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Thais Borges
Publicado em 1 de agosto de 2020 às 05:37
- Atualizado há 2 anos
O grupo no Whatsapp reuniu amigos de infância e da adolescência. Virou uma distração para a fisioterapeuta aposentada Maria Esther de Azevedo, 70 anos, entre os afazeres da vida. Só que, entre uma mensagem e outra, começaram a surgir alguns textos duvidosos. Notícias alarmistas demais, verídicas de menos. Eram as hoje bem conhecidas fake news (na tradução literal, ‘notícias falsas’). “Eu divulgava algumas coisas, mas tem um primo e uma amiga que fazem parte e logo se incumbiam de verificar e diziam que era fake. Minha filha falava para eu ficar mais alerta e até meu neto, que é ligadíssimo, dizia. Hoje, eu estou mais atenta. De uns dois meses para cá, eu só compartilho depois que verifico que é verdade”, conta ela. Mas dona Maria Esther não é a única com dificuldade para identificar se algo que chega pelo celular é real ou não. Este ano, uma pesquisa do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS) mostrou que os idosos - pessoas com 60 anos ou mais - são os mais vulneráveis a acreditar nos conteúdos falsos.
Outras pesquisas tiveram resultados parecidos. Foi o caso de um estudo divulgado em 2019, por pesquisadores da Universidade de Princeton e da Universidade de Nova York. Depois de analisar publicações no Facebook nas últimas eleições presidenciais dos Estados Unidos, em 2016, eles perceberam que usuários com mais de 65 anos compartilhavam fake news até sete vezes mais do que grupos mais jovens.
Nem mesmo Madonna passou imune. Na quarta-feira (29), a Rainha do Pop, do alto de seus 61 anos, teve uma publicação marcada como fake news pelo próprio Instagram. Ela divulgou um vídeo que dizia que a cura para a covid-19 era a cloroquina e que o uso de máscaras era desnecessário para se proteger do coronavírus. Assim, o próprio Instagram avisou que as informações eram falsas.
Foram algumas das notícias da pandemia que mais deixavam as coisas confusas para dona Maria Esther. “Tinha muitas notícias espetaculares no começo. Muita coisa sobre quantidade de óbitos, remédios preventivos. Depois que a gente divulga, vê que não é verdade e aí tem que pedir desculpas. Agora, meu conselho é sempre aguardar para saber se é verdade. Qualquer coisa, pergunta no privado a alguém”, recomenda.
Diálogo Perguntar ou pedir ajuda a outra pessoa é uma das principais recomendações de especialistas. Porém, segundo a pesquisadora Nina Santos, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), as pesquisas sobre fake news costumam apontar uma certa resistência à correção da informação. Ou seja, que ações como das agências de checagem acabam tendo pouca efetividade.
Uma das explicações seria a própria rapidez com que as fake news se espalham, mas há também o fato de que nem sempre as pessoas estão dispostas a acreditar no que as agências estão checando. No entanto, com idosos, essa resistência diminui. O diálogo é mais fácil. “Muitas vezes, a disseminação de fake news não é necessariamente por agenda política ou alinhamento político muito claro, mas pela falta de hábito de lidar com informações naquele ambiente. Isso é um alerta para que outras faixas etárias tenham um pouco de paciência e não confundam essas pessoas com mal intencionadas”, explica Nina. Por não terem sido alfabetizados para construir sociabilidade em ambientes digitais, idosos têm menos familiaridade com os formatos criados nas redes. Isso porque, apesar da tradução literal para “notícias falsas”, fake news não são apenas textos - podem ser áudios, vídeos ou até memes.
É comum, entre eles, questionamentos como: ‘ah, mas tenho que desconfiar de tudo?’. Isso acontece, de acordo com Nina, porque são pessoas que cresceram num ambiente de comunicação com poucos emissores.
“E em geral, as informações da TV e do rádio eram verdade, fruto de um processo jornalístico. Mas você começa a receber informação de um monte de gente e não sabe como checar. A mudança é grande, por isso vários estudos apontam a media literacy (alfabetização midiática)”, analisa.
Nina é uma das autoras do estudo Ciência Infectada, do INCT.DD em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo e o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário, que analisou 11 mil vídeos no YouTube que tinham a palavra ‘coronavírus’.
Na pesquina, três elementos foram identificados. “Vimos que as fake news sobre o coronavírus circulam muito associadas a teorias conspiratórias, como de que seria um esquema mundial, algo liberado pela China. Também são muito associadas a canais religiosos, sobretudo os que apontam como praga divina ou punição de Deus”, exemplifica.
