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Da Redação
Publicado em 13 de julho de 2019 às 06:20
- Atualizado há 2 anos
Três anos depois de lançar o seu último livro, uma ficção com tom autobiográfico, o antropólogo, historiador e poeta baiano Antonio Risério retoma o estilo ensaístico em A Casa no Brasil, livro cujo lançamento acontece no próximo dia 23, às 19h, no restaurante Solar, no Rio Vermelho. Na entrevista a seguir, ele comenta alguns dos assuntos presentes na obra que faz uma cobertura de um amplo espectro histórico, cultural e social. Nas palavras do historiador Jorge Caldeira, o leitor é convidado a fazer uma viagem completa, “do Amazonas ao Rio Grande do Sul, do puteiro ao convento, do mato à favela, do cortiço ao palácio, dos milênios passados ao amanhã”
Ao falar sobre a cidade, você lembra que ela é um espaço de disputas. Suponho que o mesmo se dê em relação às casas. Levando em conta o caso do Brasil, quais são as principais disputas em torno desse espaço? São coisas inteiramente diversas. O espaço público é uma arena para grupos sociais, agrupamentos étnicos ou sexuais, etc. Uma casa é outra coisa. Pode ser ocupada por uma única pessoa. Hoje, não é pequeno o número de pessoas que moram sozinhas. De qualquer sorte, pensando na casa como agrupamento, as coisas se apresentam em cenas distintas, histórica e culturalmente. Nos primeiros tempos coloniais, por exemplo, as mulheres brasileiras viviam praticamente enclausuradas, como se isso aqui fizesse parte do mundo muçulmano. Hoje, a conversa é outra. As mulheres brasileiras alcançaram um grau admirável de afirmação e liberdade, se compararmos com o que acontece no Irã, na China e em boa parte dos países da África. Do mesmo modo, hoje temos casas em que a mulher comanda, é a chefe-de-família. Então, a gente tem de examinar caso a caso, com calma, atenção e rigor. Não dá para responder a uma pergunta dessas em poucas palavras.E qual o entendimento histórico acerca da relação entre espaço doméstico enquanto privacidade? A ideia de privacidade doméstica, da casa como espaço de refúgio e intimidade, é uma conquista do mundo burguês, principalmente a partir da Holanda, no século 17. Na casa medieval, não existia privacidade alguma. Eram casas densamente povoadas. E a mesma coisa vale para a casa-grande dos engenhos canavieiros do Brasil: agregados, escravos, parentes, etc., adensavam demograficamente a moradia, que também poderia apresentar um caráter misto, como no caso dos sobrados senhoriais de nossas principais cidades, como Salvador, Olinda, Recife, Ouro Preto. A casa burguesa, com seu agenciamento espaçotemporal protetor da privacidade, só vai começar a vingar entre nós a partir do século 19, quase à entrada do século 20, depois que se deu a abolição da escravidão e a ordem social competitiva se impôs no país. O que mais lhe chama atenção em relação às casas no Brasil - inclusive a partir do olhar de quem morou em muitos lugares? Diversas coisas me chamaram a atenção. Uma delas é que o tipo mais persistente de moradia, na história da casa brasileira, é o mocambo, da palhoça colonial aos barracos das favelas. Me impressionou também ver como as senzalas escravistas eram tão parecidas com as antigas (e as atuais) casas populares de tantos lugares da África, como Angola, por exemplo: casas baixas, sem janelas, mal iluminadas, etc., em decorrência de uma visão cultural da casa como espaço de dormir e não como espaço de convívio. Também o caso do apartamento, que começou muito malvisto em nosso meio (habitação coletiva cheirava a promiscuidade) e hoje é onde quase todo mundo mora. Mas, enfim, coisas demais me chamaram e me chamam a atenção, tanto que o livro ficou com mais de 400 páginas.
