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Laura Fernades
Publicado em 29 de julho de 2019 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Quem disse que brincar é coisa de criança? “A essa altura da vida, aos 86 anos, não vou te dizer que brinco de ‘atirei o pau no gato’, mas as formas de brincar são infinitas”, garante a musicóloga baiana e colecionadora de brinquedos populares Lydia Hortélio, que reúne mais de três mil peças em seu acervo. Parte dele está exposta até setembro na 45ª Ocupação do Itaú Cultural, em São Paulo, que homenageia a brincante, uma das maiores do país, e resgata o debate sobre a importância da brincadeira para o desenvolvimento humano.
Todo mundo que chega para ver o acervo, conta Lydia, se vê mergulhado em lembranças da infância e em busca de afeto. “Estou aqui em São Paulo há uma semana e é tanta gente se abraçando, se lembrando dos seus brinquedos, pessoas que se sentem alimentadas. Mas não é por causa de dona Lydia, não: é a saudade que a gente tem de brincar”, acredita a pesquisadora que nasceu em Salvador e foi criada no sertão, em Serrinha, onde pesquisa a música da zona rural há mais de 50 anos.
“Converso com um, converso com outro e vejo que o sentimento é um só: a gente está com saudade da gente. O que o brasileiro mais quer é um abraço e nós estamos nos estranhando. O que a alma quer é brincar, é ser feliz”, constata Lydia, enquanto defende que a brincadeira é “só um veículo para tudo isso fluir”. Mas, afinal, por que o ato de brincar tem extrapolado o mundo das crianças e sido cada vez mais procurado por idosos e adultos como forma de bem-estar? Lydia Hortélio tem mais de três mil brinquedos em seu acervo (Foto: Shai Andrade/Divulgação) Coletivo Para começo de conversa, é importante lembrar que brincar vai além do simples contato com o brinquedo, lembra a cantora e compositora Nairzinha Spinelli, 70, que já resgatou mais de duas mil peças do folclore brasileiro em 45 anos de pesquisa sobre a brincadeira de tradição popular, com o projeto Cirandando Brasil. Cantigas, parlendas, adivinhações, jogos e histórias fazem parte da cultura da brincadeira que Nairzinha tem levado para Unidades de Terapia Intensiva (UTI), em trabalho com o público idoso.
Inclusive um aplicativo está sendo desenvolvido por ela para celular, tablet e outros aparelhos. “Selecionei mais de 100 brincadeiras da cultura popular que podem ser aproveitadas coletivamente até por quem só pode usar a voz. É importante trazer as pessoas para a vida, a convivência, o coletivo”, explica a brincante que, no sábado e domingo, realiza o curso de capacitação Multiplicadores na Cultura da Brincadeira em Salvador.
Destinado a educadores, técnicos de projetos sociais, psicólogos, profissionais de saúde e contadores de história, o curso já capacitou mais de 30 mil pessoas e está com inscrições abertas no site www.nairzinha.com.br. Marcada para acontecer na Nossa Escola, no Caminho das Árvores, a atividade busca resgatar o apreço pelas brincadeiras e cantigas populares, explica Nairzinha, “para que a cultura brincante fortaleça a convivência”. Nairzinha já resgatou mais de 2 mil peças do folclore brasileiro com o projeto Cirandando Brasil (foto: Divulgação) “A humanidade tem agora uma das grandes conquistas, que é a cultura virtual, mas é preciso contemporizar também com a convivência, porque essa cultura pode gerar solidão”, alerta Nairzinha, que em outubro e novembro volta a realizar os encontros brincantes no Museu Carlos Costa Pinto. “Nunca vi tantos adultos, idosos e crianças alheios ao grupo, ao coletivo”, reflete a pesquisadora que está escrevendo um livro infantil sobre a história da brincadeira na humanidade.
Encontro A situação também preocupa a psicóloga e professora da Escola Bahiana de Medicina, Carla Oliveira Sampaio, 47, que se autodefine ‘brinquedista’ e é especialista em Desenvolvimento e Teorias e Técnicas da Clínica Psicanalítica Infantil. “O espaço antes interposto pela brincadeira, que aproximava as pessoas, vem sendo substituído cada vez mais pelas telas, que ao contrário de promover encontros genuínos, muitas vezes afasta as pessoas”, alerta.
