A difícil escolha eleitoral de quem mora onde a notícia local não existe

Bahia tem 2º maior número de ‘deserto de notícias’, e moradores se viram para ter acesso a informações apuradas

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  • Fernanda Santana

Publicado em 5 de outubro de 2024 às 05:00

Se corre o boato de que o prefeito decretou uma lei polêmica, um vereador se exaltou durante sessão na Câmara ou a pesquisa eleitoral tiver cheiro de falcatrua, os moradores de Caculé, no sudoeste da Bahia, abrem o whatsapp para checar se receberam alguma informação a respeito. Se sim, é torcer para ser verdade antes de compartilhar — ou tentar apurar o fato in loco.

Na cidade, onde vivem 23 mil pessoas e a principal atividade econômica é a agricultura, não existem veículos jornalísticos locais: ela é um dos 175 municípios baianos chamados de “desertos de notícias”, onde o jornalismo passa apenas em canais televisivos de algum centro urbano ou sintonizado de uma emissora de rádio distante, segundo o Atlas da Notícia.

O projeto, ligado ao Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), mapeia veículos de jornalismo no Brasil e identifica as localidades onde o acesso a informações locais é escasso ou inexistente. As estatísticas atuais fazem da Bahia o segundo maior deserto noticioso do Brasil, onde existem 2.706 desertos.

Não é porque carece de noticiário local que uma população seja desinformada sobre a pauta nacional ou estadual. O problema não é tanto o que se passa longe, como na capital do estado, mas o que muitas vezes acontece ao lado.

Todas as manhãs, por exemplo, o empreendedor Thiago de Souza, 27 anos, zapeia por dois sites jornalísticos sediados em São Paulo para saber o que se passa no país. Ele sabe de fatos como os ataques a Israel e a pane técnica no avião em que estava o presidente Lula (PT). As notícias locais a uma semana das eleições municipais em Caculé, no entanto, chegavam a conta-gotas, a princípio com cara de fofoca, ou com serviços de votação, como que documentos levar para a urna.

O voto do próximo domingo (6), segundo o nativo, é sustentado por outras fontes. "Notícia em cidade pequena corre, mas é um pouco mais complexo. Ou você checa, perguntando na fonte ou indo ao local, ou não dá para confiar. Eu sei em quem vou votar porque vejo na rua o que deu e o que não deu certo, se falta ou não medicamento no posto de saúde", compartilha o jovem empresário. "E assim eu decido".

O supermercado do qual é proprietário é uma de suas fontes primárias de informação — além do onipresente aplicativo de mensagens. É lá que ele ouve o que têm a dizer os defensores e opositores do atual governo. "E ninguém sabe de fato quem está certo ou o que aconteceu", diz Thiago, com bom humor, antes de revelar que já até sofreu as consequências dos terrenos ainda mais férteis para notícias falsas que se estabelecem em desertos de notícia.

Em março, os grupos de WhatsApp da cidade esquentaram com a divulgação de uma suposta pesquisa eleitoral — depois comprovada fraudulenta. Ao receber o conteúdo, ele estranhou de cara os resultados e compartilhou com um amigo, com quem dividiu a desconfiança sobre a legalidade do levantamento.

O comerciante acabou processado pelo grupo político afetado pelo levantamento — com o qual, ironicamente, ele estava de acordo. O compartilhamento foi só uma provocação, mas Thiago foi acusado de divulgar notícia falsa. "Acabou que venci o processo", conta. Nenhum veículo jornalístico dedicou alguma linha para falar sobre o caso.

Como são mapeados os desertos de notícia?

O mapeamento dos desertos de notícia costuma acontecer anualmente. O mais recente é do ano passado, quando, pela 6ª vez, a equipe do Projor e voluntários realizaram uma busca ativa.

Em Salvador, a professora Ivanise Andrade, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), é uma das voluntárias do projeto, e seleciona alunos para realizarem o levantamento de dados com ela. Eles pesquisam — na internet e por ligações — cada uma das 417 cidades da Bahia.

No percurso, a principal dificuldade é esgotar ao máximo as possibilidades antes de enquadrar determinado lugar como um deserto ou não.

"Se não conseguimos contato de jeito nenhum, entra como deserto. Essa é uma "falha" que acontece em qualquer pesquisa", antecipa a jornalista Ivanise Andrade, doutora em Comunicação e Cultura pela Ufba e organizadora do livro Jornalismo Local na Bahia: presenças, ausências e novas práticas.

Quando consegue respostas, o grupo dela adota dois critérios para definir se aquele é um veículo jornalístico. “Um deles é produzir noticiário jornalístico, que passou por um processo de apuração, não toma partido, e tem uma neutralidade mínima. Outro critério é a periodicidade: esse veículo precisa ter uma publicação a cada 15 dias", explica.

Mas acontece de haver indicativos de que existe um veículo jornalístico local, como um programa de rádio ou um blog, sem que isso, na verdade, seja comprovado.

"O fenômeno de páginas ligadas a partido está muito presente em vários municípios. Possuir um veículo é uma formar de gerir suas próprias pautas e ganhar visibilidade, o que não significa que aquele portal é jornalístico", acrescenta.

Em Caculé, há os exemplos de duas páginas no Instagram com filiação partidária que não podem ser enquadradas como jornalística.

