Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Roberto Midlej
Publicado em 10 de fevereiro de 2022 às 05:59
- Atualizado há 2 anos
A Semana de Arte Moderna está completando cem anos. Veja abaixo três livros que dão ideia da importância daquele encontro que aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo e reuniu artistas como Heitor Villa-Lobos, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Livro: Semana de 22: Antes do começo, depois do fimAutores: José de Nicola e Lucas de NicolaEditora: Estação BrasilPreço: R$ 64
Reunindo vasta documentação e rica iconografia, esta é uma obra fundamental tanto para iniciados quanto para aqueles que pela primeira vez tomam contato com o tema. Nenhum movimento artístico-cultural no Brasil teve uma repercussão tão polêmica e duradoura quanto a Semana de Arte Moderna, que ocorreu no Theatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922. Duramente atacada pela crítica conservadora, a Semana subverteu os padrões artísticos e literários da época e virou um marco importante de nossa história, tornando-se matéria de reflexão sobre a cultura brasileira. A proposta deste livro é aprofundar essa discussão e levá-la ao grande público. Os autores percorrem de maneira ampla os acontecimentos e bastidores da Semana de 22 e propõem análises inéditas sob vários aspectos. Em 1972, nas comemorações de cinquenta anos do evento, Carlos Drummond de Andrade descreveu aquelas agitadas noites como um “grito no salão bem-comportado”, uma manifestação que seguia viva, ressoando. Outros cinquenta anos se passaram e a Semana chega ao seu centenário mais viva do que nunca – o grito modernista segue ecoando pelos salões e influenciando nossas artes, nossa cultura, nosso pensamento. Livro: Modernismos 1922-2022Org: Gênese AndradeEditora: Companhia das LetrasPreço: R$ 160
Neste volume, organizado por Gênese Andrade e com ensaios inéditos de José Miguel Wisnik, Lilia Moritz Schwarcz, Walnice Nogueira Galvão, Regina Teixeira de Barros e outros vinte e cinco pesquisadores, é instigante perceber como temas e questões que envolvem a Semana de 22 não se esgotam. Revisitar aqueles dias de fevereiro envolve avanços e recuos, novas perguntas e respostas em aberto numa reflexão centenária que gira em torno de antecedentes e desdobramentos, sobre os quais não há consenso. Do diálogo com o pensamento feminista, que ecoa nas herdeiras da Antropofagia que marcam a literatura e a música contemporânea, à representação e representatividade do negro na produção artística do período; das reflexões sobre a força do design gráfico de livros e revistas de vanguarda à controversa relação de Tarsila do Amaral com a moda parisiense; das relações dos modernistas com a política à apropriação da temática indígena em algumas de suas principais obras. Os textos reunidos neste livro têm como objetivo trazer para o debate as manifestações e as obras artísticas modernistas, reconhecendo suas virtudes e controvérsias, as relações com seu contexto político, social e cultural de produção e recepção, com o mesmo vigor que moveu seus protagonistas. Livro: O guarda-roupa modernista: O casal Tarsila e Oswald e a modaAutor: Carolina CasarinEditora: Companhia das LetrasPreço: R$ 110
Entre 1923 e 1929, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade formaram um par icônico da cultura brasileira. O casal Tarsiwald — apelido cunhado por Mário de Andrade — se consagrou como um símbolo tanto no campo das artes visuais quanto no da literatura. Em O guarda-roupa modernista, a professora e pesquisadora Carolina Casarin mostra como os dois se apropriaram da moda para deixar a sua marca. Inédita, esta farta pesquisa revela como os ideais modernistas e as contradições do movimento podem ser compreendidos a partir da escolha das roupas de dois notáveis intérpretes do Brasil. Por meio de diferentes registros da época — vestimentas, fotografias, pinturas, obras literárias, correspondências, depoimentos e recibos —, a autora nos apresenta a um casal vibrante que soube traduzir em sua aparência a irreverência, a elegância e as ambiguidades do nosso país.
