Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Flavia Azevedo
Publicado em 29 de junho de 2024 às 16:28
Aviso logo que até poderia, mas não estou advogando em causa própria. Tentei, porém não consegui desenvolver a cultura da cannabis em minha vida. A questão é que ninguém no planeta tem uma larica igual à que me acometia. O efeito de dois ou três tragos já era suficiente para que eu devorasse, compulsivamente, quantidades cavalares de combinações estranhíssimas de alimentos.
Depois dessas refeições, dormir - por muitas horas - era a única coisa que eu queria da vida. Assim - por medo da improdutividade e de ficar obesa (nada contra, mas no meu corpo não quero) - desisti de ser maconheira, na mais tenra idade. Há muitos anos, isso. Posso até dar um tapinha eventual, com amigos, mas nem a apertar baseado eu aprendi.
De modo que, como pode ver, para a minha vida pessoal, fumar maconha ser crime ou não, tanto faz como tanto fez. Muda nada aqui. Mas sempre estive interessada em liberdades individuais, assim como em coerências coletivas. Aí, é o seguinte: você sabe que nesta semana o STF (Supremo Tribunal Federal) descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, no Brasil. Pois bem.
Ficou combinado que usuário não é criminoso e que 'caracteriza usuário de drogas quem, para uso próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito ou trouxer consigo até 40 gramas de sativa ou seis plantas fêmeas'. Sim, já é um avanço que nos aproxima de certo nível de civilidade, pelo menos nesse tema. Porém...
Pode não ser crime, mas dentro da legalidade também não fica. O usuário pode sofrer penas alternativas ou ser preso, a depender das 'circunstâncias da apreensão'. Exemplo? Ter o contato de traficantes no celular. Basta que o policial, ali na hora do baculejo, ache que a agenda do vivente é indício de que ele trafica também. Se a autoridade tiver convicção, piorou. Olhe o naipe do problema.
Quer dizer, você pode fumar maconha, mas vai comprar de quem? De um traficante. Traficar é crime. Então, necessariamente, o usuário estará em contato com criminosos, a não ser que tenha talentos botânicos suficientes (e dinheiro e espaço) pra criar as tais seis plantinhas fêmeas.
Não sendo seu caso, continua aquela história de salvar o nome do traficante como Tia Adenice, Frutos do Mar ou Padre Alberto e rezar pro puliça ser mais besta do que você. Se você for branco e de classe média/alta, ele pode até ser. Mas se for preto e pobre, como sabemos, as chances já diminuem muito.
Sinuca de bico, então, é o nome do 'avanço' que comemoramos, sem entender os pormenores. Ou 'engana besta'. Porque até comprar as sementes das tais plantas fêmeas não é um trâmite tão legalizado assim. Ou seja, ainda não há saída - longe da criminalidade - para quem quer apenas fumar um negócio que me dá sono e fome, porém, na maioria das vezes, só deixa as pessoas tranquilas e meio esquecidas mesmo.
Não há usuário sem traficante nem traficante sem usuário. Se a intenção for, de fato, acabar com essa interação e mitigar os danos colaterais do poder do tráfico de drogas no Brasil, é preciso pensar na política de 'combate às drogas' de forma mais 'adulta', por assim dizer. Não estudo segurança pública, mas legalizar e regulamentar parece ter funcionado em outros países. Inclusive resultando em incremento de economias.
Humanos sempre buscaram e buscarão maneiras de se entorpecer, de forma lícita ou ilícita e não há nada que se possa fazer. Pessoas bebem chás, fumam ervas, tomam remédios vendidos na farmácia da esquina ou viram litros de bebida alcoólica goela abaixo. Porque querem, porque sim. Inclusive fazendo altas apologias do abuso de substâncias que, comprovadamente, favorecem tragédias.
Por exemplo, além das brigas, desavenças, violências domésticas e outros problema relacionados a bebidas alcoólicas, um relatório recente da OMS (Organização Mundial de Saúde) aponta que 2,6 milhões de óbitos anuais são causados pelo álcool, no mundo. Destas, 90 mil no Brasil.
Vai proibir o povo de beber? Não vai. O que se faz é atuar com medidas de prevenção ao abuso e administração do uso da substância por pessoas adultas e donas de si. Por outro lado, seguimos faturando com bares, distribuidoras, fábricas e todo um setor que gira em torno da birita.
Aí a minha cognição não acompanha quais são os critérios - de interesse coletivo e proteção do ser humano - que definem quais substâncias são proibidas e quais são legais, neste país. Fico pensando, então, que talvez seja só questão de mercado. Um raciocínio que envolve contas e se resume em 'deixa ilegal o que dá mais lucro assim'. Mas, sei lá, pode ser viagem minha. Né?