azul é nosso.”>
“É uma gincana, não há ideais e ideologias. Qual é a filosofia de tal partido? Eles não conhecem, e não interessa”, acredita a moradora entrevistada.>
A rivalidade, no entanto, nem sempre é tão ingênua assim. Em março do ano passado, por exemplo, uma sessão na Câmara Municipal terminou em uma confusão generalizada entre vereadores.>
No início dos anos 90, o cantor cearense Alcymar Monteiro emplacou o sucesso “Penera Gavião” [O cavalheiro pega a dama pela mão/É aí que a gente vê o bote do gavião]. Bem distante de onde o artista despontou, a canção serviu a outro propósito. Tocada à exaustão em festas e eventos políticos de Cícero Dantas, no Nordeste da Bahia, a música inspirou o surgimento de um grupo político. >
“Foi aí que o Gavião surgiu”, explica a conhecedora da história local Ruth Oliveira. “E o próprio Gavião simbolizou o que seria o outro lado…. o jacu”, acrescenta ela, que faz parte dessa ala. >
A escolha do nome do oponente era uma analogia pejorativa às características políticas desse grupo, segundo Ruth. As aves jacu são definidas pelo temperamento dócil, e os gaviões, que hoje estão no poder, queriam insinuar que os eleitores e políticos jacu, portanto, eram fracos em disputas. “O jacu não era de briga, de revanche, era mais pacato. Enquanto os gaviões partiam para cima”, perfila Ruth.>
O principal sobrenome por trás dessa disputa era a família Vieira, a mais tradicional da cidade, simbolizada pelos jacus. Antes dos jacus e gaviões, no entanto, os rivais já reivindicavam nomes próprios. >
No engatinhar da República, os conservadores ligados ao Barão de Jeremoabo e aos Dantas eram conhecidos como “Urubus”. Os apoiadores liberais dos outro grupo, ligado ao Padre Caetano e Coronel Salles, eram chamados de “Pebas”. Décadas depois, entre os anos 20 e 40, rivalizavam o Boca Preta - nome que não tinha nada a ver com bigode, mas a um cachorro de caça - e os Barriga d’água. >
O termômetro político de Mutuípe, no Vale do Jiquiriçá baiano, é a Praça Góes Calmon, no centro comercial da cidade. “No dia da eleição, quem ocupa a praça mais cedo sabe que ganhou a disputa”, conta o radialista Junício Júnior. Durante 60 anos, um grupo político, sem nome na época, reinou nessa arena pública. O “zoião” era o termo usado para definir qualquer candidato que estivesse, claro, de olho na Prefeitura. >
A vitória de um petista - que era o maior "zoião" das disputas - em 2000 pôs fim a uma dinastia liderada pela família Rocha. E iniciou um novo ciclo de rivalidade. O “zoião”, a partir daí, passou a ser chamado de “vermelho”, herança da cor do partido dos trabalhadores (PT), e os antigos mandatários da terra viraram os “azul”. >
O nome da praça central do município. No auge dessa briga, por pouco não foi modificado para homenagear os vencedores, o que não aconteceu. Hoje, o poder está nas mãos do "azul", após a temporada de 16 anos dos "vermelhos" na prefeitura. Alheia a essas oscilações, uma brincadeira persiste: “quem perde sempre é chamado de jacu, independentemente do lado", explica o radialista. >
Já quem ganha a disputa leva mamão para a praça Góes Calmon para comemorar a vitória. O ato é uma provocação aos jacu-gente, pois os jacu-bicho se alimentam dessa fruta. >