Confissão da vez: advogado muda de versão após garantir que Cid implicaria Bolsonaro

Defensor de ex-ajudante de ordens do ex-presidente recuou após mencionar venda de joias

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  • Flavio Oliveira

Publicado em 19 de agosto de 2023 às 05:00

Tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid é alvo de inquérito aberto pela Polícia Federal Crédito: Lula Marques/ Agência Brasil

Menos de 24 horas depois de anunciar em diversas entrevistas que o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, confessaria ter participado da venda das joias presenteadas ao estado brasileiro para cumprir uma ordem do ex-presidente, o advogado Cezar Bittencourt recuou. A linha da defesa agora, apontou o criminalista, é a de que Cid vai assumir apenas a venda do Rolex para resolver um “problema” do chefe. A nova tese protege outros implicados no caso, como o próprio ex-presidente e o pai do ex-ajudante de ordens, o general Mauro Cesar Lourena Cid.

Essa linha, contudo, pode mais prejudicar que blindar o ex-presidente segundo advogados ouvido pela revista Veja, pois pode alimentar a suspeita de interferência do ex-presidente na decisão de Mauro Cid. Se houver indícios fortes, isso, em tese, aumenta o risco de prisão de Bolsonaro.

A revista foi a primeira a revelar a possibilidade de confissão geral e irrestrita de Mauro Cid. A venda das joias, segundo as primeiras declarações do advogado, foram a mando do ex-presidente, que teria inclusive ficado com o dinheiro. A entrevista rendeu reportagem de capa da edição que foi às bancas na noite da quinta-feira (17). E foi confirmada para outros veículos de imprensa. “Ele (Cid) confessa que (re) comprou as joias evidentemente a mando do presidente. Comprou e vendeu. ‘Resolva esse negócio e venda’, foi mais ou menos assim", disse. "Ele vai confessar o que ele praticou, comprou e vendeu, o atestado das vacinas. Ele vai confessar", completou Bittencourt ao jornal Folha de S. Paulo.

Na madrugada da sexta, diante da repercussão da matéria, Bittencourt procurou repórteres com quem havia falado para atenuar o conteúdo da entrevista. Em uma dessas ligações, para O Estado de S; Paulo, ele disse: "Não tem nada a ver com joias! Isso foi erro da Veja não se falou em joias [sic]".

À GloboNews, na sexta, Bitencourt negou ter falado que a negociação para venda no exterior de um relógio ocorreu “a mando do Bolsonaro”. O ex-presidente teria pedido apenas, segundo Bittencourt, para Cid “resolver o problema do Rolex”. “Para um bom entendedor meia palavra basta. Cid foi atrás para resolver a questão do Rolex”, afirmou o advogado, ao destacar que Cid é um assessor que apenas cumpre ordens.

Bittencourt ainda fez questão de pontuar que o pai de Mauro Cid não tem nada a ver com a história. “Não há nenhum risco, nenhum problema de prisão para o pai dele”, afirmou. Na mesma entrevista, o criminalista confirmou ter conversado com o advogado que representa o ex-presidente no caso.

Estratégia

Ainda segundo o Estado de S. Paulo, a confissão parcial do coronel Mauro Cid de que tentou comprar o relógio é uma estratégia de risco calculado. Há dispositivos na legislação que isentam de crime quem atua em “estrita obediência da ordem”. O artigo 22 do Código Penal e o artigo 38 do Código Penal Militar tratam expressamente da isenção de autoria. No entanto, ambos só se aplicam nos casos de ordem manifestamente ilegal.

É justamente no debate sobre a legalidade que Bolsonaro se apega, segundo interlocutores do ex-presidente ouvidos pelo jornal. Ao Estado de S. Paulo, o ex-presidente disse que não há ilegalidade no destino dado às joias, pois “personalíssimas”. O objetivo seria reabrir o debate sobre a natureza de determinados presentes e explorar uma suposta “área cinzenta” na regulamentação dos presentes. “O Lula sofre até hoje com isso. Todos os presidentes apanharam com relação a isso daí e eu tô nesse bolo”, disse.

O Tribunal de Contas da União (TCU) definiu em 2016 que apenas presentes personalíssimos, como bonés e camisetas, poderiam ser apropriados por presidentes. No voto, o relator deu como exemplo “esmeralda de valor inestimável” como item não personalíssimo. Contudo, não existiu uma lista geral de itens permitidos ou não.