Entrevista Gonzalo Aguilar, argentino, é doutor em Letras pela Universidad de Buenos Aires e professor de literatura brasileira na mesma instituição. No livro Modernismos 1922-2022 (Companhia das Letras), ele assina o texto Os Herdeiros da Antropofagia.
O que é a antropofagia e qual a importância dela para o modernismo?
O modernismo se inicia em 1922 e a Antropofagia vem seis anos depois. Participam dela Oswald de Andrade, que esteve na Semana, mas também Tarsila do Amaral, Raúl Bopp e outros que não estiveram na Semana, mas que formaram parte do modernismo. Aí você tem dos manifestos: o de Pau-Brasil de 1924 e o antropofágico de 1928, ambos redigidos por Oswald de Andrade.
Qual é a diferença [entre os dois manifestos]? É fundamental. A vanguarda de Pau-Brasil põe o foco no estético, nas mudanças na poesia, na pintura, na representação de Brasil e na necessidade de “consertar os relógios” com a arte internacional. Fazer “poesia de exportação” como diz o Manifesto.
O movimento antropofágico é um dos poucos movimentos latino-americanos que sai da estética para pensar a arte como política. Já a primeira frase diz: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Não diz: esteticamente. É dizer que a diferença é que a antropofagia tem um pensamento político e cultural sobre o Brasil que quer mudar aspectos muito diversos: desde o religioso (foi um movimento anticatólico) até a relação com o mundo (a antropofagia não se integra na vanguarda internacional, mas critica os universais europeus que não consideram o aporte do índio).
Nesse sentido, não é casual que a Revista fosse fechada por pressões da Igreja e da elite paulistana. Então, eu considero que a importância da antropofagia é que não considera a vanguarda só como uma mudança na arte, mas como uma mudança muito mais geral e radical.
Na arte brasileira - seja na música, artes plásticas, cinema... ou qualquer outra linguagem -, que artista contemporâneo você considera um herdeiro do modernismo ou da antropofagia? Por que?
Ainda que o meu ensaio se intitule “herdeiros” da antropofagia, é difícil pensar como herança porque a arte não é uma coisa que você pode deixar voluntariamente nas mãos de outro. Acho que é melhor pensar em que artistas se pensaram como herdeiros, e aí você tem muitos artistas que bebem nas águas do Manifesto e da obra dos antropófagos. Tem uma linha quase ‘ofícial’, vamos dizer, que coloca o Tropicalismo como uma continuidade da antropofagia. Na canção “Geleia Geral”, de Gilberto Gil e Torquato Neto que está no disco Tropicália, ou panis et circensis, tem citações do Manifesto e a presença de Oswald está em Hélio Oiticica, nos poetas concretos, Zé Celso Martinez Corrêa, Caetano Veloso, Tom Zé, Gilberto Gil, Os Mutantes e Glauber Rocha.
Depois, tem na atualidade desde cantoras como Beatriz Azevedo ou Adriana Calcanhoto, antropólogos como Eduardo Viveiros de Castro, para não falar do mundo da arte que, desde a Bienal de São Paulo de 1998 que organizaram Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa, colocou a antropofagia como uma referência internacional. Mesmo os artistas indígenas que estão contestando a Antropofagia (penso na exposição Véxoa: nós sabemos na Pinacoteca de São Paulo) são herdeiros rebeldes dos postulados oswaldianos.
Também é certo que a metáfora da devoração é tão ampla que entra tudo: você pode dizer que Van Gogh devorou a arte oriental ou que Shakira devorou o rock. Então, seria bom ver o que está além da devoração, pensar o que significa a devoração. Para mim, a devoração é a ideia de que não existe vida após a morte, que a vida está aqui, na terra, no corpo, no prazer e também na dor. É uma ideia com muito sentido dita em anos em que o catolicismo era muito influente na vida das pessoas (talvez hoje o evangelismo tenha esse papel e então a antropofagia com a sua critica ao messianismo, poderia ser reatualizada como crítica do estado atual das coisas). Eu acho então que é muito dificil falar dos ‘herdeiros’ sem ter esquecimentos importantes. Mas talvez o central é que a antropofagia é hoje uma coisa incorporada na arte e na cultura brasileira, que já faz parte e que anima a muitos artistas a ter uma atitude ativa, criativa e sem medos com a arte universal.
