Escolas públicas se aproximam das particulares na Redação, mas distância aumenta em Matemática

Resultado foi marcado pelo desempenho das instituições federais no Enem; elas ocupam todas as 15 posições do ranking de melhores públicas da Bahia

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  • Thais Borges

Publicado em 25 de agosto de 2024 às 05:00

Desempenho das escolas públicas foi puxado pelos bons resultados das escolas federais, como o IFBA
Desempenho das escolas públicas foi puxado pelos bons resultados das escolas federais, como o Ifba Crédito: Divulgação

No campus de Guanambi do Instituto Federal Baiano (IF Baiano), as aulas de redação seguem uma dinâmica própria: fazem parte da mesma disciplina que Língua Portuguesa e Literatura. "A gente acaba por mesclar as áreas de linguagens, inclusive a literatura, que contribui de maneira significativa para que o aluno forme uma capacidade crítica e repertórios que podem ser usados na redação", explica a professora Tatiane Malheiros, responsável pela disciplina.

Instituições como o IF Baiano estão diretamente ligadas a um resultado importante: a diminuição da distância entre as notas de redação de escolas públicas e de escolas particulares baianas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Entre 2018 e 2023, a diferença entre as médias das instituições saiu de 65% em 2018 para 35% no ano passado.

Os dados fazem parte de uma análise feita pelo SAS Educação, com base nos microdados do Inep (órgão que realiza o exame), com exclusividade para o CORREIO. A nota média da redação nas particulares era de 656 em 2018, contra 399 nas públicas. Já em 2023, a média foi de 788 nas privadas e 583 nas públicas.

As notas das escolas públicas são lideradas justamente pelas instituições federais de ensino. Todas as escolas que aparecem entre as 15 melhores públicas do estado são federais. O primeiro lugar é do Colégio Militar de Salvador (CMS), enquanto todas as que ficaram entre a 2ª e a 15ª posições são campi de institutos federais.

O Colégio Militar de Salvador (CMS) é o melhor público do estado
O Colégio Militar de Salvador (CMS) é o melhor público do estado Crédito: Divulgação

Entre essas, 12 são campi do Instituto Federal da Bahia (Ifba), incluindo o campus de Salvador e o de Irecê (segundo e terceiro colocados, respectivamente), e dois são campi do IF Baiano. Neste último, além de Guanambi, que ficou no quarto lugar, o campus de Teixeira de Freitas aparece na lista na 11ª posição.

Por outro lado, Matemática - que, após a Redação, é a área em que costuma ser possível atingir notas maiores -, passou pelo caminho oposto no ano passado. Em 2018, a distância entre públicas e privadas era de 22% - com média de 499 para as primeiras e 607 para as últimas. Já em 2023, as particulares passaram a 615 contra 491 das públicas. O percentual de diferença passou de 22% para 25% em seis anos.

Escolas públicas se aproximam das particulares na Redação, mas distância aumenta em Matemática
Escolas públicas se aproximam das particulares na Redação, mas distância aumenta em Matemática Crédito: Quintino Andrade

Comparecimento

Em 2023, alunos de 647 escolas públicas fizeram o Enem, enquanto estudantes de 298 escolas privadas compareceram à prova. Nos últimos seis anos, 431 públicas tiveram alunos fazendo o Enem durante todo o período analisado e 176 instituições privadas contaram com participantes. Assim, os números de colégios com dados para todos os seis anos representam 67% das escolas entre as públicas e 59% das privadas. Só recebem notas médias as escolas que têm pelo menos 10 estudantes prestando o exame.

Isso é importante porque, ao mesmo tempo, escolas privadas foram aumentando sua participação no Enem em 5%, enquanto a públicas registraram queda em algumas edições. A maior delas foi em 2023: no ano anterior, foram 796 instituições - assim, a redução foi de 19% em apenas um ano letivo.

"Tem um fenômeno que acontece em 2021 e continua em 2022 e 2023, que é o número alto de alunos que se inscrevem e não aparecem para a prova. Isso não acontece nas escolas particulares, porque o número de faltas vem numa constante", explica o diretor de ensino e inovações do SAS Plataforma de Educação, Ademar Celedônio, que é especialista em Enem e políticas públicas para educação.

"Seja por entendimento na família, seja porque esse aluno mais pobre e de escola pública precisa se manter. Muitos estudantes abandonam os estudos. O Brasil tem em torno de um milhão de alunos que simplesmente somem do ensino médio e muitos não vão fazer o Enem", acrescenta.

Na Bahia, em 2023, foram pouco mais de 323 mil inscritos, mas a abstenção chegou a 32% - quase um terço do total. Do total de inscritos, 240 mil conseguiram isenção da taxa de pagamento. "Houve um incentivo para que eles fossem fazer a prova, o que é um dado importante de empoderamento através da política pública", afirma.