Em 2018, o então presidente Michel Temer baixou a Portaria nº 56 que definiu “joias, semijoias e bijuterias” como itens de natureza personalíssima. A medida é posterior ao acórdão do TCU. No entanto, há uma corrente dominante que entende que a portaria não se sobrepõe à decisão do tribunal.

Contudo, a tese de que a portaria, revogada por Bolsonaro em 2021, prevalece sobre o TCU tem sido propagada por aliados do ex-presidente. Bolsonaro a citou na entrevista ao Estadão. “A portaria vale pelo menos até a data que ela vigiu. Quando a portaria é revogada, no meu entender tem uma vacância (de normas)”, afirmou.

O TCU voltou ao tema em março deste ano e referendou o entendimento anterior. Na oportunidade, ressaltou que além de personalíssimo um item precisa ter “baixo valor monetário” para ir a acervos privados de presidentes.

Caso Bolsonaro e defesa consigam emplacar no Judiciário a tese da “vacância” de regulamentos, o ex-presidente, Lourena Cid e Mauro Cid não seriam impactados criminalmente nesse caso.

Com agências

Entenda o caso

O tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid foi preso preventivamente em 3 de maio. Ele é acusado de envolvimento na fraude de cartões de vacinas anticovid que beneficiou ele, sua esposa, o ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem foi ajudante de ordens por todo o mandato, a ex-primeira-dama Michelle e a filha do casal, Laura.

A quebra de sigilos telefônicos (ligações) e telemáticos (conversas e arquivos em aplicativos como Facebook e WhatsApp) autorizada pela Justiça revelou o envolvimento do militar tanto em uma suposta trama golpista quanto em presumido esquema de joias presenteadas ao estado brasileiro e que estavam de posse do ex-presidente.

No primeiro caso, foi encontrada uma minuta que descrevia passo a passo de ações para impedir a posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Foram recolhidas, também, conversas com outros militares sobre a possibilidade de um golpe de estado para manter Bolsonaro no poder.

As investigações prosseguiram até o último dia 11, data em que foi deflagrada a operação Lucas 12:2, da PF, que levantou indícios da participação do tenente-coronel, e de seu pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid, amigo e contemporâneo do ex-presidente na Academia Militar dos Agulha Negras (Aman), na venda das joias, entre elas um relógio Rolex nos Estados Unidos. As joias foram levadas àquele país no mesmo avião que transportou Bolsonaro e seu staff para um ‘autoexílio’ que durou de dezembro de 2022 até março deste ano

Em um dos grampos autorizados pela Justiça, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro comenta sobre a venda do relógio e da entrega de recursos provenientes em dinheiro vivo ao ex-presidente. O Rolex, segundo apuração da PF, foi vendido por US$ 68 mil, dinheiro depositado na conta de seu pai general. A apuração também aponta que Cid se envolveu na operação de recompra do bem pelo advogado Frederick Wassef. O bem foi entregue ao Tribunal de Contas da União (TCU). Wassef representa Jair Bolsonaro em diversos processos judiciais

A inclusão do pai general no rol dos suspeitos pela PF aumentou a pressão sobre Mauro Cid, que trocou de advogado. A nova linha da defesa sustenta que Cid, como bom militar, apenas cumpria ordens. Uma espécie de resposta à defesa adotada por Bolsonaro, que argumenta que Cid tinha autonomia e teria agido sozinho e sem conhecimento do ex-presidente, seja no caso dos cartões, seja no das joias. 

Em entrevista à revista Veja, na quinta (17), o advogado criminalista Cezar Bittencourt, que assumiu a defesa do tenente-coronel, afirmou que seu cliente confessaria sua participação na venda das joias a mando de Bolsonaro. No dia seguinte (sexta, 18), Bittencourt recuou e disse que não falou em joias, e que a confissão se dará apenas para a venda do Rolex. Mas sustentou que o dinheiro dessa venda foi entregue ou a Jair ou a Michelle Bolsonaro. Em entrevista à GloboNews, o criminalista admitiu que conversou com o advogado do ex-presidente depois da publicação da revista, mas não associou o recuo no teor da confissão a essa conversa.