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Priscila Natividade
Publicado em 3 de janeiro de 2021 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
Em um mesmo mês Salvador perdeu quatro grandes livrarias. No final de setembro, algum leitor assíduo que, por muitas vezes, se sentou naquela poltrona e leu durante uma tarde inteira o livro que queria, antes de comprá-lo (ou não) se surpreendeu com a notícia do encerramento de todas as operações da Saraiva na Bahia de uma vez só, em apenas três dias. Na véspera de virar a página dessa história, o fim das megastores ganhou posição no trending topics nacional do Twitter e filas enormes se formaram em frente às lojas instaladas nos principais shoppings da capital. Foto: Thais Borges/Arquivo CORREIO Após 13 anos, um dos grandes players do mercado varejista livreiro deixou Salvador. Será o fim de uma era? Na verdade, o setor começa a escrever novos capítulos após acumular prejuízo, queda nas vendas e processos de recuperação judicial, envolvendo não apenas a Saraiva, mas a Livraria Cultura, outra gigante com quem ela dividia o mercado. Na Bahia, a Cultura resiste com uma loja bem mais reduzida do que a inaugurada em 2010, no Salvador Shopping.“O que aconteceu foi um movimento de implosão interna. O segmento promoveu a concentração em duas grandes empresas e acabou perdendo sua essência, em troca de uma livraria que tinha uma série de outros serviços, as megastores”, explica o presidente do Conselho Regional de Economia (Corecon-BA), Gustavo Casseb Pessoti.Em um dos planos de restruturação apresentado aos credores, a Saraiva propôs o fechamento de 44 das 57 lojas que permaneceram abertas no país para diminuir o peso de mais de R$ 595 milhões em dívidas. Já a Cultura deve R$ 285 milhões aos credores. Juntas, as empresas que lideravam o setor acumulam um débito de quase R$ 1 bilhão. O CORREIO procurou as duas redes para comentar a situação atual de cada uma. A primeira informou que não se posicionaria sobre o assunto e a segunda, disse que a diretoria estava em recesso.
Fatores Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o segmento de livros do varejo baiano em 2020 registra o pior desempenho dos últimos anos, com quedas de -44,1% no mês e de 42% no acumulado de janeiro a outubro.
Em compensação, a última pesquisa com o Painel do Varejo de Livros no Brasil, realizada pela Nielsen Book e divulgado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) traz números que voltam a animar o segmento, a partir de dados coletados diretamente do caixa das livrarias, e-commerce e varejistas colaboradores. Só durante a campanha da Black Friday, entre os dias entre os dias 02 e 29 de novembro, o setor editorial registrou no Brasil a venda de 4,11 milhões de livros e um faturamento de R$ 154,67 milhões.
“Um desses fatores é o e-book que tira um percentual, mesmo que pequeno, do livro físico. Outro ponto está no crescimento do e-commerce. Tem também a questão das editoras, que passaram a ser distribuidoras. A oferta de descontos é mais um agregador à venda via lojas virtuais. O aprofundamento das redes sociais se soma ao conjunto - Face, Zap, Instagram, Twitter - que tiram o tempo de leitura”, diz Pessoti.
Para o jornalista, autor do livro de crônicas Erguer e Destruir e colunista do CORREIO, Paulo Sales, o formato das megastores não faz mais sentido em uma economia retraída.“Acompanho a trajetória da Livraria Cultura, por exemplo, desde que era apenas uma loja no Conjunto Nacional (SP). Era um um ponto de encontro de pessoas cultas, com interesses comuns. Ao se expandir tanto, ela perdeu um pouco dessa alma”, opina.Transformações Outro estudo divulgado pela Nielsen, Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o SNEL, aponta para o aumento de 115% em três anos no faturamento das vendas de e-books e audiolivros. Apesar representar somente 4% da fatia no mercado editorial brasileiro, o crescimento acelerado chama atenção: o acervo de obras digitais cresceu 37%.
A Amazon vem se consolidando com uma das personagens principais dessa fase de reconfiguração. A diversidade de oferta e rapidez de achar qualquer título em menos de 60 segundos na Loja Kindle (leitor de livros digitais da Amazon), mais o frete grátis são algumas das estratégias que mostram o poder que a empresa está exercendo no mercado editorial atualmente.
Encabeçados por livrarias físicas, editoras e alguns autores, diversos movimentos questionam o espaço que a hegemonia da Amazon está ocupando e o impacto na cadeia livreira. Publicado pela editora Elefante, um desses manifestos virou até livro.
A edição brasileira de Contra Amazon: e outros ensaios sobre a humanidade dos livros foi lançado durante a pandemia e traz 17 textos do escritor e crítico literário espanhol Jorge Carrión. Por mais contraditório que pareça, o livro está à venda também na própria plataforma da Amazon.“O digital e o físico são complementares. Existe um momento para cada tipo de livro e cada tipo de consumidor. A experiência do cliente é determinante”, defende o gerente-geral de Livros na Amazon Brasil, Alexandre Munhoz.Diretor da Livraria LDM, Primo Maldonado reconhece o desafio que é encarar o tamanho dessa concorrência. “Saímos do conceito de grande loja de rua para lojas vinculadas a espaços culturais, bem menores. Melhoramos o atendimento virtual e implementamos a entrega em casa de livros autografados. A disputa com os gigantes nem sempre é leal”, comenta. A LDM tem quatro lojas na Bahia.
