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Thais Borges
Publicado em 8 de julho de 2023 às 05:00
A busca do químico americano James Schlatter, então com 23 anos, era por uma droga contra úlcera. No entanto, no meio do processo, tudo mudou com um fragmento de proteína conhecido como aspartame - algo que, até então, ele não tinha dado importância. Em dezembro de 1965, Schlatter aquecia o aspartame em um frasco com metanol quando um pouco da substância atingiu a parte externa do fraco.
Uma parte do pó também caiu em seu dedo. Um tempo depois, o químico lambeu o dedo para pegar uma folha de papel e sentiu um gosto muito doce. Achou até que fosse resto de açúcar do café da manhã. Mas não era. Ele tinha lavado as mãos, então aquilo não fazia sentido. Schlatter acabou ligando o gosto do dedo ao pó que caíra do lado de fora do frasco de aspartame. “Provavelmente não era tóxico e provei um pouco. Descobri que aquela era a substância no meu dedo”, contava, na época, segundo a imprensa local.
De uma descoberta acidental em laboratório, o aspartame passou a ser um dos adoçantes mais presentes na vida das pessoas, muito graças ao fato de ser 200 vezes mais doce que o açúcar comum. Quase 70 anos depois, ele tem adeptos famosos como a Coca-Cola Zero e o Guaraná Antarctica Zero, mas vai muito além disso: o aspartame está presente em sucos industrializados, sorvetes, pudins e até chicletes. Só que, agora, em julho de 2023, ele está no centro das discussões científicas pela expectativa de ser apontado como "possivelmente cancerígeno".
A declaração deverá vir na próxima sexta-feira (14), em um relatório da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc, na sigla em inglês), um dos órgãos de pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em maio, a OMS já tinha publicado outra diretriz que incluía o aspartame: na ocasião, a entidade indicou que adoçantes não devem ser usados como substitutos ao açúcar para controlar o peso ou reduzir doenças crônicas não transmissíveis.
Agora, resta saber os detalhes - por exemplo, se o aspartame ficará no primeiro grupo, dos comprovadamente carcinogênicos, que inclui o tabaco e as carnes processadas (embutidos em geral, como presunto e salsichas), ou no segundo grupo, que se divide entre as substâncias "provavelmente cancerígenas"e "possivelmente cancerígenas" para humanos.
Diante de toda a movimentação e os estudos dos últimos anos, essa provável classificação não é exatamente uma surpresa para os especialistas da área, como explica a chefe da unidade técnica de Alimentação, Nutrição, Atividade Física e Câncer do Instituto Nacional do Câncer (Inca), Luciana Maya.
"A Iarc já tinha pesquisado algumas substâncias como a sacarina e o ciclamato de sódio, mas são pesquisas muito antigas, de 1999. O próprio aspartame nunca vinha sendo avaliado, mas vinha como prioridade", explica.
Pesquisas
Uma possível conexão do aspartame com o câncer vem sendo alvo de muitas pesquisas ao longo dos anos. De forma geral, ao redor do mundo, há resultados controversos, como pondera Luciana Maya, do Inca. Há aqueles que apontam aumento de risco enquanto outros falam de efeito de possível risco. Isso acontece, segundo ela, porque é difícil quantificar o quanto a população consome de aspartame. A presença de mais de um aditivo nos alimentos ultraprocessados é um dos complicadores. “Avaliar o efeito de uma substância isolada não é fácil”, diz Luciana.
Ainda assim, algumas pesquisas nos últimos anos têm sido definitivas, em especial, para relacionar o aumento de risco dos cânceres ligados à obesidade. Uma coorte - um tipo de estudo populacional - que acompanha 100 mil franceses, por exemplo, observou o efeito de risco dentre cânceres de forma geral e, em especial, nos relacionados à obesidade, em uma publicação no ano passado. Existem ao menos 13 cânceres relacionados à obesidade, segundo o Inca, incluindo os de esôfago, estômago e intestino.
Apesar disso, saber como ocorre exatamente o aumento de risco para o câncer é algo que deve ser divulgado no documento da agência. “Quando a Iarc traz as atualizações, ela descreve como a substância age no organismo levando ao aumento do risco. Isso ainda temos que aguardar”, acrescenta Luciana.
Mesmo assim, mesmo antes das recomendações da OMS, o Inca já advogava pelo não uso do aspartame. Isso acontece porque a instituição trabalha a partir da precaução, ainda que não haja clareza dos efeitos. "Como tem estudos que mostram o aumento do risco, mesmo ainda não sendo um consenso, a gente adota um princípio de precaução. Qual é a precaução? Não usar adoçante, de nenhum tipo", enfatiza.
