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Georgina Maynart
Publicado em 14 de abril de 2019 às 10:30
- Atualizado há 2 anos
Faça chuva ou faça sol, subir a serra é uma tradição para milhares de pessoas que percorrem escadarias e longas trilhas na zona rural da Bahia para conhecer capelinhas e santuários isolados. São roteiros mantidos por agricultores que pedem boas safras, devotos em busca de proteção, ou turistas atrás de cenários deslumbrantes. Durante a Semana Santa, esta peregrinação ajuda a manter histórias de fé e devoção em cantinhos remotos da Bahia.
Diante da trilha íngreme, estreita e cheia de pedras, o peregrino nem pensa em recuar. Avança determinado. Sobe o monte sem olhar para trás. Cerca de quinhentos metros de altura separam a base do Monte do Jacaré, na zona rural do município de Várzea da Roça, da pequena capela construída no topo do rochedo. É lá que se quer chegar.
Mas é preciso vencer o cansaço e o ar rarefeito que se intensifica com a altitude. A baixa umidade não deixa o visitante esquecer que esta é uma das regiões mais secas da Bahia. No caminho, pés de cansanção, umburanas de cheiro, mandacarus, juazeiros, angélicas cheirosas, angicos, macambiras e tamburis exibem a exuberância da caatinga, revelando detalhes do único bioma exclusivamente brasileiro.
É este cenário que centenas de pessoas encontram nesta parte do centro norte da Bahia. Durante a Semana Santa os visitantes chegam de vários lugares. Sobem o monte a pé, numa tradição que já dura 67 anos.
“A sensação é de liberdade. A gente se sente mais próximo de Deus e do centro do universo. É uma troca de energia com a natureza, um momento de reflexão. Renova tudo, até o ar dos pulmões. É inexplicável”, diz Valdir Rios, engenheiro ambiental e radialista, que já fez o percurso várias vezes, e esta semana vai refazer a rota com um grupo de dez pessoas. Seu Roldão é agricultor e "guardião" da Capela de São Sebastião em Várzea da Roça. (Foto: Mariza Almeida) A devoção começou em 1951, quando o agricultor Sebastião Felipe de Almeida decidiu construir a capela em cima do monte mais alto da área. Religioso, ele queria um lugar mais perto da fazenda para cultuar as crenças e pedir proteção. Na época a igreja mais próxima ficava a cerca de 30 quilômetros. Para realizar o sonho, ele e os ajudantes subiram e desceram andando várias vezes o monte, levando o material de construção no lombo do burro e nas mãos.
A capela ganhou o nome do santo protetor, São Sebastião. No início o lugar era frequentado apenas pela família. Com o passar do tempo a capela foi atraindo mais gente até o monte isolado, apesar do lugar ficar a 12 quilômetros do povoado mais próximo. Depois da morte do agricultor a capela ficou aos cuidados do filho Jonas Euridino, que em seguida passou a missão para o neto Reinaldo Pacheco de Almeida, conhecido como Roldão, o atual guardião do lugar.
“A gente sobe, olha a paisagem e se sente feliz. Dá vontade de não descer mais do morro. Antigamente meu avô trazia a família para passar a noite de domingo. Sem energia elétrica, ascendia a fogueira do lado de fora para aquecer, e todos ficavam rezando dentro da capela. Todo mundo tinha que beijar o santo para vivenciar a tradição”, conta o agricultor.
