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Em releitura de Dom Casmurro, escritor baiano afirma que Capitu e Bentinho participaram de troca de casais

Mayrant Gallo comenta a obra de Machado de Assis e recomenda que as pessoas releiam seus livros favoritos mais de uma vez

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  • Da Redação

Publicado em 10 de julho de 2021 às 16:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Acervo Pessoal

Foto: Acervo pessoal Jorge Luis Borges e muitos outros escritores declararam, cada um a seu modo, que, depois de um tempo, reler uma obra que se admira é muito mais proveitoso do que simplesmente ler uma nova obra, ainda que do mesmo estimado autor. O conselho é que, se você ama um determinado livro, releia-o a cada três ou quatro anos, enquanto a vida o permitir. O que você achará de "novo" no "velho" é, de fato, surpreendente, pelo efeito de duas dessas circunstâncias: 1) a evolução intelectual é constante e se enriquece e diversifica diariamente; 2) o livro se descortina mais vívido e profundo conforme o leitor evolui.

Quando criança, eu sempre me assombrava com meu pai, que, a cada dois ou três anos, às vezes menos, relia Os miseráveis, de Victor Hugo, um calhamaço de quase 3 mil páginas, divididas em 3 volumes. Lembro-me, com espantosa nitidez, de que sua edição, em capa dura, era vermelha e surrada, e que pelo miolo espalhavam-se inúmeras gravuras, que eu adorava folhear. E então, naturalmente, um dia lhe perguntei por que ele sempre relia aquele livro... Ele simplesmente respondeu que era o melhor livro do mundo, a mais bela história já escrita.

Esse é outro critério de leitura que também podemos adotar: reler por prazer, aspecto que, aliás, também é defendido por Borges como talvez o mais importante. Borges admitia que, se a obra não lhe desse prazer, ele a abandonava, sem piedade nem culpa. E não por acaso o admirável escritor argentino leu tantos livros: porque os leu por deleite, sem perder tempo nem despender esforço com idiossincrasias literárias ou poses de vanguarda.

Na literatura brasileira há uma dúzia, talvez menos ou mais, de livros que releio por puro prazer e, dos quais, volta e meia, extraio um proveito inesperado, antes imperceptível. Dom Casmurro, de Machado de Assis, é um desses. Já tendo lido esta obra-prima umas cinco ou seis vezes, e sempre me deparando com um "novo" pormenor, me arrisquei, por deleite (pois é em larga escala um dos meus romances favoritos), a mais uma releitura este ano. E não me arrependi.

Quem me conhece sabe que, para mim, a discussão se Capitu traiu ou não Bentinho é inútil e inócua. Traiu, e pronto. Isso é comprovado nas páginas em que Machado de Assis, por intermédio do narrador, recheia suas reflexões sobre o caso com cifras, metáforas, símbolos, que, identificados e esclarecidos, não deixam dúvidas quanto à infidelidade conjugal da “cigana oblíqua e dissimulada”. Bentinho, ensimesmado, tem dúvida, mas Machado de Assis, escritor consciente, não. Dom Casmurro foi publicado em 1899 (Foto: Reprodução) Por outro lado, durante a minha penúltima leitura deste romance, uma audaciosa suspeita tinha me ocorrido: aconteceria ou teria acontecido uma troca de casais, fortemente sugerida no capítulo CXVIII – A mão de Sancha, que antecede a morte de Escobar e no qual todos participam de um serão. Na cena, bem significativa, Capitu toca piano, e Bentinho e Escobar conversam à janela, que descortina a praia do Flamengo, sobre uma futura viagem dos quatro à Europa... Bentinho olha Sancha de longe, trocam laivos luminosos com suas pupilas, conspiram, segredam e, depois, apertam calorosamente as mãos: “Foi um instante de vertigem e de pecado”. Jamais esqueci este trecho, mas confesso que não voltei os capítulos (sugestão frequente do narrador, como a nos sinalizar a "ler melhor"), e os anos passaram, a vida escoou, novas leituras se me impuseram, como se fosse necessário maturar tal ideia para enfim resgatá-la e desenvolvê-la...

E então, recentemente, minha suspeita se tornou certeza, ao reler o trecho do capítulo X, bem anterior ao supracitado, em que Bentinho afirma aceitar a teoria do tenor-filósofo sobre a criação do mundo como uma ópera, cujo libreto foi escrito por Deus, e no qual satanás pôs a música. Nela, tenor, barítono, soprano e contralto duelam amorosamente uns pelos outros... E Bentinho conclui: “(...) aceito a teoria do meu velho Marcolini, (...) porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor...” Essas reticências dizem muito.

Ora, ora, se é indubitável que Capitu traiu Bentinho, é quase certo que ele a traiu também, com Sancha. Metaforicamente, está dito no capítulo 10: Bentinho foi uma dupla com Capitu; um trio com Capitu e Escobar; e um quarteto com estes dois, mais Sancha. Não fosse isso, qual seria o motivo desta inserção? Por que mencionar que os quatro formaram um quarteto, se, na condição de amigos, isso era óbvio? Foi mencionado exatamente para que um acréscimo metafórico fosse posto. Para que a polissemia do entrecho fosse ampliada. E por antecipação, sutilmente, de modo a não gerar suspeitas, mas ainda assim presente, ali, no terreno das possibilidades, aos olhos atentos e às mentes providas de frescor, que não se contentam apenas com o dito, o explícito, que esperam da literatura muito mais do que apenas “jornalismo” ou panfleto.

Machado é malicioso e irônico: ao mesmo tempo que insere uma informação importante, o faz de maneira a parecer que não é, que a oferta é só um dado en passant, um adereço de estilo ou um liame narrativo, que não temos por que absorver e que, de pronto, será esquecido, embora o tempo todo ele recomende: volte as páginas, caro leitor! O capítulo 10 é, portanto, a chave para decifrar o capítulo 118.

Conclusivamente, é isso: reli Dom Casmurro porque adoro esse livro; o prazer foi o motivo de ir à estante e pegá-lo, mas, com efeito, o que ele me proporcionou, mais uma vez, além da satisfação estética de um estilo brilhante e irretocável, foi o proveito de me encontrar de novo na condição de decifrador perseverante, o que é uma das maiores delícias que a literatura oferece: aquele momento em que achamos a “guloseima sagrada”, para usar a indefectível expressão de Roland Barthes; aquele momento em que o quarto escuro fica às claras e, cúmplices do Bruxo, sorrimos de viés, orgulhosos.

*Mayrant Gallo é escritor e professor. Autor de O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003) e Três infâncias (Casarão do Verbo, 2011).