Luciana Maya, do INCA
Cargo do AutorNo Brasil, um dos estudos foi o da nutricionista Claudia Cavassani, que pesquisou a ingestão de aditivos alimentares com potencial cancerígeno pela população, no mestrado em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade de São Paulo (USP). De acordo com ela, foram encontradas evidências dessa associação com o estímulo ao desenvolvimento de câncer, especialmente com a exposição por longos períodos e em altas doses.
"Outro ponto importante é que é comum a associação entre o consumo de aspartame com outros edulcorantes e/ou aditivos químicos, adicionados em um mesmo produto alimentício, refletindo no consumo associado de dois ou mais aditivos. No entanto, a segurança em relação a esta associação é pouco conhecida ou investigada", pondera Claudia.
Molécula
Uma vez descoberto, o aspartame foi lançado no mercado em 1981. Era muito consumido como adoçante de mesa, mas hoje é bem comum em produtos ultraprocessados. Os edulcorantes são justamente esses adoçantes artificiais, usados para dar palatabilidade a alimentos sem açúcar, como destaca a médica endocrinologista Isabella Magalhães, professora na Medicina FTC. “Em maio, a OMS já tinha vindo com a recomendação de não usar adoçante com o objetivo de redução do peso, ainda que tenha baixas calorias”, diz.
Uma vez consumido, o aspartame é hidrolisado e absorvido no trato intestinal, como explica a nutricionista Mariana Grilo, mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutoranda em Nutrição Aplicada pela George Washington University (EUA). Essa etapa libera metanol, ácido asiático e fenilalanina.
“O metabolismo do metanol começa no fígado, onde é primeiro oxidado a formaldeído e depois novamente a ácido fórmico. Além dos danos diretos que o metanol causa ao fígado, o formaldeído também é diretamente tóxico para as células do fígado e está associado a propriedades cancerígenas”, explica Mariana.
Um dos estudos que apontou o potencial carcinogênico feito em ratos mostrou que a exposição ao aspartame no começo da vida aumentou o risco de filhotes de ratos desenvolverem câncer. Ainda que os estudos em humanos existam em menor quantidade, os resultados das pesquisas com animais apoiam esses indícios. Ela também cita o estudo dos franceses, que sugeriria riscos específicos de desenvolvimento de câncer associado ao aspartame.
Os adoçantes, em geral, têm carbono, oxigênio e hidrogênio em suas moléculas. O contato com uma substância cancerígena pode levar ao aumento da expressão gênica de algumas enzimas que têm relação com mutações que impedem a morte celular programada, por exemplo.
"Então, as células começam a se proliferar de forma desordenada e isso leva ao câncer. Mas é uma exposição prolongada e em excesso. Não quer dizer que tendo uma exposição baixa e a curto prazo, alguém vai desenvolver isso", diz a médica endocrinologista Isabella Magalhães.
Limites
Ainda assim, existe um limite de consumo considerado seguro para o aspartame. De acordo com a maior parte da literatura científica e dos órgãos de regulação, essa marca é de 40 mg/kg do peso corporal da pessoa. De acordo com a nutricionista Claudia Cavassani, esse valor é mantido no Brasil desde 1981, mas ela acredita que seria importante rever certas políticas de acordo com pesquisas mais atualizadas.
No entanto, mesmo no caso de pessoas que não podem ingerir açúcar, não seria motivo para pânico. "Se os edulcorantes, como o aspartame, caso necessário, forem utilizados esporadicamente e em pequenas quantidades, como em refeições de exceção e não na rotina do dia-a-dia, os riscos com a exposição tendem a ser menores. Edulcorantes considerados naturais, como stevia e xilitol, são melhores opções aos edulcorantes artificiais", afirma.
Só que não apenas pessoas com restrições de saúde recorrem aos produtos adoçados artificialmente. É cada vez mais comum que um público que não precise busque esses alimentos. No ano passado, uma pesquisa da Unicamp mostrou que 40% da população da cidade de Campinas (SP) tinha esse hábito - mesmo sem ter indicação para isso.
No entanto, para quem quer perder peso, por exemplo, o resultado pode ser o contrário. Como lembra a nutricionista Mariana Grilo, além de não ter capacidade de reduzir diabetes ou obesidade confirmada, já existem evidências que bebidas açucaradas e adoçadas artificialmente aumentam a sensação de fome. A consequência disso acaba sendo o ganho de peso.
“O Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda que a população em geral faça dos alimentos in natura e minimamente processados a base de sua alimentação, e que evite o consumo de ultraprocessados, como os alimentos e bebidas contendo edulcorantes, incluindo o aspartame”, diz.
Além disso, há quem consuma aspartame sem nem mesmo saber que está consumindo. A pesquisadora cita um movimento feito pela indústria de substituir açúcares por edulcorantes como estratégia de redução de açúcares, mas que isso nem sempre está evidente para os consumidores.
