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Thais Borges
Publicado em 12 de junho de 2020 às 05:02
- Atualizado há 2 anos
Marcos, Rafaela, Luiz, Emanuel, Carlos Alberto. Diego, Jaime, Gilmar, Antônio Cesar, Rosana. Domingos, Wilson, Nilzete, Isaias, Clebson. Nestor, Raimundo, Jaqueline, Sérgio, Armando. Naildes, Arlete, Rosângela, Élcio, Antônio Élio.
Esses não são nomes aleatórios. Aqui estão apenas alguns dos nomes das mais de mil pessoas que perderam a vida pela covid-19 na Bahia, desde o dia 29 de março, quando a primeira morte foi registrada no estado. Nesta quinta-feira (11), atingimos mais um número amargo: a marca dos 1.013 óbitos pelo coronavírus.
A velocidade só aumenta. Enquanto demoramos exatamente um mês para chegar a 100 óbitos no estado, no dia 29 de abril, foram necessários apenas 42 dias para que acontecessem as outras 900. E especialistas alertam: essa escalada não deve terminar tão cedo. “Ainda vai aumentar. Não significa que vai haver um colapso na Bahia, porque estão abrindo novos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e de hospital de campanha, mas ainda estamos na curva de ascensão da incidência e da mortalidade, sem dúvida nenhuma”, analisa o infectologista Fernando Badaró, professor de Medicina da Unifacs e preceptor da residência médica e internato em Infectologia do Instituto Couto Maia. De fato, a previsão de grandes centros de pesquisa, como a da Universidade de Washington (EUA), é de que a Bahia chegue a 5.848 óbitos até o início de agosto, se medidas ainda mais duras não forem adotadas.
Os nomes aqui citados são alguns dos poucos que tiveram sua história conhecida pela sociedade. Por algum motivo, seus nomes foram parar no noticiário. Mas por trás das estatísticas divulgadas pelos órgãos de saúde, há histórias escondidas de cada uma das outras vítimas. Eram pessoas com nomes, com famílias, com trajetórias.
Eles moravam em 115 diferentes cidades brasileiras - 111 municípios baianos e outros quatro em estados como Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Tocantins. As mortes aconteceram em 56 cidades baianas - geralmente, os de maior tamanho e com mais serviços de saúde. Um exemplo disso é que, dos 779 óbitos registrados em Salvador, eram apenas 707 os residentes na capital.
O dia em que houve mais mortes, até o momento, foi 22 de maio, quando 43 pessoas morreram por covid-19 na Bahia. O número é mais do que o dobro de mortos no naufrágio da lancha Cavalo Marinho I, que matou 19 pessoas em 2017.
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Há vítimas de todas as idades: dos pacientes mais velhos (um homem e uma mulher, cada um com 102 anos), à recém-nascida que teve sua vida interrompida depois de apenas sete dias. A mediana de idade, porém, é de 68 anos (a média é de 67). Homens são são maioria (55,08%), ainda que mulheres continuem sendo as mais infectadas - ao menos entre os casos confirmados, elas representam 57,76% das 33.891 notificações.
É contrário do que aconteceu quando publicamos o perfil das 100 primeiras vítimas fatais da covid-19 na Bahia. Naquele momento, em 29 de abril, mulheres morriam mais - elas eram 52% do total. Mas, de acordo com a epidemiologista Júlia Pescarini, da Rede Covida, já era esperado que os homens tivessem os maiores índices de mortalidade.
É assim que acontece com a maioria das doenças infecciosas.“Existe uma questão mais fisiológica e existe também um aspecto social, que fala muito sobre os homens terem um comportamento de maior risco e menor procura aos serviços de saúde. Como eles procuram menos, chegam mais tardiamente e podem chegar com um grau de complicação mais forte”, explica a epidemiologista. Gravidade Com o coronavírus, cada dia - ou mesmo cada hora - pode fazer a diferença. “Eu acho que as pessoas não estão acreditando muito na gravidade da situação”, diz a arquiteta Thíssia Ramos, 28 anos. No dia 26 de maio, ela perdeu o tio e pai adotivo - o aposentado Armando Carlos Mateus Barbosa da Silva, 70. A tia e mãe adotiva, dona Maria Lícia, 73, que também contraiu a covid-19, segue internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Português. “A gente vê na televisão, vê os números, vê pessoas falando, mas ninguém acha que vai acontecer. Eu tive que continuar trabalhando nesse período, mas, se eu soubesse, eu teria largado o emprego”, diz ela, que é funcionária de uma fábrica na Base Naval de Aratu. Ela acredita que tenha sido a primeira, em casa, a ter a doença, de forma leve, no início de maio. Os pais estavam cumprindo a quarentena, mas Thíssia ainda precisava sair para trabalhar e dar assistência aos dois. Até que, entre o dia 8 e o dia 9, Seu Armando começou a manifestar sintomas.