Isso não tem se refletido, contudo, nas inscrições. "Consequentemente, os que vão devem estar se sentindo mais preparados e essa é uma das razões para as notas subirem", diz ele, referindo-se ao fato de que as escolas públicas cresceram 3,3% no desempenho a mais do que as particulares, durante a série histórica na Bahia.

A ponderação de Celedônio é porque, além da queda na participação, os resultados de outras áreas do conhecimento, como Ciências da Natureza e Ciências Humanas, mantiveram uma distância constante. "A subida foi de maneira inorgânica, não orgânica. A não ser na redação, que houve um aumento grande, as outras quatro áreas são muito parecidas", pontua.

Essa afirmação encontra eco em outros indicadores, como o próprio Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Divulgado este mês pelo Ministério da Educação, a nota de 3,7 em 2023, no ensino médio, ficou abaixo da meta de 4,5. O resultado é calculado por meio de um cruzamento entre o rendimento escolar (aprovação e evasão) e as notas de Português e Matemática no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb).

Textual

Para alguns estudantes, a Redação é a prova mais temida. Por outro lado, por sua própria estrutura, também é a área em que os alunos podem conseguir as maiores notas. No exame, as notas são definidas pela chamada Teoria de Resposta ao Item (TRI).

Por essa fórmula, entende-se que é mais coerente o aluno que acertou mais questões fáceis e errou difíceis do que aquele que acertou mais itens difíceis e errou os fáceis. O entendimento é de que o segundo provavelmente chutou as respostas. E, assim, acertar questões fáceis "vale mais" na nota no Enem - e quem define o que é mais fácil e mais difícil são os próprios estudantes, a partir do percentual de acertos de cada questão.

"A redação não tem isso. Ela tem cinco competências que vão de 0 a 200 e que, somadas, podem chegar a 1000. O que a gente percebeu, nos últimos anos, é que além da redução dos alunos que vão fazer a prova, existe um modelo do Inep que ajustou bastante a forma de correção dentro das planilhas", diz Celedônio, do SAS.

Hoje, uma redação do Enem é corrigida por dois professores dentro desse critério. Se houver uma discrepância grande entre as notas dos dois, o texto é encaminhado a um terceiro corretor. Se a distância continuar, a redação é corrigida por uma banca. "Isso faz com que uma prova que é mais subjetiva passe a ser mais coerente. Isso dá um pouco mais de equidade, faz com que haja mais justiça e as notas sobem".

Além disso, ele aponta que outros aspectos podem contribuir para as melhores notas. Um deles é, surpreendentemente para alguns, o uso de redes sociais. "Tem muitos professores influencers no Instagram e no TikTok que ensinam um modelo (para a redação), que é igual desde 2009. Há uma popularização do modelo, ao mesmo tempo em que esses professores ensinam didáticas muito interessantes e atreladas a esse jovem de hoje".

Um em cada quatro alunos nas escolas particulares tira uma nota acima de 900 no Enem. Na rede pública, a mesma nota acontece para um a cada 14 estudantes. "É como se o 900 tivesse virado uma nota básica para ingressar no ensino superior", diz Celedônio. Em termos de comparação, o Colégio Bernoulli, que foi o primeiro colocado na Bahia, teve média de 893 na redação.

Áreas

O desempenho em Matemática no estado chama atenção por ter sido a única área em que a distância entre as notas de escolas públicas e particulares cresceu. Ainda que não dê para cravar o que aconteceu, uma das possíveis justificativas para isso é de que a prova foi considerada um pouco mais fácil do que em outros anos. Assim, as escolas particulares deram um salto na nota - saíram de 591 para 615 de um ano para o outro.

"Nas habilidades mais básicas, que são as mais fáceis dentro da TRI, os alunos baianos de escolas particulares ganharam pontos melhores do que os de escolas públicas pela coerência pedagógica. Quem acerta as difíceis e não acerta as fáceis tem uma punição pelo acerto".

Isso aconteceu também em Linguagens, em outros anos, e pode estar por trás de uma queda no desempenho tanto de públicas quanto particulares em 2021 - também um dos anos mais mortais e restritos da pandemia da covid-19.

Já as outras áreas tiveram desempenho semelhante. O professor do SAS destaca, contudo, os maus resultados de Ciências da Natureza para alunos de qualquer tipo de escola. "Essa é uma área em que o Brasil é capenga. São três disciplinas e o Brasil todo tem um desempenho muito baixo na disciplina de Física. Não passa de 23% do que se espera em Física", pontua.