E, por fim, há um terceiro papel que é uma rede formada em torno do discurso médico. São pessoas ou grupos que se concentram na imunidade como se ela fosse capaz de prevenir o coronavírus. A partir de hábitos saudáveis, a pessoa estaria protegida. Muitos desses grupos aproveitam esses conteúdos para vender produtos como cursos online e suplementos alimentares. “Mas a gente também percebe que a pandemia teve uma busca maior pela informação confiável, de meios consolidados na sociedade. Essa busca cresce muito a parte de março, quando a pandemia é declarada e os protagonistas são os meios de comunicação tradicional e alguns comunicadores ligados à divulgação científica, como (o biólogo) Átila Iamarino”, pondera. Cuidados A arte-educadora Genira Góes, 67, acredita que consegue ter mais facilidade em identificar fake news hoje justamente por usar a internet há muito tempo. O primeiro computador veio quando a filha ainda estava na sétima série do Ensino Fundamental. Hoje, a filha tem 35 anos. Ela passou pelos emails, pelos chats e pelo Orkut até chegar nas redes sociais que usa hoje - Whatsapp, Facebook, Instagram e YouTube, onde costuma acompanhar aulas de inglês.
“Quando eu vejo, fico logo desconfiada, para não fazer essas besteiras que o pessoal da terceira idade faz. Sempre gostei de computador, sempre fui espertinha para essas coisas. E logo aprendi que tem aquele Boatos.org. Sempre que tenho uma dúvida, vou lá dar uma olhada”, conta.
Mesmo assim, ela admite que pode ter caído em alguma fake news, especialmente nos primeiros anos do Whatsapp, que começou a se popularizar no Brasil na década de 2010.“Foi assim até entender o que estava acontecendo e ver que querem que você faça papel de besta. Eu tenho uma irmã de 73 anos que é danada para divulgar. O que ela vê passa adiante, não faz reflexão. Vivo reclamando. Meu conselho é sempre perguntar ao pessoal mais novo”, orienta.De fato, para o psicólogo Mateus Vieira, especialista em saúde da pessoa idosa e professor da UniFTC, é importante que os idosos não sejam considerados vilões na propagação das fake news. “Alguns autores chamam os idosos de imigrantes digitais, porque precisam se adaptar para lidar com as tecnologias de forma constante. Esses dados revelam uma vulnerabilidade”, afirma.
A sugestão é de que a família e os amigos ajudem orientando, com uma abordagem acolhedora. Para ele, é preciso ter em mente que os idosos são pessoas com a cognição preservada, ainda que com eventuais perdas inerentes do envelhecimento. “O próprio Estatuto do Idoso, de 2003, fala que o acesso à internet é essencial para que exerçam a cidadania. Não podemos, em hipótese alguma, pensar em retirá-los ou estigmatizá-los”.
Além disso, é preciso entender que divulgar uma informação falsa pode ter consequências judiciais. Hoje, em tese, não é crime divulgar fake news - ou uma notícia fraudulenta, como destaca o advogado Eurípedes Brito Júnior, professor de Direito Digital e Ética Profissional da Universidade Católica do Salvador (Ucsal).
“As pessoas estão vendendo opiniões como se fossem notícia. Minha mãe, que é idosa, não vai verificar se é verdadeira ou não. Ela repassa para o grupo de família como se fosse uma verdade”, diz.
Por outro lado, se houve algum crime no conteúdo que estiver sendo compartilhado, é possível que a pessoa seja responsabilizada por isso. “É preciso apurar. Se a pessoa publica ou até recebe e não apaga fotos de crianças com material pornográfico ou exposição de outras pessoas, por exemplo, é crime. Também chamar alguém de criminoso sem ser pode configurar uma denunciação caluniosa. Então, a melhor forma de se proteger é ter paciência e não repassar de qualquer jeito tudo que recebe”, reforça.
As fake news mais compartilhadas sobre covid-19 analisadas pelo Projeto Comprova, do qual o CORREIO faz parte
1. Página dizia que há consenso no tratamento da covid-19 O conteúdo teve pelo menos 1,7 milhão de interações.
2. Vídeo sugere tratamento‘sem sofrimento’ Com mais de 1,25 milhão de interações, material tinha informações sem comprovação.
3. Vídeo afirma que hospitais estariam provocando mortes Esse conteúdo falso teve pelo menos 1,3 milhão de interações.
4. Vídeo usava imagens de aglomeração na Suíça para dizer que pandemia é farsa Imagens eram reais mas descontextualizadas. Compartilhado 1,1 milhão de vezes.
5. Vídeo dizia que cloroquina é alvo de conspiração a favor do remdesivir Conteúdo falso teve mais de 1,03 milhão de interações.
6. Vídeo faz acusações conspiratórias sobre a pandemia O material foi compartilhado pelo menos 901 mil vezes.
7. Texto diz que governadores e prefeitos usam covid-19 para burlar a lei Sem evidências, teve 819 mil interações.
8. Pesquisadores teriam usado dose para matar pacientes e atacar cloroquina Afirmação falsa foi compartilhada 816 mil vezes.
9. Áudio de suposto médico do Rio defendendo o fim da quarentena Também foi compartilhado pelo menos 816 mil vezes.
10. Vídeo diz que controle da pandemia no Senegal seria por cloroquina Conteúdo enganoso teve 700 mil interações.