Tinha tosse, sentia dor no corpo, dor de cabeça, além de diarreia e vômito. Dois dias depois, a mãe dela começou a ter o mesmo quadro. A arquiteta chegou a ligar para um atendimento de telemedicina, que indicou que fossem ao hospital se os medicamentos não fizessem efeito.
“No dia 14, meu pai reclamou de falta de ar, mas passou. À noite, vi que ele estava com febre. Minha mãe estava com febre, mas sem a falta de ar. Levei os dois para o hospital e eles já ficaram internados no Português. No dia 16, conseguiram vaga na UTI”, lembra. Armando era paulista e morava com a esposa e a filha em Salvador (Foto: Acervo pessoal) O dia 16 de maio foi a última vez que teve contato com os dois. Tentou fazer com que a mãe, muito nervosa antes de ser entubada, se acalmasse.“Ela estava com muito medo de ir, assim como estava com muito medo por ele também. Com meu pai,eu acho que ele estava sentindo, porque falou comigo que achava que não ia voltar. Ele estava de uma forma que eu nunca tinha visto, com o semblante abatido e muito pálido”. Seu Armando morreu no dia 26 de maio, depois de 10 dias na UTI. Dona Maria Lícia, por sua vez, respira atualmente por ventilação mecânica. Até hoje, não sabia que o marido morreu.
“O que mais me chocou nessa doença foi a rapidez. Você nunca sabe o que esperar. Minha tia teve uma melhora de dois dias seguidos e, no terceiro, teve duas hemorragias. Agora, ela está estável”, conta a arquiteta. Dona Maria Lícia é diabética e hipertensa, além de já ter sofrido um infarto; seu Armando, por outro lado, nunca teve nenhuma doença associada.
A família de Thíssia ainda passou por outra dor: no momento do enterro, moradores do distrito de Campo de São João, na cidade de Palmeiras, onde a família tem um jazigo no cemitério, fizeram um protesto, bloqueando a via de acesso e ameaçando a família com pedras e pedaços de madeira. Alegavam que o sepultamento de uma vítima de covid-19 no local traria riscos à população.
A proposta da prefeitura de Palmeiras foi que o sepultamento fosse realizado no cemitério da cidade, não no do distrito, que passava por reformas. Ficou acertado que, no futuro, a família levaria os restos mortais para o jazigo no distrito.
“A gente está se organizando para acionar o Ministério Público do Estado com relação à prefeitura de Palmeiras, porque a gente ainda tem esperança com minha mãe, mas não quer passar por esse problema de novo. A prefeitura tem que, garantir, no mínimo, que os moradores sejam orientados. Nossa família já está muito fragilizada. Não queremos que nem a nossa e nenhuma outra passe por isso”.
Peregrinação A família da doméstica Arlete Santos Reis, 44, também passou por um episódio traumático enquanto ainda lidava com o luto. Arlete morreu no dia 1º de junho, no Hospital Espanhol, em Salvador, vítima de covid-19. No entanto, o corpo dela foi trocado com o de outra paciente que morreu por causa do coronavírus - Rosângela de Jesus Santos, 47.
No dia seguinte, quando um dos irmãos foi fazer o reconhecimento do corpo, descobriu que não se tratava de sua irmã. Arlete tinha sido enterrada no lugar de Rosângela, no Cemitério de Portão, em Lauro de Freitas. O corpo teve que passar por uma exumação e a perícia confirmou de que houve uma troca.
Foi apenas no dia 5 de junho, após uma intensa peregrinação entre órgãos públicos, que a família de Arlete conseguiu se despedir. O corpo dela foi enterrado no Cemitério Campo Santo, na Federação. Agora, os parentes tentam se reerguer e, aos poucos entender o que aconteceu. Arlete estava internada no Hospital Espanhol (Foto: Acervo pessoal) “A ficha nem caiu ainda. A gente está tentando descansar ainda. Eu não consegui dormir à noite ainda, nem eu, nem meus irmãos. A gente está esperando que alguém entre em contato para pedir desculpas”, diz o eletricista Jairo Reis, 40, o irmão de Arlete que tinha ficado com a incumbência de reconhecer o corpo. A doméstica, segundo ele, tinha medo de pegar o coronavírus. “Ela estava com tanto medo. Ela falava assim: ‘tomara que ninguém da família pegue essa doença”, lembra. Arlete deu entrada no Hospital Espanhol no domingo (31), um dia antes de vir a falecer. Como ela, muitas vítimas da covid-19 na Bahia passaram pouco tempo internadas. Também como Arlete, a maioria das vítimas estava internada em hospitais da rede pública (64,5%).
