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Publicado em 16 de janeiro de 2021 às 15:59
- Atualizado há 2 anos
Abra o seu cartão de vacinação ou olhe para o seu braço direito: provavelmente, tem uma cicatriz arredondada nele. Significa que, ainda bebê, você tomou uma vacina cuja eficácia varia, hoje, entre 72% e 100%. A BCG protege contra tuberculose e, mesmo que você tenha tido a doença depois de vacinado, ficou livre das formas graves dela. As vacinas, de um modo geral, servem para ensinar o nosso corpo a se proteger de um ‘inimigo’ que ele ainda não conhece, mas que pode atacá-lo. E, a não ser que você seja um profissional de saúde, dificilmente se preocupou antes com o percentual citado no início deste texto. E não era para se preocupar mesmo.
A eficácia da vacina, garantem especialistas, tem mais a ver com a estratégia de vacinação do que com a proteção de quem toma. Na prática, ao tomar uma vacina cuja eficácia geral é de 50,38% – como é o caso da CoronaVac – não significa que você estará ‘meio protegido’. Significa que, a cada 10 pessoas que tomarem a vacina, cinco estarão imunes. E, para se alcançar uma imunidade coletiva – em que aqueles que estão imunes não mais transmitem a doença e, de tantos que são, impedem que o vírus infecte os demais – será preciso vacinar mais gente.
Esta semana, depois de idas e vindas e uma série de números divulgados nos últimos dias, o Instituto Butantan, em São Paulo, anunciou que a CoronaVac, vacina contra a covid-19 desenvolvida em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac, tem eficácia geral de 50,38%. Deu um nó na cabeça dos mais leigos e inflamou ainda mais os ânimos dos que já vinham desacreditando esta e outras vacinas em teste no mundo. Mas não há motivo para descrença, afirmam epidemiologistas, biomédicos e microbiologistas ouvidos pela reportagem. “Se toda a população brasileira tomasse a CoronaVac, a metade ficaria imune, considerando 50% de eficácia. Qualquer vacina com eficácia acima de 50% vai nos ajudar muito nessa pandemia, inclusive essa eficácia é a mínima aceita pela OMS. Com a metade da população imune, já teríamos um impacto significativo na transmissão do vírus”, explica Rafael Dhalia, doutor em biologia molecular e especialista em desenvolvimento de vacinas de DNA pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).Além disso, a vacina é considerada segura. “O perfil de segurança da vacina do Butantan foi muito bom. Não houve nenhum evento grave, apenas eventos leves em pessoas vacinadas. A vacina vai nos ajudar a reduzir as mortes no Brasil e isso será muito importante”, defende a enfermeira Ethel Maciel, PhD em Epidemiologia pela Johns Hopkins University (EUA) e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
50,38%, 78% ou 100%? Nos últimos dias, o Instituto Butantan divulgou três dados distintos para eficácia da CoronaVac: 78%, 100% e 50,38%. A diversidade de percentuais fez com que muita gente duvidasse dos dados. Afinal, qual deles representa a eficácia da vacina? Na prática, os três. Todas as vacinas que fazem parte do Calendário Nacional de Vacinação no Brasil têm eficácias diversas: a BCG, a primeira vacina tomada pelos brasileiros, logo após o nascimento, tem eficácia que varia de 72% a 100%. A meningocócica C varia de 67% a 93%. A vacina contra o HPV transita entre 86% e 96%, dependendo da idade. A da gripe, de 30% a 90%.
Isso não seria diferente com a vacina contra a covid-19. O que muda, nesse caso, é o quanto a vacina é eficaz de acordo com o nível dos sintomas. “A gente tem três eficácias diferentes da vacina do Butantan. A gente tem para prevenir sintomas muito leves, que é 50,38%, para prevenir doenças leves 78%, e para prevenir doenças moderadas e graves, que é de 100%”, explica Ethel Maciel.
Para quem tem dúvidas sobre o nível dos sintomas, o próprio Butantan explica: os sintomas muito leves são aqueles em que a pessoa não precisa de ajuda para vencer a doença. Os leves são aqueles que precisam de algum tipo de assistência médica, mas sem a necessidade de internação. Os casos moderados precisam sim, de internação e, por último, vêm os graves, em que o paciente precisa de UTI.