E isso se aplica a adultos e crianças, afirma Carla. “Observamos que muitas crianças também têm estado distanciadas do brincar livre e a intoxicação eletrônica tem nos preocupado bastante”, confessa. Enquanto reforça que é possível brincar com as palavras, com o próprio corpo, com brinquedos e jogos produzidos com sucata, por exemplo, a psicóloga destaca que o ato de brincar contribui para o desenvolvimento cognitivo, psicomotor, emocional, social e da linguagem, independente da idade.
“Felizmente, há pessoas buscando essa conexão, pois percebem o efeito do brincar em suas vidas e querem levar isso a outras pessoas”, comemora. É o caso de Lydia Hortélio, que nunca deixou de lado sua brincadeira favorita, a ciranda de roda. Questionada se isso contribui com sua vitalidade, ela faz uma pausa: “Na verdade, não sei. Só sei que quando eu brinco, entro numa roda, eu esqueço de mim e isso é a coisa mais saudável que vivo na minha vida. Nesse momento, não sou dona Lydia pesquisadora, não sou ninguém. Sou feliz”. (Foto: Shai Andrade/Divulgação) Curiosidades brincantes
Cantigas de roda ‘Ciranda’ vem de uma palavra moura que significa ‘roda’. A ciranda era uma roda de pano que era amarrada no caule das oliveiras para que as azeitonas não caíssem no chão durante a colheita, que acontecia com festa. As mulheres rodavam, cantando, enquanto os homens sacodiam as oliveiras e as azeitonas caíam nessas rodas, protegidas.
Escravo de Jó Jó, em Iorubá, significa ‘senhor’. Já a palavra ‘Caxangá’ tem vários significados e um deles é ‘pedra’. ‘Zambelê’ era o ‘escravo velho’, que não podia fugir. Isso é uma brincadeira europeia que foi aproveitada pela cultura negra para organização de fugas dos quilombos. Quando a pedra caísse no colo de alguém, essa era a pessoa escolhida para fugir naquele dia.
Pião O pião é descoberto nas margens do Rio Eufrates e vem da cultura persa, trazido para o Oriente nas caravanas de Marco Polo. De lá, vai para a América, chega às culturas indígenas e segue vivo até hoje. Uma versão atual desse brinquedo é o Beyblade.
Bola Existe uma suspeita de que a bola é a bexiga dos animais e surge quando, na antiguidade, os povos começam a comer carne. Eles enchiam as bexigas e começavam a jogar. Você vê isso nas pinturas rupestres da Serra da Capivara, no Piauí.
Fonte: Nairzinha Spinelli, cantora, compositora e pesquisadora
O que você precisa saber
Brincar desenvolve O ato de brincar contribui para o desenvolvimento cognitivo, psicomotor, emocional, social e da linguagem de uma pessoa, independente da sua faixa etária. Através dele, funções mentais superiores, como por exemplo memória e raciocínio, podem ser exercitadas e desenvolvidas.
Fortalece o social Através das brincadeiras, é possível se perceber em relação a si (saber quem sou, como meu corpo funciona e se move), ao ambiente externo e ao outro. É possível trocar de papel social, visitando novos modos de estar no mundo e se reposicionar subjetivamente.
Resgata a conexão para além do virtual O espaço antes interposto pela brincadeira, que aproximava as pessoas, vem sendo substituído cada vez mais pelas telas, que ao contrário de promover encontros genuínos, muitas vezes afasta as pessoas. Adultos e crianças têm estado distanciados do ‘brincar livre’ e a intoxicação eletrônica tem preocupado os especialistas.
A brincadeira não é só para crianças O brincar é para todos. Independente de faixa etária, da condição física, mental e até financeira, qualquer pessoa pode brincar. Além disso, as formas são várias e vão além do contato com o brinquedo. É possível brincar com as palavras, com o próprio corpo, por exemplo.
Fonte: Carla Oliveira Sampaio, psicóloga, brinquedista e professora