Outros espaços Novos negócios ganham mercado com as redes sociais. A editora baiana SobreGentes nasceu de um perfil no Instagram. Dois livros foram publicados nos últimos cinco meses.“Quem vai ter lugar no mercado é aquele que identificar e entender o público deseja com qualidade de conteúdo e de forma”, afirma o fundador e editor da SobreGentes, Dan Maior.No caso da Livraria Boto-cor-de-rosa, que até 2017 tinha uma sede física na Barra, o movimento foi inverso. A loja migrou seu acervo para o digital. De acordo com a coordenadora da livraria, Sarah Rebecca Kersley, o online foi a saída para manter as vendas, principalmente, nos últimos meses.
Ainda que o digital não se compare com a sensação perambular pelas prateleiras e dialogar com livreiros em uma livraria física, no mundo virtual, um link leva a outro. “A tendência ajudou todo o mundo a conhecer novos livros, autores e editoras do Brasil e fora dele, que, talvez, nunca acharíamos nas megastores”.
Com três livros publicados, entre eles, o título Acredite na sua Capacidade de Superar, o escritor baiano e colunista do CORREIO, Edgard Abbehusen, afirma que o cenário fortalece não só a democratização do acesso aos conteúdos, mas também o da produção.“A reinvenção acontece no mercado, nas editoras e em nós, escritores. Seja em uma editora grande ou de forma independente, a gente tem onde vender. Antes, para começar, tinha que conhecer alguém ou ter a sorte de ser encontrado. As redes sociais facilitam o caminho”, complementa.O presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Vitor Tavares, destaca que a mudança não tem volta. Esse ano, a Bienal do Livro de São Paulo, organizada pela entidade, aconteceu entre os dias 7 e 13 de dezembro de forma totalmente virtual. Toda a programação de palestras, inclusive, pode ser assistida pelo site www.bienalvirtualsp.org.br até o dia 13 de janeiro. No portal há também uma loja virtual.“A reconfiguração vinha acontecendo antes mesmo da pandemia. A mudança é inevitável. O importante é que a venda seja feita tanto on como offline. Esse ano, a realização da Bienal Virtual mostrou que não há limites físicos para difundir o livro e a literatura”.E o leitor? Dados da 5ª edição da Retratos da Leitura no Brasil divulgados recentemente demonstram que não só o mercado está se redefinindo, mas o próprio leitor. O estudo, realizado a cada quatro anos ouviu um total de 8.076 pessoas, em 208 municípios, entre eles, capitais como Salvador. O recorte mostrou que 34% comprou livros em papel ou formato digital. 17% já leram alguma obra digital e 22%, ouviram áudio books.
A universitária Camila Cunha, de 34 anos, chega a ler entre 15 a 20 livros no ano. A maioria deles, ela baixa na internet para ler no Kindle ou compra em sites. Livraria física só quando está com desconto. “Não acumulo mais livros na estante, apesar de amar o livro físico. Porém, não posso negar que o e-book tem o seu valor e é muito prático”.
Para os próximos capítulos, a ceo da AGR Consultores e especialista em varejo, Ana Paula Tozzi fala de recomeço. “O que vemos é uma substituição do modelo mega que tinha espaços com café e outras coisas, pelo o formato de lojas de bairro com nichos para públicos específicos. O modelo de negócio deverá se encontrar na fusão do físico com o digital, ou seja, o ‘Figital’”.
ESCARIZ E LEITURA APOSTAM NO MERCADO DE SALVADOR
Se por um lado, a capital baiana perdeu as megastores, novas redes enxergaram uma oportunidade de crescimento na lacuna deixada pela Saraiva no mercado baiano. A inauguração mais recente foi a segunda unidade da Leitura na capital, que agora além da loja no Salvador Norte Shopping conta com uma nova operação no Shopping da Bahia. “Inauguramos no dia 12 de Dezembro. Com esta loja a Leitura completa 80 lojas em 20 estados do Brasil. As lojas são adaptadas a realidade da cidade, mantém diversidade de livros com editoras e autores do estado”, afirma a sócia-gerente, Liliane Zebral.
A rede já estuda a expansão no no primeiro semestre de 2021 para outros pontos de Salvador. “A Leitura continua expandido com caixa positivo e lojas lucrativas. Em 2020 abrimos nove livrarias novas. O fechamento de livrarias em Salvador abriu novas oportunidades para expansão da rede”, ressalta.
Outra rede que se instalou em Salvador no final de 2020 foi a Escariz. A unidade fica no Shopping Barra estamento na mesma área que antes abrigava a megastore da Saraiva. Esta é a sexta loja do grupo e primeira fora de Aracaju (SE).
“Existe uma tendência de redução no tamanho das megas lojas, mas as livrarias devem permanecer como espaços culturais, lugar de encontros e possibilidade de folhear um bom livro. No nosso caso, estamos nos adequando a esse conceito”, pontua a diretora de vendas da rede, Fatima Escariz. Diferente da Leitura, o fico agora não está na ampliação do número de lojas, mas sim, em conquistar o cliente que mora na Barra e entorno. “Atenderemos através de múltiplos canais. Presencialmente, site, redes sociais e WhatsApp”.
O economista e presidente do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo (IBEVAR), Claudio Felisoni de Angelo acredita que o legado que fica do formato de megastores como a Saraiva é apenas os espaços híbridos.
“No modelo antigo, a dificuldade para sobreviver será muito grande. As livrarias com a presença que tinham, certamente, devem mudar em um horizonte muito próximo, como já estamos presenciando. No entanto, vejo que operações híbridas, que vão além de vender livros, podem fazer parte dessa reinvenção, mas investindo no aumento do convívio que a loja física é capaz de proporcionar”, pontua.