Diretor do Instituto Questão de Ciência (IQC) e PhD em Microbiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP, Luiz Gustavo Almeida ainda acrescenta que a eficácia de uma vacina varia de acordo com o ambiente em que foi testada. O Butantan fez uma espécie de ‘prova de fogo’.“As outras vacinas têm uma eficácia alta por causa da tecnologia, não dá para negar, mas também pelo público mais abrangente. A vacina do Butantan foi testada por pessoas que estavam na linha de frente e se mostrou uma vacina excelente num ambiente de alto risco. É interessante acompanhar como vai ser a eficácia dela na Turquia porque lá ela envolveu o pessoal administrativo, de limpeza, e não só quem estava no atendimento”, alerta.A Sociedade Brasileira de Imunologia também apontou a diferença entre os públicos que testaram as vacinas e defendeu que os resultados, tanto do Butantan quanto de Oxford, são “muito bons”. “O que o estudo do Instituto Butantan nos diz é que houve redução em 50% de qualquer sintoma na população de profissionais da saúde; e a da Oxford, 62% em toda a população. Sendo assim, devemos concentrar nossos esforços agora na conscientização e na vacinação em massa, para proteger a população da doença”, diz nota.
É por isso que não dá para dizer que uma eficácia de 50,38% é ruim. “Em 2018, o valor da eficácia da vacina contra a gripe chegou a 25%. Esses dados são ruins? Absolutamente não. Entre usar uma vacina e deixar o vírus seguir o curso natural, é preferível a vacinação. Dados da OMS indicam até 5 milhões de casos graves de gripe no mundo, sendo que 600 mil podem vir a óbito, não dá para duvidar da vacinação”, aponta o biomédico e mestre em Microbiologia Mateus Falco, que também é divulgador científico pela Rede Análise Covid-19.
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Para que serve a eficácia, então? Na prática, o dado da eficácia da vacina serve para planejar uma estratégia e vacinação. Quanto maior a eficácia, menor a cobertura vacinal necessária para se alcançar uma imunidade coletiva.“Tudo depende da estratégia. Se o nosso interesse é reduzir doença grave, a gente vai continuar fazendo testes, as pessoas ainda vão ter alguma infecção, uma doença leve, mas se a nossa meta é reduzir a gravidade, então a gente vai ter uma cobertura vacinal menor. Agora, se a gente não quer que ninguém fique doente, que não tenha sintoma nenhum, então a gente vai ter a eficácia de 50,38% para isso e eu vou ter que vacinar muitas pessoas, chegar até provavelmente mais de 90% da população vacinada”, detalha Ethel Maciel.Hoje, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária analisa quatro vacinas: além da CoronaVac e da Astrazeneca/Universidade de Oxford, em parceria com a Fiocruz, ainda a da Pfizer e a da Janssen. Só as duas primeiras fizeram pedidos de uso de emergencial, mas estas e outras podem ser aprovadas. O que significa que o Brasil terá vacinas diferentes, com eficácias diferentes, ajudando a chegar a uma imunidade coletiva.
“O ideal para manter a imunidade de rebanho é de pelo menos 70% da população protegida, e esses resultados podem ser alcançados com uso de vacinas adicionais (como a de Oxford, Pfizer, Moderna, etc.). A cobertura vacinal precisa também ser mantida ao logo dos anos, considerando que existe uma grande possibilidade de ser uma vacina sazonal como a da gripe”, afirma Rafael Dhalia, da Fiocruz.
Dados de eficácia de vacinas e de transmissão dos vírus já são usados no Brasil, para diferentes vírus e vacinas, há quase 48 anos, desde que foi implantado o Programa Nacional de Imunizações (PNI), uma referência internacional em termos de políticas de saúde.
Em nota, a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) defendeu a vacinação como a melhor forma de se proteger e destacou que o PNI irá liderar o processo de redução da incidência de covid-19, “da mesma forma que controlou diversas doenças e eliminou a poliomielite, o tétano materno e neonatal, a rubéola, a síndrome da rubéola congênita, e o sarampo, ainda que temporariamente”.
