Da resenha à humilhação: As rotinas de quem trabalha como boca de urna no dia das eleições

Apesar de crime eleitoral, candidatos não renunciam a estratégia de contratar "boqueiros" para angariar votos

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  • Alan Pinheiro

Publicado em 6 de outubro de 2024 às 16:06

Nas proximidades dos locais de votação em Salvador, foi comum ver pessoas trabalhando com boca de urna para candidatos
Nas proximidades dos locais de votação em Salvador, foi comum ver pessoas trabalhando com boca de urna para candidatos Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Em dia de eleição, já é costume achar as ruas inundadas por santinhos e, em meio aos rostos dos candidatos que escondem o cinza do asfalto, incontáveis pessoas seguram panfletos, adesivos e outros adereços aos montes para trabalhar como boca de urna. Mesmo a prática sendo crime eleitoral, quem trabalhou para os candidatos à Câmara ou ao Palácio Thomé de Souza neste domingo (6) relatou rotinas que misturam a diversão com a necessidade de ganhar dinheiro.

Chegando ao Colégio Estadual Luiz Viana, em Brotas, os trabalhadores se espalham pela região para abarcar a maior área possível no perímetro. Na calçada em frente a uma loja de variedades, uma fila de boca de urna se forma com diferentes abordagens. Uns mais tímidos apenas estendem o santinho de seus candidatos, enquanto outros são mais verborrágicos e gritam pelas ruas tentando convencer quem passa ao lado. Em meio a esse bolo de gente, ainda tem aqueles que tomam a iniciativa de colar um adesivo no peito sem sequer pedir permissão.

Do lado do segundo maior colégio eleitoral de Salvador, uma mulher que não quis se identificar revelou chefiar uma equipe de 30 pessoas para um candidato a vereador na capital baiana. “O nosso intuito é colocar as pessoas mais próximas da central de votação. Ou seja, do colégio [Luiz Viana]. A gente coloca de três em três pessoas em pontos estratégicos para que elas possam conseguir alcançar mais eleitores”, explicou.

Já tendo concorrido para ser uma das 43 pessoas que ocupam o cargo Legislativo em Salvador, ela disse que R$ 50 são pagos aos trabalhadores para atuar na eleição, junto a um lanche e uma garrafa de água. A ex-candidata não recebe pelo dia, mas trabalha em troca do cargo de chefia. Perto da líder, um membro da equipe foi questionado e confirmou o valor acordado, mas se recusou a responder outras perguntas.

“A gente pega as pessoas mais próximas que a gente sabe que realmente possam ajudar de forma verdadeira e não para pegar os papéis e estarem desperdiçando, jogando tudo no lixo”, finalizou a ex-candidata.

Segundo o Glossário Eleitoral Brasileiro, a boca de urna é "a ação dos cabos eleitorais e demais ativistas, denominados 'boqueiros', junto aos eleitores que se dirigem à seção eleitoral, promovendo e pedindo votos para o seu candidato ou partido". O crime eleitoral está previsto no parágrafo 5º do artigo 39 da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições) e não está restrita às proximidades dos locais de votação, mas em qualquer lugar.

"Boqueiros" consultados pelo Correio revelaram receber entre R$ 50 a R$ 70 reais pelo serviço Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Necessidade de trabalhar

Apesar de reconhecer que está cometendo um crime, outra “boqueira” revelou que não se importa pela tipicidade da prática e pela necessidade de fazer dinheiro em meio a um descobrimento de quatro cistos nas mamas. A moradora da Paripe, que também não quis se identificar, disse que a situação médica a fez perder o emprego como esteticista, o que a fez trabalhar como “boqueira” para ajudar a pagar parte do tratamento. Ela definiu a rotina de quem faz boca de urna como “humilhante”.

Acompanhada de uma amiga, as duas receberam sacos plásticos com santinhos aos montes para distribuir nas ruas. A distribuição de pessoas acontece e sempre há um fiscal no perímetro para vigiar os “boqueiros”. Na equipe deste outro candidato, a jornada vai das 8h às 14h sem permissão para descansar ou comer. “Eles dizem para a gente que, se for comer, coma trabalhando. O medo da gente é de acharem que estamos fazendo algo de errado e não recebermos”, disse antes de descrever um homem em pé na porta do colégio que seria o responsável por vigiá-las.

“A minha avó de 72 anos também está aqui trabalhando e se recusa a sentar para descansar. A gente precisou implorar para que ela descansasse um pouco. Só trabalha em boca de urna quem não liga para se humilhar. A gente precisa estar aqui”, confessou.

Fiscais se misturam às multidões para vigiar quem faz boca de urna no dia das eleições
Fiscais se misturam às multidões para vigiar quem faz boca de urna no dia das eleições Crédito: Paula Fróes/CORREIO

A reportagem conversou com pessoas trabalhando como “boqueiros” nos arredores do Colégio Estadual Luiz Viana e do Kleber Pacheco, em Pernambués. Dentre os entrevistados, a faixa de preço recebido pelo serviço varia de R$50 a R$70 por pessoa. De uma equipe para outra, alguns recebiam auxílio para comprar comida e água, enquanto outros precisavam tirar tudo do próprio bolso. No Kleber Pacheco, uma mulher confessou trabalhar para três candidatos diferentes e disse esconder os santinhos da oposição para conseguir R$150 reais no dia.

Os relatos convergem na necessidade de juntar dinheiro para sobrevivência. No entanto, mesmo com essa motivação, foi comum perceber pessoas se divertindo em meio ao trabalho nas ruas. Foi dessa forma que uma cuidadora de idosos disse que estava fazendo dinheiro para o aniversário que vai acontecer nesta terça-feira (8). Ela também recusou ser identificada.

“Gosto do que eu faço porque é uma diversão. Dá para comprar alguma coisa em casa que falte. Dia oito é meu aniversário e ‘tô’ precisando fazer um bolinho para mim mesmo. Aí eu quero ‘ajuntar’ um dinheirinho para fazer meu bolo”, explicou entre risadas altas. No entorno, o som alto e copos de plástico cheios com cerveja eram comuns à paisagem.

Ela, que se define como ‘sincerona’, complementou dizendo que apoiar um candidato é irrelevante na hora de distribuir os santinhos. “O que ganhar vai fazer o mesmo que todo mundo faz, sentar na cadeira e mandar. Quando a gente vai procurar para pedir ajuda não vai achar. Esquecem da pessoa que deu sangue para trabalhar para eles”, finalizou.