Roldão é apicultor e crias aves, ovinos e bois na fazenda. Nos últimos dois anos ele aprendeu a usar as redes sociais, Instagram e Facebook, para divulgar o local. Costuma gravar vídeos para contar as lendas do lugar e renovar o convite para os visitantes. Uma estratégia que vem funcionando. Atualmente tem gente que chega a acampar no local durante os feriados. Do alto é possível avistar três cidades vizinhas.“Às vezes fica parecendo um formigueiro. É semente de Deus que não acaba mais, de menininha a gente caducando. E cada um tem sua expressão. Uns vem só para rezar o terço em vigília, outros só para curtir a paisagem. Esperamos mais de 500 pessoas esta semana, e quem quiser pode vir que nós estamos esperando de braços abertos”, diz Seu Roldão, hoje com 64 anos. Para ter acesso ao topo do Monte do Jacaré é preciso andar sobre pedras e atravessar a caatinga. (Foto: Mariza Almeida.) Os dias mais movimentados são quarta, quinta e a Sexta-feira da Paixão. Os outros moradores, que vivem em povoados perto do monte, aproveitam para vender alimentos e água mineral. A capelinha chegou a sofrer um incêndio em 2004, mas o templo foi reconstruído e a família acredita que o lugar pode auxiliar no turismo ecológico na região.
“A ideia é preservar. Aqui existe uma reserva de caatinga que precisa ser valorizada como patrimônio ambiental, e uma caverna chamada Toca da Onça, que deve ser protegida. Por isso o acesso de moto está proibido, e nós recomendamos a todos que recolham o próprio lixo e leve de volta quando for embora”, afirma a técnica em planejamento industrial, Mariza Almeida, bisneta do construtor da capela.
No mesmo município outra serra muito frequentada é o Morro de São Roque, conhecido como Morrinhos. Capelinha de São Sebastião em Várzea da Roça deve receber centenas de visitantes nesta Semana Santa. (Foto: Mariza Almeida) Subindo ao céus
A cidade de Piatã já é a mais alta do Nordeste brasileiro, está a 1.268 metros de altitude. Mas tem gente que faz questão de alcançar alturas ainda mais elevadas. Na Semana Santa, peregrinos e visitantes vão até a região não apenas para experimentar os famosos cafés especiais produzidos no município, mas também para subir a Serra da Santana, que chega a alcança mais de 1.500 metros de altitude. A intenção dos peregrinos é alcançar a Capelinha de Senhor do Bonfim, que fica no meio da serra, mantendo uma tradição que já dura 20 anos. A capela de Senhor do Bonfim foi erguida no meio da Serra da Santana em Piatã. Não há dados oficiais sobre a data da construção. (Foto: Paulo Henrique de Oliveira) O percurso começa ainda dentro da cidade, em frente à Igreja do Senhor Bom Jesus, construída no século XVIII. De lá os devotos seguem andando, em oração, até o pé da Serra, onde começa a encenação das estações da Via Sacra, representando os passos da morte de Cristo. O caminho de pedras se estende por um quilômetro morro acima.
“As 14 estações são marcadas com cruzes de madeira, onde nós fazemos paradas para contemplar cada estação, além de pedir proteção para a cidade e para as pessoas”, conta padre Gilberto Anjos, pároco da igreja matriz. Trilha até capela é feita a pé na Serra da Santana em Piatã. Serviços de apoio são montados na Semana Santa para receber peregrinos. (Foto: Paulo Henrique de Oliveira) A caminhada dura mais de uma hora.
“Eu sinto um espírito de paz, uma harmonia, pedindo também pelas pessoas que não podem subir mais. Cada ano é uma emoção nova”, afirma a professora Maricélia Trindade, que sobe a serra na Via Sacra há duas décadas.
Muita gente vai pagar penitências, fazer orações, agradecer ou apenas apreciar o cenário da região. Tem aventureiros que vão ainda mais longe, prosseguem além da capelinha. Completam o percurso até o pico do morro para acampar, passar a noite de quinta-feira, e ver o sol nascer na Sexta-feira da paixão. Na base da serra, a temperatura mínima nesta época é de 15 graus, mas a sensação térmica no pico pode chegar a 5 graus.
A Semana Santa mobiliza toda a região, dos restaurantes aos hotéis-fazenda e as cinco pequenas pousadas da cidade. Um movimento importante para a economia do município que tem cerca de nove mil habitantes e chega a receber mais de mil visitantes durante o feriado.