Como é que seu livro se estrutura? E como foi o seu percurso de escrita? Não tem mistério: sento e boto no papel o que penso sobre o assunto, sem preconceitos ideológicos ou inibições acadêmicas. A escrita acaba ganhando um caráter historiográfico, porque gosto de acompanhar o desenrolar das coisas no tempo – e socioantropológico, a fim de clarear as questões contextualmente. Então, depois de uns primeiros textos mais genéricos, falando sobre o sentido da casa,da rua, do bairro, venho caminhando algo cronologicamente, dos tempos do escravismo colonial aos dias de hoje, das senzalas aos flats.Falando nisso, uma curiosidade: por que o título A Casa no Brasil, no singular? Casa = unidade habitacional. Falo no livro que não podemos falar da casa grega, da casa romana, da casa medieval, no singular. Nem da casa brasileira, claro. Tudo teria de ser no plural. Ao mesmo tempo, uma casa é uma casa. O título vai no singular, mas a análise passa em revista uma tipologia habitacional variadíssima, com suas implicações sociais e culturais. (Foto: Reprodução) Você constata que o controle das cidades é feito, há algumas décadas, pelo setor da construção civil e os transportes. Claro que isso desemboca também em como nossas moradias são organizadas neste espaço. Quais as linhas mestras dessa organização? Deixamos o chão da cidade sob o controle da burguesia da construção civil. Com isso, as administrações públicas, quando simplesmente não funcionam como representantes desse setor imobiliário, estão de qualquer forma com as mãos amarradas. É a burguesia da construção civil que decide o que vai ser feito em cada canto da cidade: um shopping center aqui, um bairro de luxo acolá, um conjunto habitacional popular adiante, etc. Esta monopolização fundiária não permite que nossas cidades ganhem planejamentos amplos e de longo prazo. Precisamos – governo e sociedade – reconquistar o chão da cidade. E aplicar a legislação existente, que está definida constitucionalmente, com ênfase na função social da cidade e da propriedade.Como é que, mais contemporaneamente, surgem e imperam as lógicas dos condomínios fechados, e também de programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida? Decerto que não é só por uma questão econômica... Nos EUA, o condomínio fechado (“gated community”) nasce do jardim-cemitério, só que, em vez de tumbas, temos casas plantadas em amplos gramados. Nós copiamos o modelo, que hoje é sucesso no mundo inteiro, inclusive na China, onde condomínios chegam a ser cercados por fossos. É por isso que, como me diz um amigo, o Jardim da Saudade e o Encontro das Águas são tão parecidos. Mas o condomínio se desenha como uma espécie de enclave antissocietário, antiurbano, empobrecendo o horizonte das relações sociais, especialmente em meio à juventude. Você não tem os contrastes, a troca mais rica e variada de experiências, que a vida nas ruas oferece. O condomínio fechado reduz ao extremo a presença do acaso, que é tão importante na vida da cidade. Já o Minha Casa, Minha Vida constrói, hoje, as favelas de amanhã. Os governos petistas, em vez de retomarem a visão da questão habitacional popular que prevaleceu nos governos de Getúlio Vargas, preferiu fazer algo bem mais próximo (e muitas vezes pior) do BNH da ditadura militar. O Minha Casa, Minha Vida, a meio caminho entre a senzala e o canil, é um desrespeito ao povo.Em relação às moradias, quais os maiores problemas e soluções que o Brasil enfrenta hoje? Nós temos dois grandes problemas: as desigualdades sociais e os delitos ecológicos. Em resposta a isso, temos de desenvolver um pensamento e uma prática ecossociais, tanto no plano do urbanismo quanto no da arquitetura. Dedico os capítulos finais do livro à discussão desses temas. Contrariando a Bíblia, Goethe dizia que “no princípio, era a ação”. Ainda no próprio romantismo alemão, Heinrich Heine respondeu: “no princípio, era o rouxinol”. Ou seja: Goethe celebra a práxis, Heine celebra a natureza. Digo então que temos que chegar a acordo aí, entre a ação de Goethe e o rouxinol de Heine.