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Roberto Midlej
Publicado em 22 de abril de 2021 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Zumbi dos Palmares, Chica da Silva, Machado de Assis, Aleijadinho... o Brasil tem inúmeros personagens negros conhecidos e que foram fundamentais para a história do país. Mas esses citados, que se tornaram populares e estão documentados em nossos registros, são muito poucos diante de tantas personalidades negras que há cinco séculos são protagonistas da construção do Brasil.
A Enciclopédia Negra (Companhia das Letras/R$ 90/689 págs.), escrita por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz, chega para fazer justiça a essas pessoas que deveriam estar nos livros e na lembrança de todos os brasileiros. “Não podia ter apenas pessoas conhecidas. A ideia era ir atrás de personagens como Manuel Querino, que, embora seja conhecido na historiografia da Bahia, é menos conhecido do público mais amplo”, diz Flávio do Santos Gomes, 57 anos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coautor de livros como O Alufá Rufino.
Na hora de selecionar os personagens, houve uma preocupação em equilibrar o número de homens e mulheres. Segundo Flávio, no levantamento inicial que os autores fizeram, havia uma proporção mais ou menos de três mulheres para cada dez homens. O trio então empenhou-se em buscar personagens femininas.“Fomos atrás, por exemplo, de mulheres abolicionistas. E encontramos algumas em São Luís ou no Espírito Santo. Houve mulheres líderes de revoltas”, afirma Flávio.Houve também atenção especial a personagens LGBTQIA+, como Francisca (Xica) Manicongo, que chegou à Bahia no século XVI e é uma das primeiras travestis de que se tem registro. Conforme pesquisa de Luiz Mott, citada no livro, um escravizado denunciou Xica e afirmou que ela usava o “ofício de fêmea”. Em seguida, acrescentou que Francisco Manicongo - esse era seu nome registrado em documentos - se recusava a trajar “o vestido de homem que lhe dava seu senhor”.
Flávio cita ainda outras personalidades LGBTQIA+ de épocas diferentes, como Madame Satã (1900-1976), interpretada por Lázaro Ramos no cinema, e Quelly da Silva (1984-2019), travesti paulista que foi assassinada aos 35 anos e teve o coração arrancado pelo autor do crime.
Diversidade regional Os autores também levaram em conta a diversidade regional dos personagens.“Salvador e Rio de Janeiro são cidades onde há uma marcante presença dos negros. Mas não poderíamos ficar apenas nelas. Então, olhamos também para Porto Alegre, São Luís, Recife... Malunguinho, por exemplo, viveu em Recife no século XIX e Salústia, do mesmo período, viveu na Paraíba”.“Tivemos uma preocupação temporal e espacial também. Da Bahia, há artistas recentes como Riachão, de Salvador, e Manoel Tranquilino , que nasceu no século XIX e era mestre de uma banda de música em Cachoeira. Passamos pelos séculos XVI, XVII, XVIII e chegamos a personagens do século XXI, como Marielle Franco e Mestre Moa do Katendê”, enumera.
As pesquisas para a Enciclopédia Negra se basearam em dissertações e teses acadêmicas escritas principalmente nos últimos 20 anos, além de livros clássicos. Preocupados em dar o devido crédito aos pesquisadores, os autores citam, em cada um dos verbetes, as fontes de onde foram colhidas as informações. “Seria impossível, por exemplo, falar de Pacífico Licutan sem citar o trabalho de pesquisa de João José Reis. Há pesquisas novas importantes, como a de Wlamyra Albuquerque sobre Teodoro Sampaio, que nós citamos”, afirma Flávio sobre os dois historiadores baianos.
Pacífico Licutan foi um importante líder que participou da Revolta dos Malês, em janeiro de 1835. Os malês eram negros de origem islâmica que organizaram o levante. Teodoro Sampaio era filho de escravizados, nascido em Santo Amaro (BA) e que se tornaria engenheiro no Rio, então capital do país. Integrou a Comissão Hidráulica nomeada por D. Pedro II e fez da parte da comissão encarregada de fundar a Escola Politécnica de São Paulo, que hoje faz parte da USP.
