Conheça equipe baiana de futebol de amputados e regras da modalidade

Associação Baiana de Desportos Adaptados (ABDA) foi criada em 2017 e hoje conta com três times e cerca de 45 jogadores

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 21 de outubro de 2023 às 05:00

Campeonato Baiano de Futebol de Amputados acontece neste final de semana, em Salvador
Campeonato Baiano de Futebol de Amputados acontece neste final de semana, em Salvador Crédito: Marina Silva/CORREIO

Os holofotes ligados e a porta da quadra aberta indicam que o jogo vai começar. Fora das quatro linhas, estão elementos comumente presentes em uma partida de futebol: coletes, garrafas de água e bolas reservas. Mas um outro conjunto chama a atenção: as próteses de pernas. Deixadas de lado, elas ocupam o banco de reservas e são substituídas pelas muletas. No futebol de amputados, as ferramentas que auxiliam a locomoção viram também equipamentos esportivos, dividindo protagonismo com a bola e as chuteiras que, percorrendo a quadra, ganham os olhares atentos de quem assiste aos movimentos orquestrados do esporte mais popular do mundo.

Mesmo não podendo encostar na bola de forma proposital, são as muletas que permitem que os jogadores corram pela quadra. Foi com elas que o baiano Luciano Reis, que teve a perna direita amputada aos 11 anos, pode continuar fazendo aquilo que mais ama. Com o sonho de ser um grande jogador e só encontrando esperança em outros estados, ele fundou a Associação Baiana de Desportos Adaptados (ABDA).

“O desejo sempre foi ir além do futebol, a gente queria ser um meio de cuidar das pessoas. Iríamos treinar, jogar, disputar campeonato, mas sempre com a mentalidade de que um título não era tão importante quanto uma pessoa com deficiência feliz, realizada e integrada à sociedade. A associação vem com a proposta de ser um norte tanto para o amputado quanto para a sua família”, explica Luciano que, além de fundador e diretor da ABDA, é um dos jogadores da equipe.

ABDA foi criada em 2017 e atualmente agrega mais de 40 jogadores
ABDA foi criada em 2017 e atualmente agrega mais de 40 jogadores Crédito: Marina Silva/CORREIO

A Associação nasceu em 2017, com o time Tigres. Em 2018, chegou o time Bahia, através de uma parceria com o Clube e, em 2022, o time Vitória. Hoje, ela reúne cerca de 45 jogadores, que treinam juntos nas quintas, sextas e sábados, em quadras espalhadas pela capital, sob o comando dos treinadores Ibsen Argollo e Hugo Aparecido. A inspiração de Luciano veio da Associação Niteroiense de Deficientes Físicos (Andef), o primeiro time de futebol de amputados do Brasil, criado em 1986, do qual ele já fez parte.

O esporte surgiu na década de 1980 e teve o primeiro torneio internacional realizado nos Estados Unidos, há 38 anos. Segundo a Federação Mundial de Futebol para Amputados (WAFF, na sigla em inglês), a modalidade é praticada, atualmente, em 50 países, sendo seis deles da América do Sul. Em 1989, o Brasil estreou na Copa do Mundo, obtendo o terceiro lugar. Hoje, a seleção acumula quatro títulos mundiais, conquistados em 1999, 2000, 2001 e 2005.

Em fevereiro deste ano, o vencedor do Prêmio Puskás de gol mais bonito da temporada foi um jogador amputado, o polonês Marcin Oleksy, do Warta Poznan (POL).

De acordo com a Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV), cerca de 85 brasileiros por dia tiveram pés ou pernas amputados na rede pública de saúde entre janeiro de 2012 e maio de 2023.

“Não bastava ser bom, eu tinha que ser o melhor” - Luciano Reis, 44 anos

Luciano passou por SP, RJ e MG antes de fundar equipe baiana
Luciano passou por SP, RJ e MG antes de fundar equipe baiana Crédito: Marina Silva/CORREIO

Foi jogando bola na rua onde morava que Luciano foi atropelado por um carro e teve o membro inferior comprometido. O que mais se recorda de escutar, inclusive de médicos, é que não poderia mais jogar. “No início eu achava que era um coitado, fiquei envergonhado e não queria sair na rua. Mas, logo depois, me reergui. Com a muleta, ia andando devagarzinho, comecei a caminhar mais rápido e a correr, caindo e levantando, até que voltei a jogar”, conta o jogador, hoje aos 44 anos.

