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Laura Fernades
Publicado em 24 de agosto de 2019 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Quem é Martim Gonçalves? Muita gente não sabe, mas essa figura emblemática fez uma “passagem fulminante” pela Bahia. “A figura do Martim Gonçalves é sempre citada, mas pra muita gente é como o ditado: ‘Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar’”, provoca a jornalista, atriz e pesquisadora baiana Jussilene Santana, 43 anos, que celebra o centenário desse ícone do teatro nacional com uma programação intensa por quatro estados.
Afinal, o que o diretor e professor pernambucano Eros Martim Gonçalves (1919-1973) queria na Bahia, onde morou durante cinco anos? O que de fato fez aqui? As respostas estão na palestra É tudo Verdade. Martim Gonçalves, 100 anos. Um Legado, que Jussilene apresenta terça-feira (27), às 14h, no Teatro Martim Gonçalves. “Não vou mentir: a palestra é bombástica, o material é explosivo”, revela Jussilene, que tem mestrado e doutorado sobre Martim e reúne um acervo com mais de 20 mil documentos, colhidos durante 15 anos em dez países. Martim, Lina Bo Bardi e o professor Brutus Pedreira (de costas) nos jardins da Escola de Teatro da Ufba (Foto: Acervo do Instituto Martim Gonçalves) O que se pode adiantar da palestra é que, mais do que emprestar o nome ao teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Martim foi fundador da primeira Escola de Teatro do país ligada a uma instituição de ensino superior. Com a criação da Escola de Teatro da Ufba, nos anos 1950, marcou a trajetória de atores como Othon Bastos, Nilda Spencer (1923- 2008) e Antonio Pitanga, além do cantor Caetano Veloso e do cineasta Glauber Rocha (1939-1981).
Como nem tudo são flores, a fama ruim de Martim também aparece na palestra, uma das atividades do centenário realizado pelo Instituto Martim Gonçalves, em parceria com a Unirio e outras universidades federais. A programação dos outros estados prevê leitura dramática, exposição, lançamento de selo pelos Correios, coquetel e espetáculo no Rio de Janeiro, com transmissão ao vivo pela internet.
O financiamento será feito por uma vaquinha coletiva, apoiada pelo ator Wagner Moura e disponível até o dia 13 de setembro no site www.vakinha.com.br. O objetivo é arrecadar R$ 85.600 para a comemoração do centenário desse “nordestino do mundo”, destaca Jussilene, também diretora do Instituto Martim Gonçalves. A ideia é valorizar essa “figura meio fantasmagórica, que se sabe que tem que preservar, mas ninguém sabe o porquê”.
‘Reacionário’ Foi a curiosidade de jornalista pelo teatro baiano, na época em que trabalhava no CORREIO, que fez Jussilene embarcar na história de Martim, um dos fundadores do Teatro Tablado no Rio de Janeiro. Intrigada com a fama“encenador reacionário e colonizador”, a também atriz resolveu checar a informação que fez Martim ser perseguido pela imprensa dos anos 1950.
Foi então que descobriu o motivo: o diretor que falava quatro línguas e tinha conexões em mais de 20 países estava ganhando poder. “Martim cresceu muito, foi realmente perseguido e retirado da Escola a partir de um golpe”, afirma Jussilene. “Ele era muito inteligente. No final dos anos 1950, conseguiu se articular de tal forma que a Escola reuniu um inédito poder, uma capacidade técnica que nenhuma outra instituição tinha”, conta.
Daí vem o estigma que “é resultado de uma injustiça histórica”, defende o professor, jornalista e crítico teatral baiano Marcos Uzel, 51. Pesquisador de teatro, Uzel acredita que essa imagem “precisa ser varrida do imaginário baiano”. “Só o tempo e a atuação de pesquisadores como Raimundo Matos de Leão e Jussilene Santana provaram como é absurda essa mancha impregnada de distorções e difamações na memória do nosso teatro”, ressalta. Martim Gonçalves em um samba de Roda (Foto: Instituto Martim Goncalves) Afro Por isso, Jussilene e Uzel destacam que é importante lembrar que Martim Gonçalves teve uma contribuição decisiva, por exemplo, na criação do Museu de Arte Sacra e do Centro de Estudos Afro- Orientais. Além disso, foi ele quem influenciou a criação do Museu de Arte Moderna da Bahia no Solar do Unhão, com projeto da arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992).