“Nós encaramos como período de alta estação. Tem um grande fluxo de pessoas que se hospedam em casas de parentes e amigos, gente que procura casa para alugar, e guias que já ficam de sobreaviso. Outros sobem a serra e depois aproveitam para conhecer os outros 12 roteiros turísticos que incluem cachoeiras e pinturas rupestres”, afirma Raimundo Mazzei, um dos diretores da Secretaria Municipal de Turismo e Meio Ambiente.
Para atender os peregrinos e reforçar a segurança, uma ambulância da prefeitura fica de plantão na entrada da trilha, e três postos da brigada de incêndio e salvamento funcionam ao longo do percurso. Do alto da capela de Senhor do Bonfim é possível ver toda a cidade de Piatã, famosa pela produção de cafés especiais. (Foto: Paulo Henrique de Oliveira) Outras peregrinações
*Em Monte Santo, no Nordeste da Bahia, a 350 km de Salvador, a tradição de subir o Monte do Santuário da Santa Cruz é mantida o ano todo. Na Semana Santa o fluxo de visitante chega a ultrapassar mais de 50 mil pessoas. São peregrinos que sobem 2,5 km, andando, para acompanhar as celebrações da sexta-feira santa, dia de maior movimento. No caminho, 23 cruzeiros marcam o trajeto da romaria, que começou em 1775 com o frei capuchinho Apolônio de Toddi. Quem vai a região também aproveita para conhecer de perto o cenário onde ocorreu a Guerra de Canudos, o Museu do Sertão e uma réplica do meteorito de Bendegó, encontrado em 1784 às margens do rio.
*Em Ituaçu, a 500 km de Salvador, na Serra Geral, é a Gruta da Mangabeira, que se tornou palco de missas e procissões há mais de 100 anos. A gruta tem um percurso de 3,2 quilômetros de extensão e a peregrinação ocorre durante o ano todo.
*Em Mairi, a 300 km de Salvador, peregrinos sobem as escadarias da Serra do Monte Alegre para chegar a Capela no topo da serra. A peregrinação acontece ao longo do ano, mas se intensifica na Semana Santa.
*Em Bom Jesus da Lapa, a 790 Km de Salvador, a romaria ao Senhor Bom Jesus é uma das maiores do Brasil e mais antigas, existe há mais de 300 anos. O Santuário fica numa gruta localizada dentro de uma serra de 90 metros de altura. A peregrinação ocorre o ano todo, mas o ponto alto da devoção é no mês de agosto.
Fotógrafo baiano registra manifestações religiosas e populares da América do Sul
A bordo de uma moto, o fotógrafo baiano Marcos Nascimento tem trilhando um longo caminho para concretizar uma ideia: registrar as principais manifestações populares, sejam elas festivas ou religiosas, de todos os estados do Brasil e dos países da América do Sul. O projeto começou há 2 anos, depois que ele decidiu unir duas paixões, a fotografia e o motociclismo. Até agora Marcos cruzou mais de 80 mil quilômetros, visitou 16 estados, passou por 3 países abaixo da Linha do Equador e acumulou mais de cem mil arquivos de imagens. Amor pela fotografia e pelo motociclismo levou o fotógrafo Marcos Nascimento a traçar roteiro pela América do Sul. (Foto:acervo pessoal) Nesta espécie de "peregrinação" de norte a sul do Brasil, o santo-amarense já registrou algumas das mais tradicionais festas mantidas no país. Enfrentou dois dias de subida pelo rio Amazonas para ver de perto a Festa de Parintins, se misturou a multidão para clicar detalhes do Círio de Nazaré, no Pará, acompanhou várias vezes a Festa do Bonfim, viu de perto a Paixão de Cristo em Pernambuco, e foi até o Santuário de Aparecida em São Paulo para registrar as manifestações de fé dos devotos da Padroeira do Brasil. No futuro, todo o material vai ser publicado em livro e exibido em exposições.“Eu gosto de ver o encontro do homem com Deus, independente de qual religião seja. É algo ímpar poder registrar e contemplar depois através da fotografia. Ao perceber que muitas festas e tradições religiosas sucumbiram ao longo dos anos, deixando de ser realizadas, nasceu o desejo de fotografar o que ainda existe”, explica.