A adaptação física, no entanto, não foi o principal obstáculo. “Ninguém queria me escolher para o time e aquilo me doía, então eu vi que não bastava eu ser bom, eu tinha que ser o melhor. Infelizmente, eu tive que tirar forças da discriminação. As pessoas me subestimavam e aquilo mexia com o meu ego, me motivava, porque eu queria provar que eu podia”, revela Luciano.

“Num jogo que participei numa cidade do interior, de inauguração de um estádio, caí no time do prefeito e, na hora, ele falou: ‘com esse capenga no meu time eu não jogo!’. Acabei indo para a outra equipe e, em cinco minutos de jogo, fiz um gol. O cara não gostou, foi embora, os amigos dele foram junto e o jogo acabou por conta disso”, relata.

Foi somente aos 30 anos que Luciano descobriu, pela internet, um time de futebol de amputados no Rio de Janeiro. “Achei que ia ser mole porque na Bahia eu jogava com o pessoal de duas pernas, mas não foi bem assim; eram muitos craques de bola, muita gente boa”, diz. Ele ainda passou por Minas Gerais e São Paulo, chegando a ser vice-campeão da Copa do Brasil pela Ponte Preta, antes de voltar a Salvador, em 2012, e começar a colocar em prática o sonho de formar a equipe baiana, que só se concretizou cinco anos depois.

Por não integrar o programa da Paralimpíada, o futebol de amputados não tem acesso a recursos via Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), nem os atletas se enquadram no Bolsa Atleta federal. Pela falta de patrocínios consistentes, a maioria dos times não pagam salários aos jogadores, o que não é diferente na ABDA. “Os esportes praticados por pessoas com deficiência são extremamente desvalorizados, a própria paralimpíada recebe muito menos atenção do que a olimpíada, não tem nem comparação”, desabafa o jogador, que comanda a ABDA através de pequenos patrocínios que servem para possibilitar a participação em campeonatos e a manutenção de uma casa alugada que acolhe atletas de fora de Salvador.

Mesmo tendo passado por times de outros estados, Luciano diz nunca ter ganhado dinheiro com o futebol. Durante todos esses anos, sempre teve empregos paralelos para poder se sustentar. “O futebol me deu muito, mas não me deu dinheiro. Tudo o que eu conquistei na vida foi trabalhando mesmo. Já fui cobrador de ônibus, operador de caixa em mercado, auxiliar administrativo. Hoje trabalho em dois colégios, como administrador do setor de educação física e também dando aula na área”, conta.

 “Tive mais medo de amputar e ficar sem jogar do que de morrer” - Cauan Souza, 19 anos

Apesar de seguir jogando, Cauan trocou o sonho de ser atleta profissional pelo de ser fisioterapeuta
Apesar de seguir jogando, Cauan trocou o sonho de ser atleta profissional pelo de ser fisioterapeuta Crédito: Arquivo Pessoal

Cauan Souza, de 19 anos, é um dos atletas acolhidos por Luciano. Também apaixonado pelo futebol, ele teve a perna direita amputada aos 16 por conta de um osteossarcoma – tipo de câncer ligado ao comprometimento ósseo – e, diferentemente do fundador da ABDA, quase deixou se apagar o brilho nos olhos em relação ao esporte.

“Depois de descobrir o câncer, tive mais medo de amputar a perna e ficar sem jogar do que de morrer. Quando me falaram do time de amputados, achei besteira, que era coisa de consolo. Eu não queria consolo, queria jogar de verdade. Depois é que eu fui conhecendo melhor e vendo que era coisa séria e que me fazia bem”, diz.

Pela equipe baiana, Cauan já participou de competições, inclusive fora do estado. Em São Paulo, disputou a Copa do Brasil e, em Fortaleza, o Campeonato Brasileiro. Ele começou jogando pelo Bahia, mas virou a folha para defender o seu time do coração: o Vitória. Desde criança, frequenta com o pai o Barradão e diz ser completamente aficionado pelo time. “Eu respiro futebol o dia todo. Vou ao estádio, assisto os jogos pela televisão, vejo notícias, assisto às entrevistas dos jogadores, leio sobre a história deles”, conta.

Filho de um segurança e uma operadora de caixa de um armazém, Cauan sempre sonhou em ser um jogador profissional. Depois da amputação, ficou feliz em poder continuar jogando, mas passou a ver o sonho cada vez mais distante. “Infelizmente, não dá dinheiro. Só dá para pessoas que se destacam muito mesmo; é ainda mais difícil do que no futebol comum. Não tem incentivo, investimento, nem destaque na mídia”, desabafa. O sonho foi adaptado e, hoje, Cauan quer ser fisioterapeuta. Enquanto espera o início do curso, trabalha como auxiliar administrativo.

