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Diário da Série B: Que a força esteja com Potó

Gabriel Galo conta o que viu do primeiro triunfo do Vitória na competição

  • Foto do(a) author(a) Gabriel Galo
  • Gabriel Galo

Publicado em 5 de maio de 2019 às 18:11

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Mauro Akin Nassor/CORREIO

Em partida com cara de despedida do Barradão, a virada foi uma espécie de redenção. Placar final: Vitória 2×1 Vila Nova-GO.

***

Salvador, 4 de maio de 2019

(Rodada 2 de 38)

O que será do Barradão?

A semana começou misturando sentimentos e uma dúvida principal. O anúncio da pretensão de transferir os mandos de campo do Vitória para a Arena Fonte Nova não era exatamente inesperado. Foi, inclusive, promessa de campanha de PC, agora mandatário da esperança renovada. A questão é: afinal, o que será do Barradão?

Assim, o duelo deste sábado assumia um ar estranho de despedida. E não se entende ao certo se é um adeus ou um até logo. Esta dúvida causa dor em tantos rubros-negros que se criaram no Barraquistão. Não à toa o estádio é considerado o maior centroavante da história rubro-negra.

O Barradão é nosso. O Barradão é nossa casa. Não é passado: é presente e futuro. Mas parece estar por um fio de tornar-se um “era uma vez”.

A relação, no entanto, estava um tanto quebrada. Pelos anos de anfitrião inofensivo. Pela memória de diretorias incompetentes. Pelos maus tratos e jogadores sem identificação que desonraram o manto de maneira recorrente.

O Barradão saiu de centroavante matador a beque trombador que falha em todos os lances.

A ajuda inesperada

A sequência desde o fim de 2016 é um tanto catastrófica. Diz a lenda das coisas trabalhadas que embaixo do escudo do Vitória na beira do gramado, embaixo das cadeiras, repousava uma cabeça de bode que atraía tudo que é coisa ruim. Não havia sal grosso no pé da trave que desse jeito em tanto fechamento.

O serviço foi bem feito. Contratações estranhas, técnicos incapazes, gestões temerárias, afastamento da torcida… Valhei-me!

Eis que a CBF, sem querer, interveio.

A nova regulamentação dos bancos de reservas fez com que tivessem que sair de onde o sol se põe para o quase-toque das arquibancadas. Para isto, o monte do escudo – que nem inclinado no ângulo certo estava, pois mal se via na TV – foi removido.

Não houve qualquer comunicado se ali havia cabeça de bode, ninho de quero-quero, sapo com a boca amarrada. Apegue-se na sua superstição e creia: quebrou-se o vidro do desalento.

Obrigado, CBF.

Despedidas e recomeços

Enquanto a maldição era desfeita, a sala de PC se enchia de injúrias e não-te-queros. À boca pequena conta-se que Fabrício, aquele que nunca deveria ter vindo, encheu-se o saco e lascou um “me deixe!” e foi posto dali pra fora em comemoração, “porta da rua, serventia da casa”. Era a limpa no elenco em ação.

Pois haja serviço! Entre afastados e rescindidos, contabiliza-se mais de dezena de até-nunca-mais.

Na falta de pé-de-obra, restava apelar para o santo de casa. Porque, em se tratando de Vitória, em se tratando da base, ela faz milagre, sim, senhor.

Substituição no Vitória: saem os contratados com canelas de madeira e entra a molecada doida pra mostrar serviço e cheia de orgulho por envergar a mítica camisa rubro-negra.

Dois a menos

Quando a escalação foi liberada, tome oxe.

“Oxe? Neto Baiano?”

“Oxe? Tá é doido? Andrigo de novo?”

“Oxe? Esse Levine é o Potó?”

Onze em campo, mas 9 para produzir. Disso todos sabiam, menos Tencati, que insistiu em Neto, em má fase desde 2012, e Andrigo, o rebaixador-mor da República.

Após o apito inicial, os oxes foram dando vez a coisas piores. Se era nítido que o Vitória atacava com mais organização, era a redonda cair no pé de Andrigo e de Neto Baiano para que o Vila Nova goiano a recuperasse.