Às vésperas da Semana Santa, preparando as malas para mais uma excursão fotográfica pelas Guianas e pelo Suriname, onde vai percorrer mais de 13 mil quilômetros, ele aceitou o convite do CORREIO para mostrar um pouco do que já viu na América Latina sobre fé e devoção. (Foto: Marcos Nascimento) Belém (PA), Círio de Nazaré: “Este foi um dos poucos lugares com grandes aglomerações onde não encontrei o sagrado andando junto com o profano. Para acompanhar o Círio de Nazaré as pessoas enfrentam um calor de mais de 40 graus, umidade, mas a gente não vê uma pessoa ingerindo bebida alcoólica. E se por ventura tiver algum bar aberto, quando a procissão se aproxima, as portas são cerradas”. (Foto: Marcos Nascimento) Fé, penitência e calos. Círio de Nazaré. (Foto: Marcos Nascimento) Belém (PA), Cirio de Nazaré: “No meio da multidão de mais de 2 milhões de pessoas, o que impressiona é a determinação de quem chega cedo para tentar segurar na berlinda que sustenta a corda, e acompanhar a procissão por vários quilômetros, durante várias horas, com fé e respeito ao próximo. Quem estiver perto da corda vai descalço para não machucar quem estiver ao lado. E a água não é vendida, é dada. As pessoas cuidam umas das outras”. (Foto: Mascos Nascimento) Aparecida do Norte (SP), Devoção a Nossa Senhora Aparecida: “Encontrei um rapaz que foi pagar uma promessa que fez para a mãe com câncer. Registrei a subida dele na longa ponte que liga a antiga igreja ao novo Santuário de Aparecida. E ele logo disse que o difícil era o começo, depois as dores somem. O que chama a atenção é que muitas vezes os outros visitantes olham espantados ao ver de perto estes momentos de fé. E o peregrino segue solitário, muitas vezes sem contar com o acalanto das outras pessoas que passam apressadas. Mas a fé dá esta disposição, reforça a garra. (Foto: Marcos Nascimento) Milagres (BA), Devoção a Nossa Senhora dos Milagres: “A serra fica poucos quilômetros acima da cidade, numa área com no máximo 30 casas. Cheguei no dia da Missa do Vaqueiro. É uma tradição popular mesmo. Mantida pelo povo sertanejo sofrido do Nordeste. O povo da roça, do campo, das pequenas comunidades rurais”. (Foto: Marcos Nascimento) (Foto: Marcos Nascimento) Juazeiro do Norte (CE), Devoção a Padre Cicero: “A devoção ao Padre Cícero é impressionante, já que ele oficialmente não é santo. Mas para o povo é. As pessoas enfrentam uma fila imensa para subir até a estátua. Elas tem como tradição dar três voltas ao redor da imagem e passar por baixo da bengala, que ocupa uma espaço muito estreito. Lá também, assim como no Bonfim, usam fitinhas e velas. Encontrei muitos romeiros baianos por lá”. (Foto: Marcos Nascimento) Juazeiro do Norte (CE), Devoção a Nossa Senhora das Candeias: “Na festa de Nossa Senhora das Candeias as luzes da cidade se apagam na hora da procissão. Mesmo sem luz é uma festa tranquila, a gente sente o ambiente familiar, sem confusão, as pessoas andando pacificamente, cantando louvores e orações. Não precisa nem da presença de policiais. As pessoas se respeitam e a gente sente a paz no meio do povo” (Foto: Marcos Nascimento) Barbalha (CE), Festa do Pau da Bandeira: “A festa começa na zona rural por volta das 5 da manhã e só termina as 6 da tarde na cidade, depois que eles descem uma serra de mais de 10 quilômetros, segurando um pau de cinco metros de comprimento. Todos se protegem para que tudo corra bem até a chegada em frente à igreja, onde depositam o pau, que fica lá por um ano. A gente percebe o sacrifício dos carregadores oficiais. Muitas vezes fica até difícil compreender. Por isso dizem que fé não se explica, se vive” (Foto: Marcos Nascimento)