Entre as vítimas cuja data de admissão é informada nos boletins da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), o maior número é de pacientes que morreram no mesmo dia em que deram entrada - 46 das pessoas. Ainda que tenha casos de pacientes que chegaram a ficar 60 dias internados, a maioria dos óbitos foi de pessoas que passou pouco tempo: o segundo maior número de pessoas, 39, passou dois dias. Em seguida, 36 vítimas ficaram sete dias no hospital.
Para Jairo, parte da população não tem levado a pandemia a sério. “Vi que no sábado e no domingo, tiveram vários paredões. Acho aquilo um absurdo, porque está crescendo o número de vítimas não só em Salvador, como na Bahia e no Brasil todo. O pessoal continua fazendo festa, sem ter consciência”, desabafa.
Hipertensão e diabetes Arlete era diabética. O diabetes mellitus é uma das principais comorbidades, entre as vítimas da covid. Pelo menos 334 pessoas tinham o quadro, de acordo com os boletins divulgados pela Sesab. Em quase metade dos casos - 164 -, a diabetes vem acompanhada de outra condição de risco: a hipertensão arterial. Pelo menos 352 pessoas tinham hipertensão arterial. “Isso, para a gente, no SUS, é uma rotina: lidar com essa casadinha. Tem até um programa que chama ‘hiperdia’, que é o controle de hipertensão e diabetes. No geral, pela idade, por não ter uma vida regrada, algumas pessoas têm a tendência a ter o diabetes mellitus e a hipertensão”, diz a enfermeira Alice de Andrade, mestre em Enfermagem, professora da UniRuy e servidora da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Às vezes, alguns pacientes nem mesmo sabem que são hipertensos e diabéticos. Isso costuma ser mais frente em homens, de acordo com Alice, que é especialista em emergência.
“Outro dia, ouvi de um taxista que o colega era hipertenso e não sabia. Quando acometeu a covid, pioraram as chances de sobrevivência. Não é uma gripezinha, é uma síndrome respiratória seríssima. E não basta ter o ventilador: é a função do ventilador com a qualidade de vida, com a questão imunológica da pessoa, com os fatores de risco”, alerta.
Pelo menos 78% das vítimas fatais da covid-19 no estado tinha alguma comorbidade - na maioria dos casos, alguma doença cardíaca crônica. Mais da metade das vítimas tinha pelo menos dois fatores de risco (551 pessoas). Dessas, pelo menos 201 tinham, ao menos, três comorbidades.
Desde o início da pandemia, 25 pessoas morreram em casa Entre as mil mortes, uma situação chama atenção: o número de pessoas que tem morrido em casa. Pelo menos 25 das vítimas morreram em sua própria residência. A conta tem aumentado nos últimos dias: só no boletim divulgado na quarta-feira (10), foram cinco casos. No boletim de quinta-feira (11), mais uma notificação.
A maioria dessas vítimas morava em Salvador - eram 16. Logo em seguida, vêm Itabuna, no Sul do estado, com seis casos. Houve registros de morte em casa, ainda, em Anagé, Ilhéus e Camaçari. “O que contribui para a letalidade da covid-19 é aguardar muito tempo em casa e só procurar atendimento médico na fase mais avançada. A população está com medo de ir à UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e fazer o atendimento no início dos sintomas”, avalia a farmacêutica Andréa Mendonça Gusmão, doutora em Virologia e professora da UniFTC e da UFBA. Segundo ela, o indicado é que a pessoa já está com febre há dias, não deve esperar começar a sentir falta de ar em casa. A falta de ar costuma acontecer numa fase mais avançada da doença - e é possível que, nesses estágios, a pessoa morra em casa.
“Em Nova York (EUA), muita gente morreu em casa, porque lá não tem SUS (Sistema Único de Saúde). Muita gente não tinha dinheiro para pagar o atendimento particular. Aqui, as pessoas ficam com medo porque sabem que se ficarem internadas, vão ter que ficar isoladas e é difícil. Mas a orientação não pode ser ficar em casa o tempo todo: se você está se sentindo pior a cada dia, não espere. Vá ao médico”, completa.