Logo Neto colocava em prática seu movimento característico. Colocava-se no pivô, se jogava espalhafatoso, pedia falta que não havia e levantava reclamando.

Andrigo não deixava por menos e lançava mão de sua arma principal. Recebia no lado esquerdo, dominava sem jeito, tentava um drible destrambelhado e passava errado.

Até que aos 21 minutos do primeiro tempo, em cruzamento após ultrapassagem de Jeferson, que até o começo da semana treinava na Toca, Neto, o goiano, Neto Moura é o nome dele, empurrou para as redes de Caíque.

Que a força esteja com Potó

4 de maio é o Star Wars Day. Assim chamado pelo trocadilho da data em inglês (may the fourth) com a célebre frase da franquia que nunca acaba (may the force be with you – que a força esteja com você).

A chuva ainda não tinha chegado a Canabrava, mas descalabrados raios invisíveis trazidos pelos ventos da mudança enfeitiçavam positivamente o ar do Barradão. E largaram a verdade, em que o suspiro da brisa sussurrava: “que a força esteja com Potó.”

“Oxe, Potó?”

“É, homem. Levine é a porra!”

E assim, possuído pela força extra, disponível apenas aos puros de alma, Potó enfileirou goianos em encarnado-e-branco, cruzou mas bateu e viu a bola repousar mansa no gol. Em sua estreia como titular, em pleno Barradão, sua casa, nossa casa, o garoto explodiu junto com os mais de oito mil rubro-negros. Atônito, não sabia o que fazer. Correu pra lá, pra cá, zanzou e fez o que o coração mandava: chorou.

Mostrou na espontaneidade do ato o merecimento da força extra. Para uma torcida carente de identificação em campo, Ruan Potó era um verdadeiro rubro-negro. Suas lágrimas eram as mesmas que ainda muitos soltariam no apagar das luzes.

Catarse

O jogo seguia truncado. Perigo, quando surgia, era mais para o Vila que para o Vitória.

Até que os ventos resolveram assumir de vez o protagonismo.

O relógio girava aos mais de 40 minutos do segundo tempo. O sopro fez-se úmido, carregando nos ombros uma chuva que parecia escondida. Do nada, água caiu torrencialmente. Um toró de responsa. Chuva de gotas grossas, pesadas, dolorida. E que em vez de afugentar a gente, animou a horda.

Para em seguida, na raça de Felipe Garcia, Ruan Potó, o mito, A LENDA!, batesse para virar o placar no Barradão. Vitória 2×1 Vila Nova-GO.

Descrever o que aconteceu no Barradão neste momento é impossível. Foi um transe. Uma catarse coletiva. Todos gritavam um grito de descarrego, de liberação. Um grito como se libertando de um sofrimento que se prolonga a tempo demais. Um grito de recuperação de um orgulho que estava adormecido.

Eu chorei. Você chorou. Todos choramos, porque no extremo das emoções, o choro é liberdade.

Encharcados, éramos todos Ruan Potó. Ensopados, éramos lembrança de um Barradão vivo e forte.

Ponto de inflexão

O aguaceiro que caiu era um carregamento de metáforas. Lavou não somente a alma do torcedor. A tromba d’água, nas nossas conexões metafísicas, limpou ainda mais.

Levou consigo pelo ralo a cabeça do bode enterrada no monte que não existe mais, as mulas-sem-cabeça que ditaram as normas por alguns anos, os canelas-de-madeira que esperamos nunca mais ver em vermelho-e-preto.

Deixou para trás um rastro de esperança ao indicar o caminho da retomada. Que esta molhada jornada de um sábado épico no Barradão – adeus ou até logo? – seja o ponto de inflexão que reerguerá a mais-que-centenária instituição ao seu lugar de direito.

Até porque, depois de muito tempo, pudemos bradar sem vergonha e sem contenção de empolgação: UMBORA, VITÓRIA!

Gabriel Galo é baiano, torcedor do Vitória, administrador e escritor, cronologicamente falando. É autor de “Futebol é uma matrioska de surpresas: Contos e crônicas da Copa 2018”, disponível na Amazon. Texto originalmente publicado no site Papo de Galo.