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Da Redação
Publicado em 23 de novembro de 2022 às 06:00
A Nova Trova Cubana foi um movimento que surgiu quase em paralelo com a Tropicália, no Brasil. Não tinha absolutamente nada a ver, esteticamente, com exceção de seus dois maiores expoentes, Silvio Rodriguez e Pablo Milanés, serem mais ou menos como os ‘Gil e Caetano’ de Cuba, representantes máximos do movimento. E esta incrível geração de artistas nascida na década de 1940 perdeu, aos 79 anos, o Pablo querido, em decorrência de um quadro infeccioso, num hospital de Madri, Espanha.
O compositor cubano ficou mais conhecido no Brasil graças a Chico Buarque, que traduziu Yolanda, de Milanés, sucesso que atravessou gerações e se tornou um clássico “brasileiro”. Como se Fosse a Primavera foi outra que Chico fez versão e gravou. Vale lembrar de Años, gravada por Fagner, e com participação de Mercedes Sosa; outro sucesso imediato no por aqui.
Pablo e Silvio viraram uma espécie de artistas oficiais do regime castrista, e tiveram suas dores e glórias por isso. Foram representantes máximos da onda latino-americana, gravados e aplaudidos onde quer que passassem. Chico Buaque gravou Yolanda e transformou a música num sucesso nacional (Jorge Fernandes/divulgação) Um dos discos que mais ouvi durante minha infância e adolescência foi o álbum ao vivo de Pablo no Rio de Janeiro, com participação de Chico. Gravado em 1983, sua apresentação marcava também o começo do fim dos anos de chumbo. Cinco anos antes, Milton gravava com o mesmo Chico a belíssima Canción Por La Unidad Latinoamericana, no álbum Clube da Esquina n.2; um libelo contra a opressão aos povos latino-americanos.
Em show no Canecão, no Rio, Pablo Milanés abriu a apresentação com Yo Pisaré Las Calles Nuevamente, uma canção bela e forte sobre o golpe militar no Chile. A mesma que ele escolheu para começar sua participação numa apresentação ao vivo na Argentina, em que ele dividiria o palco com Silvio Rodriguez. Na apresentação da Argentina, a reação da plateia é emocionante. Quando ele fala que canções e livros retornarão, uma reação ainda tímida da plateia mostra a força da canção, mas quando ele fala que pagarão sua culpa os traidores a plateia vem abaixo. Era também o fim da ditadura por lá, e o momento era de união e sentimento de justiça pelos anos de tortura, morte, perseguição e censura dos regimes totalitários (vale assistir ao filme Argentina 1985, disponível no Amazon Prime Video).
Curiosamente, um tipo de regime que Pablo tentou defender até quase o final da vida, em Cuba. Já em 2000, lia um artigo de Aldir Blanc falando sobre o disco Dias de Glória, do compositor cubano, que corri imediatamente para comprar. Aldir chamava a atenção para os versos em que Pablo dizia que os dias de glória se foram voando e ele não se havia dado conta, e que vivia entre fantasmas alimentando sonhos e falsas promessas.
Milanés, arauto da revolução cubana, olhava com nostalgia e decepção os dias de glória que se haviam ido, e, provavelmente por sua fidelidade a Fidel, só recentemente resolveu abrir a boca sobre o período em que esteve num campo de trabalho (as chamadas UMAP), quando foi preso, ainda jovem, como subversivo pelo governo cubano, antes de se tornar uma estrela do regime ditatorial. Há um documentário sobre isso.
Década de 90, Pablo Milanés veio a Salvador, cantar numa feira qualquer. Vi seu show, quando ele, já de cabelos brancos, tocava para uma plateia que parecia sequer saber o valor daquele homem. Alguma coisa ali já parecia morrer de sua América Latina que ele sonhava unida. Pablo, um gigante, se foi sobrevoando a pequenez de nossos sonhos atuais.
Gil Vicente Tavares é colunista do CORREIO