O próprio site das prefeituras — que publica o que interessa à gestão — pode ser tomado por uma fonte de informação, mas não de jornalismo. "Isso quer dizer que as pessoas podem estar informadas, mas não de informações locais. Nas conversas com as pessoas, perguntávamos o que isso afetava no dia a dia delas, e se queixavam, por exemplo, sobre o desconhecimento do que estava acontecendo na Câmara, se a obra da escola ia ser retomada ou não", destaca Ivanise.

O exemplo de uma obra inacabada cabe bem na realidade de Edenilson Silva, 25, morador de Boa Vista do Tupim, no Piemonte do Paraguaçu. Quando há atraso na entrega de serviços - como já ocorreu ao menos três vezes nos últimos cinco anos - resta esperar que algum conhecido tenha conexões na Prefeitura e saiba explicar o motivo ou que algum veículo jornalístico forasteiro paute o assunto.

A uma semana das eleições, o ritmo era parecido."Nas eleições, o que ficamos sabemos é o que se troca de informação através de grupos de mensagem. Acho que a falta de veículos beneficia eles, os políticos. A disputa política ‘tá’ forte. Aí no whatsapp só dá isso. É muita coisa”, conta Edenilson, que é dono de uma mercearia na cidade.

Cansado do excesso de mensagens, ele saiu dos grupos de mensagem. Agora, tem consumido apenas telejornais. "Assisti um pouco ontem uma reportagem sobre queimadas. E foi isso. Não tenho tido tempo para ver notícia".

Há até uma emissora de rádio na cidade, mas só toca música. A fonte de notícia jornalística mais próxima é a FM de Itaberaba, a 49 quilômetros de distância, que ainda não pautou as eleições em Boa Vista.

Assim como Thiago, de Caculé, Edenilson prefere ir checar quando recebe uma informação supseita. "Já fiz isso, várias vezes. Uma vez disseram que invadiram um terreno e falaram que as máquinas iam demolir as casas, bairro Nova Olinda. Aí peguei a máquina e fui. Mas o maquinário não passou", lembra.

Para ele, o voto é decidido por uma equação entre as informações que circulam na cidade (ainda que ele não tenha certeza se são todas verdade), o que observa nas ruas e o impacto que candidato A ou B possa ter, diretamente, na vida dele - e da família

Número de desertos de notícia tem diminuído na Bahia

"A falta de veículos locais vai ter um impacto direto na vida política e nas escolhas eleitorais", avalia o historiador Marcos Batista, que no mestrado pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) estudou a rivalidade política em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano.

Durante a pesquisa, ele precisou, ainda, analisar o cenário político em outros municípios de médio e pequeno porte, e a comunicação local.

Diante de uma cobertura noticiosa limitada ou inexistente, de acordo com Batista, são os próprios governos que pautam as discussões.

"A falta de embasamento sobre o noticiário local diminui a capacidade de fiscalizar o poder público e, assim, cobrar", explica o pesquisador.

A troca de informações - não necessariamente notícias - é feita como mexerico. E vence quem conseguir exercer ser mais convicente em um maior intervalo de tempo.

"Estamos falando de cidades onde o número de eleitores que eu chamo de 'vulneráveis', ou seja, que podem mudar de voto a qualquer momento a partir das pressões que receba, como alguma assistência, parece ser maior".

As redes sociais, sobretudo o facebook para moradores de zonas rurais e o whatsapp, são um prato cheio nessa busca pelo convencimento.

A equipe do Atlas de Notícia inclui a capilaridade e a diversidade desses conteúdos digitais entre os desafios anuais da pesquisa.

"A própria metodologia do atlas sofre modificações. No inicio, a definição do que era uma noção bem clássica, de tv, rádio, jornal. Agora, nem tanto. Então, nada impede que haja, por exemplo, uma lista de transmissão de whatsapp de fato jornalística ou uma página no Instagram com esse objetivo, iniciativas independentes que podem ser positivas", explica a professora Ivanise Andrade.

Foram as iniciativas digitais, inclusive, as que mais contribuíram, no Nordeste, para a queda de 6% na quantidade de desertos de notícias: 71 municípios nordestinos deixaram essa posição.

A maior redução aconteceu na Bahia (26 municípios). Uma das cidades que deixou de ser um "deserto" foi Quijingue, no Norte da Bahia.

No município, onde moram 27 mil pessoas, agora funcionam duas rádios - uma comunitária (que, no entanto, pausou a programação noticiosa no período de pré-eleições), e outra online.

"Nosso intuito é levar uma programação diversificada, principalmente de esporte e notícias, mostrando assuntos que interessem ao povo daqui. Nasci aqui e me criei aqui, e sei o que são esses assuntos", conta do diretor da rádio e locutor da Sertão Quijingue, Agnaldo Santana.

Agnaldo, da Sertão Quijingue
Agnaldo, da Sertão Quijingue Crédito: Reprodução/Youtube

A rádio online foi criada por ele em abril do ano passado, e funciona de forma adaptada em um dos cômodos da casa de Agnaldo. "Mas quero ter um estúdio próprio", conta.

Na véspera da eleição, Agnaldo terminava o roteiro da programação da tarde da última sexta-feira (4). Uma das pautas seria o comício partidário ocorrido na véspera, em um distrito da cidade.

"Os dois candidatos falam pouco de projetos, são mais ataques entre si. Precisamos mostrar o que interessa", afirma o locutor, "até para ajudar as pessoas a decidirem o que é melhor para elas e para a cidade".