Retratos O projeto da Enciclopédia Negra, no entanto, não se encerra no livro. Artistas de diversos estados foram convidados para desenhar alguns personagens que se tornaram verbetes. Da Bahia, foram chamados Ayrson Heráclito, Andressa Monique, Nádia Taquary, Tiago Sant' Ana e Rebeca Carapiá.
Os artistas ficaram livres para imaginar como eram essas pessoas, já que poucas delas foram retratadas na história. Eles tinham acesso apenas ao verbete e, a partir dele, criavam o retrato. Ayrson Heráclito, no entanto, foi além. Para desenhar o “mandingueiro” João da Silva, recorreu à própria lembrança que tinha de uma viagem que fez ao continente africano.
Ele então revirou as fotografias que havia feito naquela viagem e encontrou a imagem de um jovem que serviu de inspiração para o retrato de João da Silva. Ayrson desenhou ainda Luiza Mahin, líder dos malês, e Domingos Sodré, sacerdote nagô.
A partir de 1º de maio, 100 desenhos realizados pelos 36 artistas estarão na exposição homônima ao livro, que ficará em cartaz na Pinacoteca de São Paulo até 8 de novembro.
Cinco personagens da Enciclopédia Negra 1 - João da Silva, por Ayrson Heráclito Em 1745, um vigário denunciou que muitos negros que vivam nas proximidades de Jacobina (BA), entre eles João da Silva, carregavam “bolsas de mandinga”. A acusação representou mais um cerco de intolerância religiosa e João da Silva, assim como José Martins, Luiz Pereira de Almeida e Matheus Pereira Machado, foram açoitados publicamente. 2 - Inácio Monte, por Tiago Sant’ana Junto com a esposa Vitória da Costa, este homem vindo da África Ocidental participou da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Ifigênia, no Rio de Janeiro, fundada em 1740. Na irmandade se destacou por sua ascendência sobre outros africanos. Sucedeu o reinado de Clemente na irmandade e assim conquistou notoriedade e riqueza. 3 - Roque José Florêncio, por Nádia Taquary Conhecido como Pata Seca, Roque José, de acordo com uma narrativa popular, teria sido um “escravo reprodutor”, que tinha mais de 200 filhos e viveu mais de 130 anos. Segundo uma neta de Pata Seca, Madalena Florentino, que vive em São Carlos (SP), “trata-se de uma história verdadeira e não uma lenda”. Conforme seus parentes, Roque José teria sido comprado por um fazendeiro e escolhido para ser “escravo reprodutor”. 4 - Martinha, por Roberta Carapiá Segundo pesquisa inédita de Isadora Mota, Martinha era uma jovem escravizada que tinha entre 18 e 20 anos e que dizia haver incorporado a alma de sua finada senhora. Alegava dispor de poderes sobrenaturais e tinha possessões. Com a garantia de prever o futuro, se intitulava Santa Maria Mártir. Possuída pelo espírito de sua senhora, Martinha forçou os herdeiros da finada a assinarem sua carta de liberdade. 5 - Benjamin de Oliveira, por Andressa Monique Nasceu numa fazenda em MG e foi batizado em 11 de junho de 1870 como “livre”. Sua mãe, no entanto ainda era escra- vizada. Benjamin vendia bolos na entrada dos circos quando conheceu o Circo Sotero e resolveu fugir com a trupe. Três anos depois, abandonou o Sotero, pois temia ser escravizado. Juntou-se a outro circo, onde se tornou palhaço com direito a salário. 6 - Domingos Sodré, por Ayrson Heráclito "Foi uma pesquisa muito complicada. Nós não temos no Brasil iconografia de escarificações [cicatrizes no rosto provocadas em rituais de algumas etnias africanas] do Reino de Onim, atual Lagos. João Reis, que fez a biografia, só tinha informação documental que ele tinha marcas no rosto. Tive a supervisão do professor Félix Ayoh'Omidire que me orientou entre as marcas Ęgba ou Jębu", diz o artista.