“O futebol me faz feliz e é algo que quero manter na minha vida” - Lucas Santos, 18 anos

Lucas mantém sonho de ser jogador de futebol profissional
Lucas mantém sonho de ser jogador de futebol profissional Crédito: Marina Silva/CORREIO

Lucas Santos, de 18 anos, ainda mantém o brilho nos olhos e o plano de viver de futebol. Ele teve a perna esquerda amputada aos cinco anos, após complicações decorrentes de um erro médico. Por ser muito pequeno na época, acredita ter sido menos complicado do que para outros amputados. “Eu não lembro de muita coisa, mas lembro que eu mesmo escolhi amputar. O médico disse que eu poderia deixar ela assim (sem movimento) ou tirar, e eu escolhi tirar. Lembro de meus amigos tristes no início, mas logo depois tudo voltou praticamente ao normal”, diz.

Lucas usou muletas até os 12 anos, quando ganhou uma prótese. Foi justamente a felicidade que o novo equipamento gerou que o afastou do futebol de amputados logo de primeira. “Com a prótese, eu comecei a fazer fisioterapia e foi lá que eu descobri que existia o time de amputados. Aí eu vi que lá eu não podia usar a prótese, as pessoas jogavam com as muletas, e aquilo me desmotivou um pouco porque eu jogava com a prótese com os meus amigos”, conta.

O jogador, que é do time do Vitória, é o mais novo da equipe, que não é dividida por idade. Ainda assim, Lucas diz ter se enturmado e feito amigos. Mesmo se afastando dos treinos no começo, está de volta. “Antes do futebol, eu fazia capoeira e boxe. Eu gosto muito de esporte e, hoje, o futebol me faz feliz e é algo que eu quero manter na minha vida”, finaliza.

Campeonato Baiano de futebol de amputados

No calendário nacional e internacional, estão disputas como Copa do Mundo, Copa América de Seleções, Sul Americana de Seleções, Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil. Há ainda os campeonatos regionais, como a Copa do Nordeste, da qual os times da ABDA participam. No cenário estadual, somente em 2019 a Bahia passou a ter o Campeonato Baiano. De lá para cá, foram apenas duas edições, já que, em 2020, a disputa não aconteceu por conta da pandemia de covid-19 e, em 2022, por falta de recursos financeiros.

Em 2023, o Campeonato acontece neste final de semana na Arena Imbuí, em Salvador, tendo iniciado a fase classificatória na sexta-feira (20). São quatro times (Tigres, Bahia, Vitória e SSA) e cerca de 50 jogadores. Neste sábado (21), há jogos às 10h30, às 11h30 e às 15h30. No domingo (22), acontece a grande final, às 10h. O acesso é liberado para quem quiser assistir às partidas.

Conheça as principais regras do futebol de amputados:

  • Em cada lado, são sete jogadores com amputações ou má formação nos membros inferiores (os seis de linha) ou superiores (apenas goleiros, que não podem sair da área)
  • As partidas são disputadas em dois tempos de 25 minutos, com 10 minutos de intervalo
  • A quadra tem 60 por 40 metros
  • Os gols possuem dois metros de altura por cinco de largura
  • As muletas não podem tocar na bola de forma intencional
  • Os atletas não podem tocar na bola de forma intencional com as partes da perna amputada (ou do braço, no caso dos goleiros)
  • O lateral é cobrado com o pé e não com as mãos
  • O tiro de meta não pode ultrapassar o meio campo
  • Não há limite para substituições e os jogadores substituídos podem voltar ao jogo sem necessidade de parar o tempo, com a exceção do goleiro, que precisa que o cronômetro seja parado para ser substituído

Essa pauta foi inspirada pelo Programa Correio de Futuro 2023, parceria com a Universidade Salvador (Unifacs), sob a coordenação dos professores Antônio Netto e Kátia Borges. Os alunos da turma de Produção de Conteúdos em Multiplataforma participaram de oficinas com editores da redação entre março e agosto de 2023. A equipe, composta por Gabriel Lemos, Gabriel Ribeiro, Juliana Brito, Kelly Bouéres, Onã Rudá, Pohema Profeta, Rafaela Kalil, Raquel Souza e Thiago Ramos, apresentou o seguinte produto: https://fut7deamputados.wixsite.com/futebol-society-de-a