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Gabriel Galo
Publicado em 22 de julho de 2019 às 16:06
- Atualizado há 2 anos
Salvador, 19 de julho de 2019
Rodada 10 de 38
Não deu nem tempo
Apenas 3 dias separariam a derrota contra o Cuiabá e o jogo contra o Criciúma. Reabilitação, treino leve preparatório de véspera. Restaria um dia para mandar o time a campo e testar variações táticas, novas formações, validar entrosamento.
O trabalho, pois, estaria comprometido em termos evolutivos no que se refere ao tatiquês do professor.
Nas arquibancadas, o pouco tempo talvez tenha sido até melhor. A decepção profunda se transformaria em expectativa para a próxima contenda, marcada novamente para o mesmo Barradão. Contra este sentimento de esperança inoxidável, pouco podemos fazer.
Assim, não deu nem tempo de sentir o baque. Dali a pouco já soaria o gongo pro round seguinte. E a aposta emocional envolvida era alta.
Previsão do tempo
Inverno na Bahia é garantia de chuva. Mas é dessa chuva fingida que faz mormaço e deixa as ruas com ar de sauna a vapor. Não, senhor. Quando chove no inverno nordestino, a precipitação tem tons bíblicos.
Não seria diferente na sexta-feira. Lá pras tantas das nove e meia, o árbitro assopraria o seu apito pela primeira vez. Justo na hora do rég e do frete. Pois esquece o venha cá, é tudo na base do bora lá. E todos os caminhos levariam ao Barradão.
Ao menos para os pouco mais de 3 mil abnegados, valentes que não se importam com o trânsito, o frio e o molhado, porque gritar Negô na bancada do Santuário é mais importante que a saúde e o bom senso.
A torcida broca
Os que seguiram direto do trabalho ao Manoel Barradas tinham motivos de sobra para fazê-lo. Se dali a muito tinha jogo, logo mais, no estacionamento do estádio se reuniria a galera da Frente Vitória Popular. Churrasco improvisado com cerveja e as porra, recebia de braços abertos quem chegasse prum papo pra discutir os rumos do Vitória e do planeta (o que é a mesma coisa).
A chibança só foi interrompida pela água, que além da que era comida, caía apagando a brasa da churrasqueira, mas sem diminuir em nada o ânimo de quem já tomou tanta chuva no estádio que aqueles pingos eram fichinha.
Mudança no ar
Já na chegada havia um clima diferente no tratamento entre torcida e jogadores. Uma, por assim, dizer, trégua.
Se não vai na corneta, vai no amor!
Até Ramon, de volta à condição de titular, contestado e com larga ficha corrida de serviços prestados ao Vitória, para o bem e para o mal, foi recebido em sua chegada ao som de “pqp, é o melhor zagueiro do Brasil: RAMON!”
Se Obina um dia foi melhor que Eto’o, Ramon também pode ser, ora, ora, o melhor zagueiro do Brasil.
Sem uma peculiar dose loucura, o que seria o futebol senão uma confraria de estatísticos e contabilistas, debatendo posse de bola e balanços financeiros de modo o mais enfadonho possível, enquanto robôs escravos da tática seguiriam à risca as orientações do professor?
Prefiro, pois, estes, os loucos, os rebeldes, os desajustados (obrigado, Steve Jobs). Até porque há um quê de cada uma dessas coisas em que roda a catraca adentrando o Santuário em momento tão complicado, mesmo que resistir não seja recomendado pela OMS.
Primeiro tempo
O curto intervalo entre os jogos mostrou uma capacidade atroz de se manter intacto o futebol rubro-negro. Ou seja: desconjuro e heresia.
Sob uma chuva fina que ia e vinha, os 45 minutos de abertura terminaram sem uma intevençãozinha sequer de qualquer dos arqueiros. Zero. Nem um chute mascado que vem fraquinho para ser abraçado como um bebê. Nada.
E o misto de sensações se fez no barulho na saída do gramado rumo aos vestiários. Se parte dos presentes vaiava, parte maior, aplaudia.
Não eram, pois, palmas de elogio. Eram palmas de incentivo, de tâmo junto.
E seria esta nova postura, aliada ao temporal de mais adiante, que mudaria os eixos da Terra, recolocando o Vitória nos trilhos dos 3 pontos. Anselmo Ramon enfrenta a marcação adversária (Foto: Pietro Carpi / EC Vitória) Bem-vindo, Anselmo Ramonstro!
Não se sabe qual foi o chá, ou café, ou energético, ou qualquer outra substância natural ou sintética que os jogadores tomaram no escondido da mesoleção (se preleção é antes, a mesoleção acontece no intervalo, e aquela palavra boa de fim de jogo é a pósleção). Ou se as palavras de Loss ou dirigente outro provocaram curto e faiscaram o brio de todos.
Fato é que entraram ligados, dividindo, correndo. Parecia que a falha preparação física estava acumulando energia para explodir no derradeiro tempo de uma noite de sexta.
E aí a colaboração dos céus veio. Tal qual aquela longínqua trama maravilhosa que alçou Ruan Potó ao panteão da glória, não foi chuva. Foi dilúvio sob o comando do cajado de Noé.
E o biblicismo prontificou o seu escolhido da vez: Anselmo Ramon.
O primeiro gol veio na principal jogada do Vitória neste ano: o zagueiro adversário fazendo lambança e entregando o ouro. E assim Anselmo Ramon pressionou o gringo Federico, que foi, ficou, tropeçou, escorregou e deixou o 9 rubro-negro na cara do gol. E ele anotou o tento da alegria. Vitória 1 a 0.
Pois a chuva aumentou.
Noé, lá de cima, mandava uma sequência de intervenções que fraqueja até o mais fervoroso ateu. Com seu poder divino, fez Gedoz correr. Fez Baraka incorporar Vanderson nos seus tempos míticos. Fez até, pela primeira vez na vida, Matheus Rocha acertar um cruzamento!
E neste último feito, que só podemos atribuir na conta do milagres, o centroavante do Vitória se jogou para cabecear a bola e dar números finais ao placar: Vitória 2×0 Criciúma.
Pois no apogeu da falta de discernimento, na continuação do melhor zagueiro do Brasil, nascia, pois, o 9 definitivo da saga para a Série B: ANSELMO RAMONSTRO.
Que comemorou botando a cabeça do leão-mascote e partindo pro abraço. Anselmo comemora o gol se transformando no mascote (Foto: Arisson Marinho / CORREIO) Chove, chuva! Chove sem parar!
Se este foi apenas o segundo triunfo do Vitória na competição, vamos nos munir de superstições, que, sabemos todos, é o que faz as coisas acontecerem como tem de ser.
Cá, como lá, o denominador comum foi a chuva torrencial. A que lava a alma e distribui o sal grosso do pé da trave para todo o gramado. A que traz um resfriado bacana para travar o fim de semana. A que apaga os celulares da galera que há tempos ansiava por gritar gol sem ressalvas.
Torcer vale a pena. Debaixo de chuva, torcida rubro-negra lavou a alma (Foto: Pietro Carpi / EC Vitória) Então, se na crença do popular é o dilúvio que garante a vitória, e ainda, de lambuja, escolhe um para concentrar a glória, evoco o São Jorge Ben e canto:
Chove, chuva. Chove sem parar.
E termina de lavar a alma e limpar as impurezas sofridas de quem já não aguentava mais esperar por poder externar o orgulho de ser rubro-negro sem temer contestação.
Gabriel Galo é escritor. Texto publicado originalmente no site Papo de Galo e reproduzido com a autorização do autor.