Na maior parte das edições, Ciências da Natureza, de fato, é a área com menor distância entre escolas públicas e privadas. A discrepância chegou a ser de apenas 12% em 2022, mas foi para 14,8% no ano passado. "Tem várias hipóteses para esses números, como o ensino de matemática, a abstração, mas são números de aprendizagem muito medíocres no geral".

Colégio Militar de Salvador (CMS)
Colégio Militar de Salvador (CMS) Crédito: Divulgação

Federais

Os pontos de excelência são puxados pelas instituições federais. O primeiro lugar, o CMS, tem bons desempenhos históricos no Enem e em vestibulares. Hoje, a instituição tem 687 alunos, entre filhos de militares que foram transferidos para Salvador, estudantes aprovados no concurso do colégio e algumas vagas reservadas para estudantes da rede estadual.

O comandante do CMS, coronel Marcos Oliveira, aponta que um dos motivos é o estímulo para que os estudantes participem de olimpíadas de conhecimento. Esse formato de competição nacional, que se popularizou com a Matemática, hoje acontece também com as diferentes áreas do conhecimento.

"Outra coisa que a gente acredita que dá um aporte grande não só no Enem mas na rotina acadêmica é a capacitação dos professores. Nós constantemente estimulamos nossos professores a buscar capacitação não só nos métodos pedagógicos, mas no uso de ferramentas disponíveis para melhorar e estimular os alunos".

Para a redação, ele reflete sobre o investimento feito em programas de leitura e interpretação de texto, com estímulo à leitura. "Destacaria também a gestão disciplinar, que é um grande aporte na concentração do aluno em sala. A gente acredita que o fato de o aluno estar acostumado a um sistema de muita disciplina aumenta a eficácia na transmissão do conhecimento".

Já o pró-reitor de ensino do Ifba, Jancarlos Lapa, considera que os resultados dos institutos federais são consequência de uma política que, atualmente, representa a melhor oferta de ensino na educação básica brasileira. "Os dados da Bahia se repetem em outros estados e é um ponto fora da curva. Muitas vezes, as pessoas não querem colocar os filhos na escola pública, mas, no Ifba é o contrário", conta.

Um dos aspectos da política dos institutos é a capilaridade. Hoje, o Ifba tem 24 campi espalhados no estado com 31 mil alunos. Desse total, 70% dos estudantes são do ensino médio. Outros quatro campi devem ser inaugurados nos próximos dois anos - em Macaúbas, Poções, Itaúna e mais um Salvador, no bairro de Cajazeiras. "Além disso, é uma oferta verticalizada, que vai da educação básica ao doutorado. Isso nos permite ter doutores dando aula no ensino médio".

Diretor-geral do campus do Ifba em Irecê, o professor Robério Batista afirma que recebeu os resultados de desempenho do Enem com entusiasmo e ‘pé no chão’. Na região territorial de Irecê, que compreende 21 municípios, o campus foi o melhor entre as públicas e segundo melhor entre todas as escolas.

IFBA Campus Irecê
Ifba Campus Irecê Crédito: Divulgação

"Um projeto de destaque nosso é o acolhimento, em que a gente recebe os estudantes e faz um acompanhamento com eles. Há um tempo, isso era chamado de nivelamento, mas a gente entende que pessoas não se nivelam. A ideia é reparar fragilidades que esses estudantes trazem do ensino fundamental".

Segundo ele, muitos dos jovens vêm de condições de vulnerabilidade socioeconômica. "Nos deixa muito orgulhosos ver o estudante do Ifba se aproximar de resultados de escolas privadas, que conseguem ter mais tempo, não têm outras preocupações no processo de ensino e aprendizagem, como alimentação, a condição dos pais e do entorno, questões de criminalidade. Tudo isso o estudante de escola privada se preocupa menos", pondera.

Em Irecê, o Ifba também tem um projeto de extensão chamado Pré-Enem, uma revisão aberta a toda a comunidade da região. "Com relação à redação, é um dos pontos que os institutos se desenvolveram muito. Nossos professores já trabalham a construção de texto não só em português, mas em todas as disciplinas". No campus, também há uma ação de internacionalização, em que alunos participam de simulados internacionais. No ano passado, uma das equipes foi aprovada para participar da simulação da Organização das Nações Unidas (ONU) na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

"Nossa alegria é saber que a gente proporciona a esses estudantes uma melhor estrutura de vida. O desempenho do Enem é só uma ação para que eles possam ingressar no ensino superior, mudar sua realidade e de seu entorno e motivar outras pessoas".

Integral

Já o IF Baiano, atualmente, conta com 14 campi no estado. A maioria dos alunos estuda em turno integral, como lembra a pró-reitora de ensino da instituição, Kátia Vilela. "Nossos alunos não apenas estudam, mas vivenciam esse ambiente acadêmico que promove aprendizado contínuo. Eles podem ter dedicação maior aos seus estudos, tirar dúvidas com os professores e ter uma dedicação maior".

