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Thais Borges
Publicado em 3 de agosto de 2024 às 05:00
Joguinhos no celular, desenhos na televisão e streaming no tablet. Você provavelmente conhece alguma criança - talvez até um bebê - que passa boa parte do dia diante de uma tela. Em todo o mundo, pediatras já alertam há alguns anos para os riscos dessa exposição, especialmente entre os mais novos. Países como Finlândia, Dinamarca e França já publicaram documentos oficiais com propostas que incluem até proibição total de telas nos primeiros anos de vida.
Enquanto isso, o Brasil até hoje não tem uma orientação de órgãos oficiais de saúde sobre o tema. Isso deve mudar em outubro, quando será lançado o Guia para Uso Consciente de Telas por Crianças e Adolescentes. O documento está sendo preparado por um Grupo de Trabalho (GT) com integrantes sete ministérios e 19 representantes da sociedade civil, da academia e de entidades com atuação reconhecida na área.
"A gente vai tratar muito sobre os riscos, sobre o uso abusivo. Acredito que vamos detalhar quais são conteúdos impróprios. Do uso abusivo, também vai desdobrar para questões sobre exploração sexual e um debate sobre privacidade de crianças e adolescentes, publicidade", elenca o diretor do Departamento de Direitos na Rede e Educação Midiática da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), Fábio Meirelles, em entrevista exclusiva ao CORREIO.
De acordo com ele, o material deve avançar em discussões como o uso de telas no contexto escolar, desde a educação infantil até o ensino médio. O grupo tem discutido se há usos pedagógicos possíveis e que dispositivos podem ser fornecidos por escolas.
O governo decidiu entrar no assunto por entender que é uma atribuição do Executivo federal, segundo Meirelles. “A gente não pode se furtar a organizar essa discussão, mas também não podia fazer de forma atordoada. Tinha que fazer dentro do processo de discussão, de participação social, ouvindo os ministérios envolvidos. É um tema de política pública que o governo não pode abrir mão de construir esse debate com as famílias e sistemas de ensino”, acrescenta.
Consulta
O debate começou no ano passado, quando a Secom, através da diretoria comandada por ele, decidiu criar um grupo de trabalho sobre as telas. O primeiro passo foi abrir uma consulta pública. As contribuições foram recebidas por dois meses, entre outubro e janeiro deste ano. Ao todo, o grupo recebeu 602 respostas.
Em março deste ano, foi formado o GT. "O grupo de trabalho tem algumas atribuições, como acompanhar os resultados da consulta pública e propor o guia em si", diz Meirelles, citando a diversidade na composição do grupo.
Entre os Ministérios envolvidos, estão o da Educação, o da Saúde e o dos Direitos Humanos. Além dos órgãos oficiais, os representantes da sociedade civil incluem entidades como a Central Única das Favelas (Cufa), a SaferNet Brasil, o Instituto Palavra Aberta, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e pesquisadores de universidades como a de São Paulo (USP) e a Federal do Ceará (UFC).
O grupo tem se reunido de forma online quinzenalmente e já fez um encontro presencial em Brasília, em junho. Além disso, já fizeram reuniões com as principais plataformas envolvidas, a exemplo de Netflix, Google, Meta e TikTok, para tratar das estratégias dessas empresas com esse público.
As experiências internacionais também têm ajudado a inspirar o trabalho. Este ano, um grupo do governo visitou a Finlândia para conhecer as iniciativas no país, que é considerado um dos pioneiros na área. No site da Secom, há, inclusive, uma biblioteca com algumas das publicações de entidades internacionais sobre o tema. "A gente também foi conhecer a TV pública da Dinamarca, que tem um canal educativo em que também faz o debate sobre desinformação", conta o diretor.
O que vai ter
O texto final ainda não foi concluído, mas a expectativa de lançamento é já em outubro, por ser o Mês da Criança. Ainda assim, Meirelles adianta que o documento terá parâmetros e diretrizes para guiar diferentes públicos. "Vai ser baseado em evidências científicas. Não vai ser achismo. O guia é um documento de recomendação. Ele não determina nada, mas a gente vai ser bem pragmático e objetivo em responder às demandas dos pais", garante.
Ou seja: pais, educadores e outros tantos agentes envolvidos no desenvolvimento de crianças e adolescentes vão encontrar indicações sobre tempo de uso de telas e tipos de uso, de acordo com a própria avaliação parental e do tipo de atividade. "A gente terá cortes etários", adianta ele. "Mas também não é algo como: ‘a partir dessa idade pode tudo e a partir dessa idade não pode nada. A gente sempre vai tentar falar do tipo de uso, de quando pode ter smartphone próprio ou não".
Além do GT e da consulta pública, há também uma escuta qualificada com crianças e adolescentes em andamento. A pesquisa está sendo conduzida pelo Instituto Alana e deve ser finalizada este mês. "Não dava para fazer um guia sobre crianças e adolescentes sem ouvir crianças e adolescentes", pontua.
Os exemplos
Desde 2016, a SBP tem promovido essa discussão entre famílias e pediatras. Por isso, um documento publicado em 2019 com orientações por idade para o uso de telas é, até hoje, uma das páginas mais acessadas do site da entidade, segundo a médica pediatra Evelyn Eisenstein, que faz parte do Grupo de Trabalho sobre Saúde Digital da SBP e também integra o GT do governo federal.
"Existe todo esse esforço da SBP primeiro porque o mundo inteiro está regulando (o uso de telas). Segundo porque existem riscos mais frequentes quanto aos problemas do mundo digital", diz ela, citando questões de saúde que vão desde transtornos do sono, irritabilidade e isolamento até riscos de morte com desafios perigosos online, incentivados por alguns influenciadores. Há, ainda, transtornos conhecidos de visão e audição, além de problemas no desenvolvimento da fala e do processo de aprendizagem.
No documento de 2019, que deve servir como uma das bases para o guia federal, há indicações como evitar a exposição a crianças menores de dois anos até de forma passiva e limitar o tempo de telas para apenas uma hora por dia para crianças com idades entre 2 e 5 anos. Para todas as idades, inclusive adolescentes, a SBP recomenda que telas não sejam usadas durante as refeições e sejam desconectadas entre uma e duas horas antes de dormir. Esse documento deve ser atualizado em um novo manual a ser lançado este mês, no congresso da entidade.
"Somos muito assertivos com esses critérios etários. Nenhuma criança tem que ficar exposta a conteúdo de telas por tempo nenhum antes de dois anos porque prejudica a fala e a compreensão da fala. A criança não entende a diferença da Galinha Pintadinha e da galinha ciscando no quintal", explica a médica, citando a importância dos primeiros mil dias de vida para o desenvolvimento cerebral.
O guia não deve ser o fim da discussão. Pelo contrário: os planos, segundo Fábio Meirelles, da Secom, são para que ele se desdobre em outros documentos de orientação para grupos específicos. "O guia vem como uma novidade, apresentando a discussão e as questões sobre o uso de telas. Ele é um intermediário e, a partir dele, vamos tentar falar diretamente com familiares, educadores, profissionais do sistema de saúde e de justiça, por exemplo", completa.