Chacrinha foi um herdeiro do modernismo? Por que? Isso foi uma operação do Tropicalismo que faz sentido porque Oswald cultuava Piolim, um palhaço dos anos 1920 que era muito popular. Oswald preparou um banquete (uma prática muito comum e vanguardista na época, nos Banquet Years como os chamou Roger Shattuck) para Piolim porque adorava o humor sarcástico dos palhaços. Mas nessa época não existia a televisão, ainda que o Manifesto tenha falado dos “aparelhos de televisão” de modo muito pioneiro. Chacrinha já é do tempo da cultura de massas, mas o gesto de Oswald com Piolim é muito similar ao dos Tropicalistas com Chacrinha.
Na visão deles, Chacrinha não é só um palhaço mas um símbolo do Brasil. E isso acontecia na época da ditadura e admitia uma leitura política como a que fez Gilberto Gil em “Aquele abraço”. Desconcheço se Chacrinha tinha alguma intenção de se colocar como herdeiro, mas ele abriu uma possibilidade para pensar a realidade para os jovens do Tropicalismo: a crítica ao poder e à ditadura não tem que ser necessariamente séria e na tradição solene da esquerda, mas pode ser debochada, sarcástica e a partir do riso. Um riso trágico, mas que não vai deixar a alegria nas mãos dos repressores.
A antropofagia teve papel importante no combate à ditadura militar no Brasil? Por que? Oswald de Andrade morre em 1954. Após dez anos da sua morte, em 1964, grandes escritores como Antonio Candido e Haroldo de Campos começam a difundir a sua obra, que até aquele momento era rara nas livrarias. A partir dos suplementos culturais dos jornais e das reedições e da encenação de O Rei da Vela, de Zé Celso Martinez Corrêa, em 1967, começa a crescer a figura de Oswald, a sua teoria da antropofagia.
Mas qual é a relação entre o combate à ditadura militar de 1964 e a vindicação da figura de Oswald que também começa em 1964? Acho que existia um modo de se opor às ditaduras que tinha a ver com um longa tradição de esquerda e do Partido Comunista que continua no Brasil nos CPCs (Centros Populares da Cultura) e nos movimentos universitários e que tinha a ver com uma atitude séria e de certo modo solene e militante (é dizer: disciplinada).
A leitura de Oswald e do manifesto abriu a porta a outro tipo de atitude mais anarquista e que não estava dada pela militância, senão por uma atitude mais iconoclasta e sem enquadramentos prévios. A idéia oswaldiana de que o Brasil era uma conjunção de elementos díspares, contraditórios - que incluía as figuras heroicas mas também o palhaço -, foi muito estimulante para os tropicalistas para sair de uma idéia de progresso que compartiam a direita e a esquerda.
O fato de que a cultura Brasil esteve feita de elementos nacionais e regionais, mas também estrangeiras (que deviam ser incoporados via devoração) foi também muito estimulante para sair do nacionalismo e de uma idéia de cultura fechada, limitada e que olhava o estrangeiro com suspeita. Veja a canção “Geleia Geral” e o que seriam “as relíquias do Brasil”:
Não vê no meio da sala As relíquias do Brasil Doce mulata malvada Um LP de Sinatra Maracujá, mês de abril Santo barroco baiano Super poder de paisano Formiplac e céu de anil
Acho interessante que entre essas relíquias (como se fosse um altar barroco) se encontre o LP de Sinatra como se ele fosse parte de Brasil, e talvez seja em parte certo se você pensa na bossa nova e no disco que ele gravou com Tom Jobim. Então, um novo modo de entender a rebeldia política e crítica ao nacionalismo seriam dois aspectos importantes da antropofagia nos anos sessenta e aí também poderíamos agregar o método de composição poética de Oswald com a brevidade, a montagem de elementos heterogêneos, o humorismo e irreverência.