IF Baiano campus Guanambi
IF Baiano campus Guanambi Crédito: Divulgação

Como escola de nível médio técnico-profissionalizante, ela acredita que o modelo do If Baiano prepara os estudantes não apenas para o Enem, mas para os desafios na carreira. "É muito difícil a educação pública no Brasil. A gente vive com cortes, com bloqueios, e mesmo assim a comunidade está empenhada em garantir aos estudantes a melhor formação".

Até o próximo ano, quatro novos campi devem ser abertos em Santo Estevão, Ruy Barbosa, Ribeira do Pombal e Remanso. O processo seletivo conta com políticas afirmativas de reserva de vagas e os alunos têm acesso a modalidades de assistência estudantil.

No campus de Guanambi, 75% das vagas são reservadas a candidatos vindos de escola pública e com menor renda, de acordo com o diretor da unidade, Carlito Barros. "Outro ponto importante é a educação integrada. Quando você pega a educação pública e abre espaço para a prática profissional, faz a relação entre o conhecimento prático e teórico de forma mais significativa para o aluno".

A participação dos alunos no Enem costuma ser alta, porque muitos já buscam o instituto pensando em ingressar no ensino superior. "Tem também o fator da verticalização do ensino. Hoje, a gente trabalha com ensino, pesquisa e extensão. O contato dos alunos com a iniciação científica motiva muito. Temos, agora mesmo, um grupo que vai apresentar um trabalho sobre drones na Inglaterra. Isso se torna uma vitrine para eles".

Ainda assim, para Ademar Celedônio, do SAS Educação, o fato de poucas escolas terem o desempenho das instituições federais é negativo. "É ruim não ter, por exemplo, nenhuma escola comum, do modelo tradicional, daquelas que tem perto da sua casa, entre as 15 melhores públicas da Bahia".

Ele pondera que, nas instituições federais, já há uma seleção prévia, que costuma ser por meio de uma prova. "Esse modelo dos IFs é natural, porque não tem vaga para todo mundo. Os alunos são atraídos por uma política pública fantástica, mas não é a escola pública geral para todos os alunos que passou por uma modificação", acrescenta.

Qualificação dos professores influencia desempenho

Uma das razões apontadas para o bom desempenho das escolas públicas federais em provas como a do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é a qualificação docente. De acordo com um estudo conduzido pelo pesquisador José Roberto de Carvalho Júnior, doutor em Administração, cerca de 90% dos docentes dos institutos federais têm pelo menos um mestrado. Um terço dos professores também têm doutorado.

Para Carvalho Júnior, isso se relaciona com o investimento do governo federal nessas instituições, que costuma ser maior do que o investimento feito por estados e municípios na estrutura.

“São prédios novos e salas de aulas modernas que favorecem o ambiente de ensino. Esse é um resultado que não é apenas da Bahia. Isso acontece a nível de Brasil, porque os IFs tendem a ter destaque no Enem e sempre tiveram esse papel diferenciado na educação”, diz ele, que é servidor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).

Os professores são concursados e têm plano de carreira equiparado ao dos docentes de universidades federais. “Essa alta escolaridade sinaliza que são professores preocupados com a formação e a busca por conhecimento naturalmente se reflete em um bom desempenho dos alunos”.

Professora do IF Baiano campus Guanambi, Tatiane Malheiros está no grupo dos doutores - no caso dela, doutorado em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). “Os institutos têm uma política de formação continuada do docente, então é um incentivo. Por mais que estejamos em sala de aula, procuramos aliar sempre o ensino à pesquisa e à extensão”, explica.

O processo seletivo para ingressar numa escola federal depende de cada instituição. No caso do Colégio Militar de Salvador, as vagas se dividem entre as de filhos de militares transferidos e concurso para ampla concorrência. As inscrições para o concurso para estudar em 2025 foram encerradas no mês passado e as provas estão marcadas para outubro. Há, ainda, vagas disponibilizadas pelo estado, mas o processo seletivo ocorre por intermédio da Secretaria da Educação da Bahia (SEC).

No Ifba, o edital deve ser lançado no próximo mês e a previsão é de receber inscrições até outubro. As provas para os alunos do ensino médio devem acontecer em novembro. As provas são de Ciências Humanas, Linguagens, Ciências da Natureza e Matemática.

Já no IF Baiano, a seleção é feita por meio de análise de histórico escolar. São analisadas as médias dos componentes curriculares de Língua Portuguesa, Ciências, História, Geografia e Matemática do 8º ano do Ensino Fundamental II.