O caso do sarampo é um exemplo de como uma vacina, mesmo que não tenha eficácia de 100%, pode ajudar a livrar um país de uma doença. Em 2016, o Brasil recebeu da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) o certificado de país livre da doença, mas o perdeu em 2019 após novos casos, que não aconteciam desde 2015.“Um exemplo mais recente da necessidade de vacinação é o surto de sarampo ocorrido no triênio 2017, 2018, 2019. O Brasil recebeu um certificado da Opas em 2016 pelo excelente trabalho de imunização da população e eliminação do sarampo e esse certificado foi perdido em 2019, pela ocorrência dos surtos a partir de 2017. O problema dos novos surtos de sarampo se deve à diminuição na procura da vacinação”, lamenta Mateus Falco.Ele postou no Twitter essa semana sobre o assunto:
Senso de coletividade Independente do percentual de eficácia da vacina a ser aplicada, o importante é que as pessoas confiem e tomem a vacina. Neste momento, especialistas destacam uma informação importante: não é possível escolher qual vacina tomar. O biomédico Mateus Falco lembra que, além de não ter o direito de escolher uma vacina, os brasileiros devem aos cientistas da Fiocruz e do Instituto Butantan o fato de terem imunizantes de boa qualidade e disponíveis à população.
Isso porque, como o governo brasileiro não fez planejamento de compra antecipada com outros laboratórios, sem as duas vacinas já com pedidos de uso emergencial em análise, o país provavelmente teria que entrar na fila para receber as vacinas da COVAX Facility, aliança mundial responsável por distribuir vacinas para países em desenvolvimento.
“Toda vacina protege em certa medida, não é possível comparar valores de eficácia, existem muitos fatores envolvidos além dos números puramente. A vacinação é importante porque é a única saída viável para a crise de saúde pública que enfrentamos. Negar a importância da vacinação ou fazer brincadeiras de mau gosto sobre a eficácia da CoronaVac não é uma atitude muito madura, estamos a mais de 11 meses na pandemia com números vergonhosos de óbitos, espalhamento de novas variantes para outros países e o bom senso já deveria ter dominado altos escalões”, afirma Falco.
Além disso, não tomar a vacina significa correr o risco de que a campanha de vacinação não tenha êxito em imunizar o maior número possível de pessoas. “Se as pessoas não tomarem a vacina, se a gente não alcançar a meta, vamos ficar mantendo o vírus infectando pessoas e podendo fazer mutações, seria o pior cenário”, alerta Ethel Maciel. Rafael Dhalia também explica que as taxas de transmissão favorecem mutações. “Se as pessoas não tomarem as vacinas, vão continuar morrendo. Quanto mais pessoas forem infectadas, mais ambientes favoráveis para as mutações ocorrerem. Como são aleatórias, elas podem favorecer ou não o vírus. Podem aumentar sua capacidade de transmissão e pior que isso, podem aumentar a sua virulência”.
Luiz Gustavo Almeida, do Instituto Questão de Ciência, diz que o momento é oportuno para explicar ciência para as pessoas. E uma dessas explicações pode ajudar a convencer as pessoas a tomarem, sim, a vacina.“As pessoas estão olhando a vacina como um risco. Do ponto de vista pessoal, a gente pode dizer que se ela não tomar a vacina, vai ter duas vezes mais chance de pegar a doença. E do ponto de vista coletivo, a vacinação serve para proteger outras pessoas que não podem se vacinar neste primeiro momento, como grávidas e menores de 18 anos. Nós nos vacinamos também para montar uma barreira em torno dessas pessoas. É esse senso de coletividade que a gente tem que despertar nas pessoas”, pede.Mas, atenção: nada de tomar a vacina e sair por aí, fazendo aglomerações, tirando a máscara, agindo como se a pandemia tivesse acabado. Segundo Mateus Falco, a primeira resposta imune, ainda não muito intensa, só acontece 14 dias após a primeira dose. Essa resposta aumenta após a segunda dose. Ainda assim, as pessoas vão precisar continuar se cuidando por um tempo.
“A vacinação vai ser um longo processo, não temos o volume necessário para a imunização de todos, por isso foi escalonado por grupos de riscos. Então, o uso da máscara e o distanciamento serão formas de proteção daqueles que ainda não puderam receber as doses. Assim como a vacinação é um movimento coletivo, o uso de máscara e distanciamento também é um bem coletivo, o cuidado das outras pessoas, não colocar outras vidas em risco, também”, afirma.