O que alguns países têm feito é tentar implementar estratégias para auxiliar a identificar nutrientes de preocupação para a saúde pública, de acordo com a pesquisadora. Isso, a longo prazo, pode promover um ambiente alimentar mais saudável e reduzir o consumo de ultraprocessados. No México, além de um símbolo de advertência em embalagens com alto teor de açúcar, sódio e gordura, é obrigatório informar que aquele alimento contém edulcorantes.
"No Brasil, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou uma nova norma de rotulagem nutricional. Segundo a nova norma, os rótulos deverão vir com uma lupa ilustrando as embalagens de produtos com alto teor de açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio. Porém, sem informação na parte frontal do rótulo para edulcorantes", diz Mariana.
O cenário ideal, porém, é não consumir nem açúcar, nem adoçante. Num suco, por exemplo, as especialistas recomendam que a pessoa sinta o gosto natural da bebida. Em último caso, porém, é possível recorrer a adoçantes naturais. "Se a pessoa fizer questão do gosto doce, a gente recomenda o natural, como a stevia e o xilitol", diz a endocrinologista Isabella Magalhães.
Indústria
Agora, há também uma expectativa de que a publicação da OMS provoque mudanças na indústria alimentícia. Algumas estratégias citadas pela nutricionista Claudia Cavassani são aumentar o investimento das empresas em pesquisas e emprego de aditivos naturais; melhorias nos processos de tecnologia; promoção do incentivo à prática da alimentação saudável, assim como a reformulação da rotulagem de alimentos.
"Os aditivos alimentares são importantes para os processos tecnológicos industriais. Do mesmo modo, com a rotina cada vez mais acelerada, a sociedade conta com a indústria alimentícia na fabricação de alimentos pouco processados, nutritivos e saborosos. Então, ambos os lados são favorecidos ao buscarem alternativas de equilíbrio para reduzir os impactos negativos causados pela utilização e ingestão excessivas de aditivos alimentares", acrescenta.
Procurada pela reportagem, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad) reforçou que o aspartame é um ingrediente seguro e que teria segurança comprovada por mais de 90 agências de segurança alimentar. A entidade também ponderou que é preciso aguardar a publicação final de uma revisão de estudos que deve ser divulgada pelo Comitê Conjunto de Especialistas em Aditivos Alimentares da OMS.
"É fundamental ressaltar que a International Agency for Research on Cancer (Iarc) não possui atribuição como órgão regulador de segurança alimentar. Sendo assim, a Abiad demonstra preocupação com as especulações preliminares sobre a opinião da referida agência, que podem confundir os consumidores sobre a segurança do aspartame", acrescenta, em nota.
Alimentação saudável pode prevenir câncer
Se há uma forma de evitar um câncer no futuro pela alimentação, é ter uma rotina balanceada de nutrientes. Quem explica isso é a chefe da unidade técnica de Alimentação, Nutrição, Atividade Física e Câncer do Instituto Nacional do Câncer (Inca), Luciana Maya.
“Uma alimentação saudável baseada em frutas, legumes, verduras, rica em vitaminas e minerais, além de ter antioxidantes e ajudar a controlar o peso, protege contra o câncer”, explica.
Ela reforça que, hoje, há câncer cuja relação com a obesidade já é conhecida. Além disso, é importante evitar alimentos como linguiças, salsichas, presuntos e embutidos em geral. “Esse tipo de alimento já é dado como carcinogênico porque, em seu processo, foram adicionados nitratos, nitritos e substâncias com potencial carcinogênico”, acrescenta.
Ela defende que agências reguladoras de saúde, no Brasil e no mundo, consigam agir diante das novas evidências científicas. “É um direito da população saber o que ela está consumindo, então, no mínimo, tem que ter uma advertência no rótulo, porque hoje muita gente consome sem saber que está consumindo”.
Além disso, para quem não quer aumentar o peso e acreditava que optar por adoçante era uma boa opção, a recomendação da médica endocrinologista Isabella Magalhães, professora da Medicina FTC, é que a pessoa busque um nutricionista para ter uma orientação mais direcionada.
“A gente recomenda não ter consumo em excesso de calorias, ou seja, ter uma alimentação balanceada. Uma boa dieta segundo alguns estudos é a mediterrânea, com baixo consumo de carboidratos refinados, além da prática de exercícios, boa noite de sono, boa ingestão de água e conseguir controlar o estresse”.
Cinco itens que estão na lista de cancerígenos da OMS:
1. Bebidas alcoólicas - incluídas e 2012
2. Implantes de cerâmica - 1999
3. Anticoncepcionais orais de estrogênio e progesterona - 2012
4 - Carnes processadas (embutidos) - 2018
5 - Tabaco (inclusive para fumantes passivos) - 2012