“São três instituições de valor inestimável para a cultura baiana. Um colonizador fechado na bolha de uma dramaturgia eurocêntrica jamais faria isso. Martim Gonçalves tinha temperamento difícil, era muito vaidoso, mas jamais esteve alheio ao que acontecia na cidade de Salvador”, defende Uzel, citando contribuições pouco conhecidas do diretor, tradutor, cenógrafo, figurinista, crítico e jornalista.
Durante sua passagem pelos Diários Associados, Martim conheceu o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger (1902-1996), sendo responsável por promover suas pesquisas em solo africano. “Eles articularam viagens juntos, detalhadamente para Nigéria e Senegal e, graças a Martim e ao dinheiro da [Fundação] Rockefeller, Verger conseguiu gravar no palco da escola a roda de xirê completa, que hoje está no acervo da Fundação Pierre Verger”, conta Jussilene. Jussilene Santana é jornalista, atriz e pesquisadora (Foto: Liza Cabral/Divulgação) Novos Outro impasse que marcou a passagem de Martim Gonçalves pela Bahia foi com a primeira turma de atores profissionais que chegou perto de se formar na Escola de Teatro da Ufba, mas rompeu o vínculo com a instituição e fundou a Companhia Teatro dos Novos. Foi essa mesma companhia que criou, em 1964, o Teatro Vila Velha (TVV).
“Era uma coisa que já estava em ebulição. A gente nunca vai saber o motivo da ruptura real com Martim, mas naquele momento eles não podiam ficar na escola onde romperam com o diretor”, pondera o encenador Marcio Meirelles, 65, diretor do TVV. “O teatro baiano ganhou com isso, porque ganhou um espaço, um grupo, uma série de coisas. A importância de Martim Gonçalves para o teatro baiano e brasileiro é inquestionável”, completa Marcio.
Ao reforçar que o TVV se sente descendente de alguma forma dessa trajetória, e garantir presença no evento de terça-feira, Marcio destaca a importância do resgate histórico. “Essa recuperação da memória só engrandece nós próprios. A gente tem história, vem de algum lugar, não surgiu do nada. A Bahia tem essa cultura de apagamento do passado. Mas devemos muito a Martim, a João Augusto e a muitos outros que estiveram aqui”, completa. O ator e diretor Harildo Deda, 79 anos, na Escola de Teatro da Ufba, onde dá aula (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Com 53 anos de profissão, sendo 30 como professor da Escola de Teatro da Ufba, o diretor e ator Harildo Deda, 79, destaca ainda a contribuição de Martim para a profissionalização do teatro na Bahia. Apesar de não ter conhecido ele, Harildo lembra que era estudante quando decidiu que queria mesmo fazer teatro. Principalmente no dia que fugiu da aula para assistir à peça de inauguração da Escola de Teatro, Senhorita Júlia.
“A chegada da Escola de Teatro com uma forma de fazer teatro que parecia realidade me encantou. O que fica de legado é o teatro na expressão maior da palavra. O que antes era uma coisa de diletantes e diversão, com a chegada de Martim e o trabalho dele, se torna uma coisa profissional, mais séria, que se faz pensando no futuro”, elogia Harildo. “A gente precisa ter cuidado para que essa Escola não morra”, convida.
Serviço O quê: Palestra ‘É tudo verdade. Martim Gonçalves, 100 anos. Um Legado’, com Jussilene SantanaQuando: Terça-feira (27), às 14hOnde: Teatro Martim Gonçalves (Av. Araújo Pinho, 292 - Canela | 3283-7862)Entrada gratuita Financiamento coletivo segue até 13 de setembro no site www.vakinha.com.br/vaquinha/centenario-de-martim-goncalves